Infelizmente, não pudemos contar com a presença da diretora porque seu visto de viagem não
saiu a tempo. Seria muito bom ouvir o que ela teria a dizer sobre as infindáveis
dificuldades com que as mulheres se deparam, na Arábia Saudita, para realizar
as atividades mais básicas do dia a dia devido ao machismo e à opressão
religiosa. O que dizer, então, da realização de um filme?!
Dado o número de espectadores
que lotaram a Sala 1 do 'Reserva Cultural', o tema deve despertar interesse.
Havia pessoas das mais diversas idades, sozinhas ou acompanhadas, desde jovens
estudantes até gente de meia-idade, casais e senhores de cabelos brancos. Todos
ávidos e curiosos, imagino, para bater um papo com Haifaa Al-Mansour.
Após a sessão, o pessoal que lotou a sala se juntou para o coquetel, onde pudemos trocar ideias sobre o filme. Foto: Simone Catto |
Mas vamos ao filme, que tem
estreia prometida para o dia 3 de maio nos cinemas brasileiros. Wadjda, a protagonista,
é uma pré-adolescente saudita que passa os dias sonhando em ter uma bicicleta para
poder brincar com seu amigo Abdullah. A menina tenta juntar dinheiro para
comprar a bicicleta confeccionando pulseirinhas de lã (aliás, proibidas) para
vender às colegas da escola, mas há um problema: na Arábia Saudita, meninas
ditas "honradas" não podem andar de bicicleta. As histórias mais estapafúrdias
são incutidas nas cabecinhas das pobres crianças, como a de que andar de
bicicleta pode impedi-las de gerar filhos mais tarde. É inacreditável como um prazer aparentemente tão simples e saudável como andar de bicicleta, que é também um meio de transporte, seja inacessível às menininhas sauditas.
Wadjda sonha em circular numa bicicleta como a de seu amigo Abdullah e não vai se cansar enquanto não conseguir. |
Conhecendo seu desejo de possuir uma bicicleta, Abdullah presenteia a amiguinha com um capacete. |
E já que estávamos
falando da opressão feminina num país ultraconservador, basta citar alguns
exemplos: mulheres não podem dirigir na Arábia Saudita e, por isso, são obrigadas a ter motoristas
para se deslocarem. São obrigadas também a usar o hijad, o véu islâmico negro que as cobre da cabeça aos pés,
deixando apenas os olhos à mostra. Além disso, mulheres precisam da autorização
de um homem para viajar, ter algum trabalho remunerado ou até cursar o ensino
superior. E isso só para citar situações que aparecem no filme – certamente,
deve haver muitas outras que desconhecemos.
Aparentemente, a menina
Wadjda pertence a um tipo de "classe média" saudita. Mora com a mãe professora e
o pai ausente numa casa modesta em um bairro árido e poeirento da capital, Riad,
mas desfruta de alguns confortos: joga videogame na TV de plasma, estuda numa
boa escola (dentro daquilo que deve ser considerado uma "boa escola" para
meninas na Arábia Saudita), a comida é abundante no prato e a mãe tem condições
de eventualmente se dar alguns luxos, como a compra de um vestido novo.
A sala da família em um dos raros momentos em que o pai da menina está em casa com a família. |
A mãe de Wadjda, uma
morena jovem e bonita que trata a filha com carinho e desvelo, sente na pele o
tratamento inferior dispensado às mulheres. A começar pelo marido, que quase
nunca está em casa e, para sua infelicidade, está em busca de uma segunda
esposa – na Arábia Saudita, a poligamia é permitida. O motorista que a leva à
escola onde leciona, que fica a quilômetros de distância, é um tipo rude e
grosseiro. Quando não está trabalhando, a mulher vive para cuidar da filha e
agradar ao marido, que raramente está presente para apreciar seus esforços.
Deseja cortar os belos e longos cabelos, mas não o faz, porque o marido "gosta
deles longos e macios". Prepara refeições maravilhosas para agradar ao marido e
aos amigos que o visitam, mas, quando isso acontece, ela e a filha não podem
participar do banquete e ficam com as sobras. E por aí vai. A menina observa tudo, silenciosa, e exala inconformismo.
