quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Eliseu Visconti, o mestre que batizou o Impressionismo e o Art Nouveau nos trópicos.

Há 150 anos ele nasceu. Italiano de berço, ainda criança veio para o Brasil e fazia questão de se dizer brasileiro. Logo revelou um talento incomum para o desenho e foi estudar pintura com grandes artistas aqui e na França, conquistando prêmios e glórias. Estou falando de Eliseu Visconti (1866-1944), o primeiro pintor impressionista do Brasil e introdutor do estilo Art Nouveau no país. Verdadeiro mestre da luz, Visconti conseguiu, em suas pinceladas, capturar o ar, as pessoas, as paisagens e atmosferas com uma delicadeza e beleza que não ficam nada a dever às obras dos maiores do mundo. O tipo de arte que faz falta hoje por aqui.

Eliseu Visconti - 'Autorretrato' (1942) - óleo s/ madeira - 46 X 33 cm - coleção particular - SP
 Foto: Simone Catto

Além de ser dotado de um talento excepcional, Visconti teve como professores gente do calibre de Victor Meireles, Rodolfo Amoedo e Zeferino da Costa, entre outros, e foi estudar em Paris a partir de 1893, após ganhar uma bolsa de estudos de cinco anos da Escola Nacional de Belas Artes. Lá frequentou a Academia Julian e os ateliês de Bouguereau e Gabriel Ferrier, além de ser admitido na École Nationale et Spéciale de Beaux-Arts classificado em sétimo lugar. Porém, o conservadorismo dessa última escola assustou o jovem artista, que abandonou o curso para estudar na École Guérin com Eugène Grasset, um dos expoentes do Art Nouveau. Visconti participou de vários Salões de arte e teve sua estada na França prorrogada por dois anos, só retornando ao Brasil em 1900, após conquistar uma medalha de prata na Exposição Universal de Paris. Um currículo e tanto.

Por tudo isso, é inadmissível que tantos críticos e historiadores só tenham dedicado espaço à arte produzida a partir da Semana de Arte Moderna de 1922, como se a arte brasileira anterior à década de 20 fosse anacrônica ou apenas uma imitação da arte europeia. Mais do que uma injustiça, isso denota displicência e desconhecimento. Felizmente, Visconti alcançou grande êxito em vida, conseguiu viver de sua arte e, décadas após sua morte, continua encantando a todos com a beleza e qualidade de sua obra.

Há quatro anos, visitei uma exposição de Visconti que me impressionou de maneira muito vívida. Grandiosa e muito bem montada, essa exposição fez jus ao talento do mestre e foi valorizada por uma localização à altura, a Pinacoteca do Estado. Agora, a Galeria Almeida & Dale acaba de realizar uma mostra com 40 obras de Visconti, algumas inéditas e outras há anos longe dos olhos do mundo. Com a colaboração do Projeto Eliseu Visconti, comandado por Tobias Stourdzé Visconti, neto do artista, a curadoria mesclou obras de diferentes épocas, incluindo trabalhos de design que ele desenvolveu para algumas instituições.

Influenciado pelo Impressionismo, pelo Simbolismo, Pós-Impressionismo e também pelo Art Nouveau de seu mestre Grasset, Visconti manejou a cor e a luz como poucos no Brasil. Antes mesmo de sua viagem a Paris, já havia pintado paisagens ao ar livre abolindo as gradações sutis de cor e criando contrastes de luz tropical que, possivelmente, teriam chocado a Academia. É o caso de 'Uma rua de favela' (c.1890), primeira obra do artista a abordar essa temática.

Eliseu Visconti - 'Uma rua da favela' (c.1890) - óleo s/ tela
72 X 41 cm - Coleção Afrísio Vieira Lima Filho - Brasília - DF
 Foto: Projeto Eliseu Visconti

Em seu primeiro período em Paris, Visconti criou a maior parte de seus nus, nos quais podemos reconhecer a forte influência simbolista na luz diáfana, na atmosfera misteriosa e numa certa melancolia nas poses das modelos.

Eliseu Visconti - 'Nu feminino' (1894) - óleo s/ tela - 59,5 X 81 cm - coleção particular - SP
Foto: Projeto Eliseu Visconti

Eliseu Visconti - 'Busto de Mulher' (1895) - óleo s/ tela - 49 X 73 cm - Coleção Fundação Edson Queiroz Fortaleza-CE - Foto: Projeto Eliseu Visconti 

Eliseu Visconti - 'Mulher e flor - Estudo para Sonho Místico' (1897) - óleo s/ tela
39 X 31 cm - coleção particular - SP - Foto: Projeto Eliseu Visconti

Não faltaram, também, obras que retratam a infância, um tema que sempre foi caro ao artista. É o caso de 'O beijo' (c.1899), por exemplo, que mostra toda a ternura e suavidade do beijo de uma mulher na face de uma criança.

