terça-feira, 16 de dezembro de 2014

'Relatos Selvagens'. O confronto do homem com seu limite num filme como poucos.

Em se tratando de cinema, temos mesmo de tirar o chapéu para nossos hermanos argentinos: não é de agora que eles estão arrasando com filmes que, se comparados à média da produção brasileira, ganham disparado em sofisticação e inteligência. São filmes profundos, muito bem realizados, com temáticas complexas e grandes elencos. Que cinéfilo não se lembra do magnífico 'O Segredo de seus Olhos', produção de 2009 de Juan José Campanella com o não menos magnífico Ricardo Darín?

'Relatos Selvagens' (Relatos Salvajes), de Damián Szifron, também tem Darín no elenco e está dando um show nas salas de São Paulo após abrir nossa Mostra Internacional de Cinema com grande sucesso. O filme foi a única produção latino-americana a entrar para a competição oficial do Festival de Cannes, sendo fortemente aplaudido e, além disso, concorre ao Oscar de melhor filme estrangeiro. A produção é de ninguém mais, ninguém menos que Pedro Almodóvar e seu irmão Augustín, que aparecem nos créditos. O elenco é excelente. Diante de tudo isso e principalmente do que vi na telona, dá para entender por que 'Relatos Selvagens' foi o longa mais visto na Argentina em 2014.

O filme pode ser classificado como uma mistura de drama e humor negro, destilados com sofisticação em seis histórias que têm, em comum, protagonistas que perdem a cabeça e decidem fazer a justiça com as próprias mãos diante de situações extremas e/ou surreais, porém não necessariamente inverossímeis, dado o grau de desequilíbrio de boa parte da humanidade hoje em dia.

Detalhe importante: lá não há histórias mais ou menos boas – todas mantêm o mesmo altíssimo padrão de qualidade, o que é raro ocorrer nos filmes ditos de 'antologia', isto é, constituídos por vários episódios. No primeiro, genial e o mais fantasioso de todos, um músico frustrado e traumatizado que sofreu bullying consegue reunir seus antigos desafetos em um voo de avião para realizar sua vingança. Depois há a garçonete que topa, no restaurante onde trabalha, com o mafioso que arruinou sua família, e surge também uma oportunidade de revanche. Há a história de uma briga de trânsito em uma estrada no meio do nada, entre um playboy de Audi e um motorista remediado, que descamba para uma violência descomunal.

Rita Cortese e Julieta Zylberberg interpretam a cozinheira e a garçonete do restaurante onde esta vê o homem que havia arruinado sua família. Quem incentiva a vingança é a cozinheira, que já passou uma temporada na cadeia.

Leonardo Sbaraglia e Dario Grandinetti interpretam os personagens da briga de trânsito que descamba em tragédia.

O episódio protagonizado por Ricardo Darín mostra uma situação que poderia muito bem ter se passado no Brasil: o cidadão tem o carro guinchado e é multado injustamente por estacionar em um local que não tem sinalização de proibido. Só que Darín, no papel de um engenheiro bem-sucedido que está a caminho de casa com o bolo de aniversário da filha pequena, chega a seu limite diante da injustiça da situação, da burocracia infernal e da displicência dos funcionários que o atendem (não, o filme não é brasileiro... ) Não bastasse ter que arcar com uma multa por uma falta que não cometeu, o homem chega atrasado para a festa de aniversário da filha, o que desencadeia uma sucessão de tragédias em sua vida.

Darín, como o pobre engenheiro que não consegue chegar a tempo para o aniversário da filha devido à burocracia insana.

Uma das histórias mostra o drama de um milionário que deve comprar meio mundo – policiais, peritos, advogados e até o jardineiro, para tentar livrar da cadeia o filho que atropelou uma mulher grávida e fugiu. Também aqui, aliás, qualquer semelhança com a "pátria-amada-idolatrada-salve-salve" não é mera coincidência. Por fim, temos a história de uma noiva judia que surta ao descobrir a traição do marido em plena festa de casamento - uma celebração digna de 'Facebook', feérica e dispendiosa, onde todos parecem artificialmente alegres, legais, radiantes e muuuito felizes por compartilhar da felicidade da noiva.

Erica Rivas está excepcional como a noiva que descobre ser traída no dia de seu casamento e enlouquece.

O tom tragicômico adotado no filme foi um grande acerto do diretor que, além de Darín, selecionou um elenco de primeira. Apesar de divertir pelo absurdo de algumas situações aparentemente inverossímeis, o filme suscita reflexões ao nos darmos conta de que muitas delas não são absolutamente implausíveis e poderiam perfeitamente se passar diante de nosso nariz. Sem exagero, esse é um dos melhores filmes que já vi nos últimos tempos. Simplesmente imperdível! 