A mãe de Wadjda é uma mulher jovem e bonita, porém desprezada pelo marido machista. |
A chance de Wadjda adquirir
sua bicicleta aparece quando a escola realiza um concurso sobre os preceitos do Alcorão e o
prêmio em dinheiro é mais do que suficiente para ela realizar seu sonho. A
partir daí, até então avessa aos costumes e assuntos religiosos, a menina entra
para um grupo de estudos e passa a estudar o Alcorão com afinco a fim de vencer
o certame.
Wadjda, a segunda da esquerda para a direita, em seu grupo de estudos do Alcorão: tudo para ganhar o prêmio do concurso e comprar sua tão desejada bicicleta. |
O olhar de Al-Mansour sobre
a sensibilidade da criança e seu desejo de liberdade, e também sobre a
infelicidade da mãe e a condição feminina em seu país geraram um filme terno e
bem feito. Difícil imaginar como conseguiu filmar uma história com tal conteúdo
em um país no qual a censura permeia todos os meios de comunicação e atividades
culturais, podendo ordenar prisões e outras punições a quem supostamente "ofenda" os costumes árabes.
Apesar de toda a
burocracia, a diretora conseguiu as autorizações necessárias para filmar, mas
vira e mexe a polícia aparecia no set para checá-las. Nas regiões mais conservadoras,
a equipe de filmagem chegou até mesmo a sofrer ameaças da população local.
Haifaa Al-Mansour, a corajosa diretora e roteirista do filme. |
Em uma entrevista à
Folha de S. Paulo, Al-Mansour relatou que, quando era criança, seu pai "costumava
receber cartas de familiares, de amigos e do imã da mesquita" em frente à casa onde
moravam pedindo-lhe que mantivesse a filha "sob controle" e a proibisse de se
tornar cineasta. Felizmente, a diretora teve a sorte de nascer no seio de uma família amorosa e muito mais iluminada que a
média em seu país, e seus pais nunca se incomodaram com as opiniões alheias
sobre a filha. Tanto é verdade, que a moça graduou-se em literatura pela
Universidade Americana no Cairo e fez mestrado em direção e estudos de cinema
na Universidade de Sydney, Austrália.
A propósito, o contato
com o cinema começou cedo. Em sua infância, o pai costumava exibir para ela e os
11 irmãos antigos filmes egípcios e produções de Bollywood em VHS. Mas foi mais
tarde, quando conheceu os filmes americanos, que Al-Mansour começou a se
interessar de verdade por cinema.
A diretora ainda não
sabe se o seu primeiro longa sequer será exibido em seu país, dadas as
restrições ao funcionamento de cinemas. Boa parte da população assiste a filmes
estrangeiros por meio de DVDs, download na internet e também pela televisão via
satélite, embora a venda, a instalação e o uso de antenas de recepção de
satélite sejam proibidos.
No entanto, apesar das
inúmeras restrições, a situação feminina na Arábia Saudita teve uma melhora
sutil. Em janeiro deste ano, decidiu-se que as mulheres deverão compor um
quinto das 150 cadeiras da Shura (Conselho Consultivo da Arábia Saudita). No
ano passado, pela primeira vez, mulheres puderam representar o país numa
Olimpíada.
E mais: no início deste
mês, a Arábia Saudita passou a permitir que mulheres andem de bicicleta, mas
apenas em áreas de lazer e com um "guardião" masculino. Teria sido esse leve
sopro de "liberalidade" influência do filme de Al-Mansour? Se for... Alá seja
louvado!
'O Sonho de Wadjda' (2012), uma coprodução entre Arábia Saudita e Alemanha, ganhou o prêmio Dioraphte, no Festival de Roterdã, e
o prêmio da Confederação Internacional dos Cinemas de Arte, no Festival de
Veneza.
Elenco parcial:
Waad Mohammed – Wadjda
Reem Abdullah – mãe de
Wadjda
Abdullrahman Al Gohani –
Abdullah, amigo de Wadjda
Ahd Kamel – Sra. Hussa, a diretora da escola
Sultan Al Assaf – pai de Wadjda
Não deixe de assistir ao filme, que chega aos cinemas no dia 3 de maio. Vale a pena compartilhar do olhar sensível
da diretora para mergulhar no mundo feminino saudita por meio da trajetória de Wadjda, cujo sonho deve povoar os desejos de tantas outras meninas de seu país.
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