Eliseu Visconti - 'O beijo' (c.1899) - óleo s/ tela - 24 X 32,5 cm - coleção particular - SP
 Foto: Projeto Eliseu Visconti

Visconti gostava muito de retratar membros da família porque os amava acima de tudo, conhecia-os muito bem e, assim, sabia captar melhor suas expressões e nuances. Podemos citar aqui a pintura 'Boa noite' (c.1910), na qual a esposa Louise tem o bebê Tobias no colo recebendo um beijo de boa noite da irmãzinha Yvonne.

Eliseu Visconti - 'Boa noite' (c.1910) - óleo s/ tela - 60 X 76 cm - coleção particular - RJ
Foto: Projeto Eliseu Visconti

Na França, o artista pintou belas paisagens do Jardim do Luxemburgo. Numa delas, nosso olhar é dirigido para duas figuras de negro, um homem lendo jornal apoiado numa balaustrada e um menino a seu lado. Ambos contrastam vivamente com a parte inferior mais clara e com a porção superior da tela, que exibe uma vegetação de exuberante tom escarlate típico do outono parisiense.

Eliseu Visconti - 'Jardim do Luxemburgo' (c.1905) - óleo s/ tela - 33 X 41,5 cm - coleção particular - RJ Foto: Simone Catto

Na pintura abaixo, uma mulher tricota também no famoso jardim de Paris e notamos o contraste vivo entre a luz do sol refletida no solo e a sombra escura que a envolve.

Eliseu Visconti - 'Tricoteuse' (1905) - óleo s/ tela - 3- X 46 cm - Coleção Hecilda e Sérgio Fadel - RJ
Foto: Simone Catto

Segundo o Projeto Eliseu Visconti, a obra a seguir, 'Moça no trigal' (c.1916), é a mais reproduzida do artista, mas há mais de 40 anos não era exibida numa exposição.

Eliseu Visconti - 'Moça no trigal (Pão e flores)' (c.1916) - óleo s/ tela - 65 X 80 cm - coleção particular - SP
Foto: Projeto Eliseu Visconti

Uma outra pintura que há décadas estava longe dos olhos do público é 'Estendendo roupa', de 1922. Criada dois anos após o artista ter-se mudando definitivamente para o Brasil, a pintura mostra uma cena prosaica da rotina doméstica valorizada por um festival de cores quentes que destaca várias gradações de vermelho. Sem dúvida, as roupas não demoraram a secar naquele dia ensolarado!

Eliseu Visconti - 'Estendendo roupa' (1922) - óleo s/ tela - 43 X 66 cm - coleção particular - SP
Foto: Projeto Eliseu Visconti

A pintura abaixo mostra uma paisagem da encosta do Morro de Vila Rica em tons pastéis. Vemos alguns casebres e, em primeiro plano, mal conseguimos visualizar as pessoas, de tão diminutas que são. Essa paisagem nunca havia sido exibida publicamente. Sabia-se de sua existência apenas pelo registro numa foto antiga, mas ela foi localizada durante a elaboração da exposição. Sorte de quem viu!

Eliseu Visconti - 'Vila Rica Copacabana' (1929) - óleo s/ tela - 65 X 80 cm - coleção particular - SP
Foto: catálogo Galeria Almeida & Dale

Visconti tinha uma casa de férias em Teresópolis (RJ), ficava encantado com a luminosidade daquela cidade e não perdia a oportunidade de retratá-la em paisagens como os dois exemplos a seguir. Em 'Raios de sol' (c.1935), vemos a entrada da casa do artista enfeitada por duas fileiras de luxuriantes flores vermelhas que contrastam com os brancos e azuis. Vale ressaltar que, embora o azul seja uma cor fria e predomine no quadro, as flores e os outros toques de vermelho conferem tal calor à composição que o cenário se torna absolutamente acolhedor e irresistível. Sem dúvida, um lugar onde temos vontade de estar!

Eliseu Visconti - 'Raios de sol' (c.1935) - óleo s/ tela - 81 X 62 cm
coleção particular - SC - Foto: Projeto Eliseu Visconti

O jardim do artista também não ficava atrás em beleza, com suas plantações, flores e sombras acolhedoras.