Ficha técnica parcial

Direção: Damián Szifron

Elenco: Ricardo Darín, Darío Grandinetti, Oscar Martínez, Diego Gentille, Julieta Zylberberg, Leonardo Sbaraglia, Rita Cortese, Erica Rivas e outros.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

'Magia ao Luar'. Diversão charmosa e vintage bem ao estilo de Woody Allen.

Nem tudo o que Woody Allen produz é grande, mas mesmo seus filmes menores são no mínimo bons e melhores do que muitos que estão em cartaz por aí. Sobretudo quando ambientados em um universo retrô tão ao gosto do cineasta, como é o caso de 'Magia ao Luar', sua mais nova comédia romântica.

O filme tem um enredo "bonitinho", por assim dizer. De cara, somos capturados por uma fotografia e uma trilha sonora magníficas. Ambientado nos anos 20, 'Magia ao Luar' conta a história de Stanley (Colin Firth), um famoso mágico que se apresenta caracterizado como chinês e é chamado, por um amigo, para desmascarar uma suposta falsa médium, uma bela jovem chamada Sophie (Emma Stone).

Stanley (Colin Firth) caracterizado como o mágico chinês.

A suposta farsante Sophie (Emma Stone) e o cético Stanley, chamado para desmascará-la. Ao fundo, uma amostra da linda cenografia do filme.

Aos poucos, Sophie começa a convencer Staley de seus "poderes" e o casal vai se aproximando.

Por sua alegada vidência e poderes de contatar os espíritos, Sophie, sempre acompanhada da mãe, vira uma espécie de "queridinha" dos milionários da Riviera Francesa, levando, com suas sessões espíritas, um pouco de consolo às ricas viúvas em suas mansões. Stanley, um homem cético e descrente de quaisquer manifestações de caráter sobrenatural, pouco a pouco vai se deixando envolver pela jovem, o que, naturalmente, já seria de se supor.

O casal em um dos luxuosos bailes da Riviera.

Sophie comanda a sessão espírita em que a rica viúva Grace (Jackie Weaver) chama pelo falecido marido.

Brice (Harrish Linklater), o rico e apaixonado filho da viúva, também se encanta com Sophie, mas é desafinado de dar dó... rs.

Não espere um filme com altos e baixos e tampouco sobressaltos de emoção, mas momentos agradáveis em uma sala de cinema. 'Magia ao Luar' agrada no enredo, na atuação do elenco, nos belíssimos cenários, nas encantadoras paisagens do sul da França e, conforme mencionei anteriormente, em sua charmosa trilha sonora de hits dos 'swinging' anos 20. Sim, 'Magia ao Luar' é um filme esteticamente encantador. E isso, por si só, já merece atenção. O filme infelizmente saiu de cartaz dos cinemas de Sampa, mas, se você tiver a possibilidade de vê-lo em outro lugar, vale a pena!

Ficha técnica parcial

Direção: Woody Allen 

Elenco: Colin Firth, Emma Stone, Jackie Weaver (Grace, uma viúva milionária), Harrish Linklater (Brice, filho da viúva), Eileen Atkins (Tia Vanessa) e outros.

domingo, 26 de outubro de 2014

Os segredos dos vinhos da Bourgogne por Guillaume Turbat, no Empório Adega Pelotas.

Há algumas coisas que realmente me dão prazer nessa vida, como tomar um bom vinho e aprender algo novo. Quando consigo juntar ambas, então, tenho o melhor dos mundos! E assim fui parar em mais uma aula sobre vinhos, desta vez no Empório Adega Pelotas, na Vila Mariana.

O Empório Adega Pelotas, local do curso  - Foto: Simone Catto

Nosso professor foi o jovem e simpático sommelier francês Guillaume Turbat, da distribuidora e escola Chez France, que nos desvendou alguns mistérios dos tintos e brancos da região de Bourgogne, classificados entre os melhores do mundo por sua constância de qualidade, sutileza e elegância.

É realmente impressionante como um pedaço de terra relativamente pequeno – cerca de 175 km² – possa conter tanta complexidade de terroirs. Vale reforçar que os terroirs são definidos pelas características dos climats (também conhecidos como lieux-dits, parcelas delimitadas de solo com condições geológicas e geográficas específicas) e pelo modo de cultivo pelo homem. Extremamente fragmentada, a região tem mais de 100 AOC, (Appellation d’Origine Contrôlée), cerca de 28.000 hectares de vinhedos e aproximadamente 3.800 vinícolas, sendo que só 20% possuem mais de 20 hectares. A mundialmente famosa Domaine de la Romanée-Conti, por exemplo, tem menos de 0,8 hectares, acredite! Sim, a Bourgogne é totalmente "fatiada", por assim dizer.

Nosso professor, Guillaume Turbat, a postos para iniciar a aula que teve uma deliciosa
degustação de vinhos borgonheses - Foto: Simone Catto

Guillaume nos explicou que tamanha complexidade e diversidade têm origem lá atrás, na Idade Média, quando os monges beneditinos começaram a cultivar as vinhas e iniciaram essa hierarquização do solo até o século XI. Quatro séculos mais tarde, os Duques de Bourgogne, que tinham preferência pelas uvas Chardonnay e Pinot Noir, intensificaram o cultivo dessas cepas, dando origem a uma tradição que se tornou característica da Bourgogne: quase a totalidade dos vinhos tintos produzidos lá são feitos somente com uva Pinot Noir, e quase todos os brancos levam apenas a Chardonnay.

Em nossa aula, tivemos a oportunidade de degustar dois vinhos brancos e três tintos. Dos brancos, destaco o delicioso Chablis do Domaine Maurice Lecestre, safra 2012, fresco e cheio de personalidade. Entre os tintos, meu preferido foi o Domaine Yves Girardin Santenay – 1er Cru La Maladière, safra 2011, com um toque de frutas vermelhas e saborosíssimo. Para quem quisesse levar algum para casa, todos os rótulos degustados estavam disponíveis na Adega por preços que variavam entre R$ 70,00 e R$ 159,00.




A próxima aula no EMPÓRIO ADEGA PELOTAS, também ministrada por Guillaume Turbat, abordará champanhes e espumantes e será realizada no dia 8 de novembro (sábado), das 10h30 às 12h30. Se você também aprecia o prazer e a delicadeza da bebida mais festiva do mundo, vale a pena participar! A aula custa R$ 130,00 e o endereço é Rua Pelotas, 299F - Vila Mariana. Tels.: 3744-8860 / 5082-5106 – www.adegapelotas.com.br. Tim-tim!

sábado, 25 de outubro de 2014

31ª Bienal de Artes de São Paulo: como falar de uma arte que não existe.

Em dois anos tudo pode piorar. Não, não estou falando da crise de abastecimento de água em São Paulo. Tampouco estou me referindo ao trânsito cada vez mais caótico dessa cidade insana. Estou falando de arte, mesmo. Mais precisamente, da 31ª Bienal de Artes de São Paulo, cuja temática é, sintomaticamente, 'Como (...) coisas que não existem'. Assim mesmo, com esses parênteses no meio. Só que, para mim, o que não existe por lá é arte. Soa polêmico? Sim, naturalmente. Mas cada um tem o direito de emitir sua opinião, e é disso mesmo que vou falar.

Foto: Simone Catto
Dois anos atrás, escrevi uma resenha neste blog sobre a edição anterior desse importante evento das artes que a cidade de São Paulo sedia desde 1951 e que está entre os mais respeitados do mundo. Na ocasião, em 2012, questionei seriamente se tudo o que havia visto e presenciado no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, no Parque Ibirapuera, poderia ser classificado como arte, ou se boa parte das obras lá expostas não constituiriam tão somente meras expressões da individualidade de um sujeito. Mesmo assim, naquele ano algumas obras chamaram minha atenção pela forma criativa, bela ou pungente como transmitiam uma ideia ou propósito.

Desta vez, no entanto, saí da 31ª edição da Bienal com a sensação de ter presenciado um grande engodo. É triste, mas é verdade. Mentir para quê? Posso dizer, com todas as letras, que não vi uma só obra que tivesse me impactado de maneira positiva ou significativa, mesmo que fosse para transmitir um protesto, uma mensagem política ou uma catástrofe. Sim, porque coisas feias podem ser ditas de formas bonitas. Ou, melhor dizendo, podem conter uma estética peculiar que impacta o receptor de alguma forma. No caso da 31ª Bienal, essa estética poderia ser traduzida, por exemplo, em obras realizadas com materiais criativos ou inusitados e/ou dispostos em uma composição curiosa ou visualmente interessante. Tudo o que não vi por lá. E vale ressaltar que essa percepção não foi só minha, os amigos que me acompanharam na visita sentiram o mesmo. Foi impossível não notar, inclusive, a quantidade de espaços vazios no Pavilhão. De cara, deu para sentir que o número de obras expostas é bem inferior ao da edição de 2012, o que foi corroborado no momento em que fui comparar os dados dessas duas últimas Bienais: a de 2012 teve 3.000 mil obras de 111 artistas. E esta tem cerca de 250 obras pertencentes a 82 projetos de criação individual ou coletiva.