Eliseu Visconti - 'Lição no meu jardim' (c.1930) - óleo s/ tela - 81 X 65 cm
Coleção Fundação Edson queiroz - Fortaleza-CE - Foto: Simone Catto

A exposição exibiu também alguns autorretratos. Sabemos que Visconti pintou mais de quarenta ao longo da vida, e eu gostaria de destacar particularmente um que ele realizou já idoso, denominado 'Ilusões Perdidas' (também conhecido como 'Inspiração' – c.1933). De olhos fechados e com um leve sorriso nos lábios, o artista parece estar numa espécie de transe místico, sorvendo a densa nuvem de "inspiração" que evapora de sua paleta. Quase uma alegoria, essa pintura subverte os cânones tradicionais do autorretrato ao deslocar o retratado do centro do quadro para um canto da tela.

Eliseu Visconti - 'Ilusões Perdidas (Inspiração)' (1933) - óleo s/ tela
160 X 100 cm - coleção particular - CE - Foto: Projeto Eliseu Visconti

E finalmente, temos belas peças de arte decorativa Art Nouveau, incluindo cartazes, vasos, moringas, selos, vitrais e até estampas para tecidos.

Eliseu Visconti - 'O beijo da Glória a Santos Dumont' (c.1901) - litografia a cores s/ papel
52 X 36,4 cm - Coleção Tobias S. Cavalcanti - Rio de Janeiro
Foto: catálogo Galeria Almeida & Dale

Eliseu Visconti - Moringa decorada com perfil e flores (1909) - cerâmica pintada
28 X 18 cm - executada para a inauguração do Teatro Municipal do Rio de Janeiro -
Coleção Tobias S. Visconti - Rio de Janeiro - Foto: catálogo Galeria Almeida & Dale

Mais do que um artista eclético e fora de série, Eliseu Visconti é reconhecido como um de nossos maiores mestres da arte graças ao louvável trabalho do Projeto Eliseu Visconti para resgatar e catalogar sua obra, além de iniciativas como essa exposição.


quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

A 32ª Bienal deixa uma grande "incerteza viva": o que é arte hoje?

O ano está quase acabando, e lá se foi mais uma Bienal de São Paulo. O que não se foi, e insiste teimosamente em ficar, é a sensação de que sobrou intenção e faltou arte no Ibirapuera. E devo dizer que esse sentimento, infelizmente, parece se agravar a cada nova edição daquela que é considerada a mais importante e abrangente exposição de arte realizada no Brasil.

Escolhi um dia tranquilo para visitar a mostra, uma tarde de quarta-feira abafada e chuvosa, a fim de evitar as multidões e poder apreciar as obras com calma. Aliás, soube que o número de visitantes este ano ultrapassou os 900 mil, uma cifra bem superior àquelas das últimas edições do evento. Denominada 'Incerteza Viva', essa 32ª Bienal tinha, como propósito, refletir sobre questões que atualmente polarizam discussões em todo o mundo, tais como o aquecimento global, a destruição das florestas, desigualdade de gênero, discriminação racial, crise econômica, migração e outras mazelas contemporâneas. A ideia era que as obras de arte suscitassem mais questionamentos do que respostas, posicionando-se como expressões de resistência. É aí que está o problema. Até que ponto uma obra pode ser considerada "arte" ou não passa de mera expressão de uma subjetividade? Será que toda forma de resistência ou protesto, por assim dizer, pode ser denominada arte pelo simples fato de estar materializada na forma de uma pintura, ou de um desenho, vídeo, escultura, instalação ou o que quer que seja? Se uma pessoa que se diz artista cria uma obra e diz que ela é arte, devemos necessariamente acreditar que seja mesmo? Não é a primeira vez que proponho este tipo de questionamento neste blog. Sei que a indagação é polêmica, mas sei também que estou longe de ser a única a fazê-la. Se existe uma "incerteza viva", portanto, creio que ela resida sobretudo nos próprios limites que definem o que é arte atualmente.

Está certo que a percepção da arte contemporânea não ocorre da mesma forma para todo mundo. Cada vez mais, a arte torna-se uma questão subjetiva e as fronteiras entre o que pode ou não ser considerado obra de arte tornam-se tão fluidas quanto a diversidade de repertórios e experiências de quem a vivencia. Quem garante que aquilo que é arte para mim seja considerado arte para outra pessoa? E vice-versa? Estou relatando, aqui, uma experiência que no meu caso foi frustrante, mas que pode não tê-lo sido para outros.

Vista da 32a Bienal: incerteza sobre os próprios limites da arte - Foto: Simone Catto

Achei louvável a iniciativa da curadoria de realizar atividades paralelas para integrar o público e inseri-lo no contexto desejado, ocupando inclusive espaços externos ao prédio da Bienal, mas o que questiono, novamente, é a força e a qualidade dos trabalhos em torno dos quais esse público foi inserido. Outra questão: será que os visitantes realmente captaram o propósito das obras interativas ou as encararam como mero entretenimento? Digo isso porque os textos descritivos de várias obras diziam muito, mas não explicavam quase nada. Sem falar que a semelhança de "propósitos" relatados nos textos de alguns trabalhos era tão grande, que um determinado texto podia muito bem se aplicar a uma obra diferente daquela à qual se referia – é sério! Creio que isso tenha ocorrido devido ao excesso de elasticidade do tema da Bienal - um tema que podia, teoricamente, abarcar todo e qualquer debate, numa espécie de balaio de gatos ideológico.

Entre mortos e feridos, no entanto, devo fazer justiça a algumas obras que me impactaram de alguma maneira por seu resultado estético e eu não poderia deixar de mencioná-las aqui, com o devido mérito a seus criadores.

Gostaria de destacar o conjunto de painéis festivos e multicoloridos realizados em 2016 pela jamaicana Ebony G. Patterson (nascida em 1981), com composições que mesclam elementos da cultura popular e imagens de violência relacionadas às comunidades de Kingston, em seu país. Patterson utilizou fotografias e colagens recobertas por tecidos e ornamentos os mais variados, criando imagens que expressam alegria e brilho, apesar de conterem cenas de opressão social nas quais não faltam crianças negras, bonecas, bijuterias, contas coloridas e imagens de animaizinhos que parecem recortados de livros infantis, entre outros itens. Se o objetivo era realizar uma crítica social, a artista conseguiu alcançá-lo com arte e qualidade, produzindo uma obra que cumpre sua função sem deixar de fazer bem aos olhos. É a prova de que é possível falar de coisas feias sem que seja preciso, para isso, abrir mão da beleza.

Os coloridos e festivos painéis de Ebony G. Patterson - Foto: Simone Catto

Detalhe de um painel de E. G. Patterson - Foto: Simone Catto

E. G. Patterson: cor e exuberância a serviço da denúncia social
Foto: Simone Catto

Colorido meticuloso: fiquei encantada com o trabalho!
Foto: Simone Catto

E não é que minha bolsa poderia fazer parte do painel?!? (rs)
Foto: Simone Catto

Na série 'Rota do Tabaco' (2016), o brasiliense Dalton Paula (nascido em 1982) utilizou, como plataforma, um conjunto de alguidares, pratos de cerâmica que recebem comida e também oferendas em rituais de religiões afro-brasileiras. O artista pintou, no interior dos pratos, personagens que remetem ao passado colonial e aos escravos, notadamente aqueles que trabalharam em três locais que compõem a "rota do tabaco": Piracanjuba, em Goiás; Cachoeira, no Recôncavo Baiano; e Havana, em Cuba. Paula viajou a essas três cidades para pesquisar a herança histórica relacionada a essa cultura agrícola e realizou um trabalho com resultado estético bem interessante.

Dalton Paula - um dos alguidares da série 'Rota do Tabaco' (2016) - Foto: Simone Catto

Dalton Paula - 'Rota do Tabaco' (2016) - Foto: Simone Catto

Chamou minha atenção, também, uma série de fotografias da brasiliense Bárbara Wagner (nascida em 1981), que vive em Recife. Intitulada 'Mestres de Cerimônias' (2016), a série retrata a cena da música brega na periferia da capital pernambucana e escancara, com crueza, a base de pobreza econômica e cultural sobre a qual ela se sustenta. Verdadeiros documentos antropológicos, as fotos registram a realização de videoclipes bregas e seus personagens, dos quais não escapam os MCs, DJs, bailarinos, produtores, empresários e também o público. O que mais grita nessas fotos é o contraste entre a autoestima estratosférica de seus personagens e sua aparente alienação em relação à precariedade sociocultural do meio onde estão mergulhados.

Os 'Mestres de Cerimônias' (2016), de Bárbara Wagner: egos inflados e alienados - Foto: Simone Catto

Foto da série 'Mestres de Cerimônias' (2016), de Bárbara Wagner (2016), que poderia muito bem ter como legenda:
"Não tenho esgoto, mas tenho pernão!"' Triste. - Foto: Simone Catto

Mais uma foto da série 'Mestres de Cerimônias' (2016), de Bárbara Wagner - Foto: Simone Catto

Em minhas conversas e leituras, percebi que muita gente se decepcionou com essa Bienal, algumas pessoas a apreciaram, mas, independentemente da opinião de cada um, creio que é sempre saudável lembrarmos de uma lição: não devemos acreditar em tudo o que vemos, lemos ou ouvimos. E isso se aplica também à arte.