E assim se fez o vazio... cadê as obras que deveriam estar aqui? - Foto: Simone Catto

Segundo o principal curador desta edição, o escocês Charles Escher, "esta não é uma Bienal fundada em objetos de arte, mas em pessoas que trabalham com pessoas que, por sua vez, trabalham em projetos colaborativos com outros indivíduos e grupos...". Ora, se o próprio curador afirma que "esta não é uma Bienal fundada em objetos de arte", certamente não estou errada ao dizer que não vi arte por lá, correto? E qual o objetivo desses projetos aos quais ele se refere? Retratar as diversas "convulsões" que ocorrem agora pelo mundo, seja no âmbito social, cultural, político ou religioso. Vamos convir que convulsões é o que mais existe em nosso conturbado planeta. Sobretudo porque atualmente somos muito mais bem-informados sobre o que ocorre em qualquer parte. No entanto, repito, na mostra não há uma só obra - ou "projeto" - que, a meu ver, transmita o impacto de quaisquer dessas convulsões de forma criativa.

Foto: Simone Catto
Para começar, o que mais se vê na 31ª Bienal são vídeos. Sim, eles proliferam de forma assombrosa a cada edição do evento. Há vídeos de tudo quanto é tipo. Alguns retratam experimentos de artistas, outros protestam contra a injustiça sofrida por determinados povos, outros denunciam catástrofes ambientais, e por aí vai. Ocorre que não é de agora que questiono a adequação do formato "vídeo" para uma exposição de arte. Posso até ser chamada de herege por alguns, mas vídeos a gente assiste no conforto do lar ou diante de uma tela de cinema. Até por uma questão de comodidade. Aliás, toda vez que entro em uma daquelas salas escuras da Bienal para assistir a um vídeo em pé, minha pressão cai e fico zonza. Meus amigos são testemunhas! E tem outra: grande parte dos vídeos que são exibidos por lá poderiam ser classificados tranquilamente como documentários. E é inegável que documentários são muito melhor assimilados se visualizados em um lugar apropriado para isso. É o caso do filme 'A Família do Capitão Gervásio', do dinamarquês Kasper Akhøj (1976) e da mineira Tamar Guimarães (1967), que retrata as atividades e sessões de cura dos médiuns do Centro Espírita Luz da Verdade, na cidadezinha de Palmelo, interior de Goiás. Outro exemplo é o filme 'Cabine Telefônica Aberta', da turca Nilbar Güreş (1977), que mostra o drama dos habitantes da cidade de Bingöl, no Curdistão, onde vive parte da família da artista. Pertencentes às minorias curda e alevita, os habitantes locais são fortemente discriminados pelo governo central, que lhes nega acesso à infraestrutura mais básica, como os serviços de telefonia. No vídeo, a artista registra as soluções criativas do povo para contornar as dificuldades diárias. É uma denúncia? Sim, sem dúvida. É válido denunciar? Naturalmente. Mas... é arte? Para mim, não. É um documentário criativo. E ponto. 

Mesmo assim, consegui assistir a um vídeo do início ao fim: 'Inferno', da israelense Yael Bartana (1977), que simulou a destruição, por alguma espécie de cataclisma, da réplica do 'Templo de Salomão' construído em São Paulo pela Igreja Universal do Reino de Deus. O templo paulistano, um monumento ao mau-gosto e à megalomania que se pretende uma "reconstrução" da construção bíblica homônima da qual restou hoje o Muro das Lamentações, em Israel, foi erigido com materiais vindos diretamente daquele país e custou centenas de milhões de dólares, gerando boa dose de polêmica e indignação. Vale destacar que o filme, cujo elenco inclui vários figurantes anônimos, tem efeitos especiais bem inferiores àqueles aos quais estamos habituados no cinema, sobretudo no momento da catástrofe. Contudo, se o objetivo é protestar contra a ostentação cafona, a manipulação para fins mercantis e a ingenuidade de boa parte do povo brasileiro, OK, está valendo. Porém, de novo pergunto: é arte? Bem... você, o que acha?

E a vertente "documental" não fica só nos vídeos. Obras como 'A última aventura: Transamazônica', da jovem artista gaúcha Romy Pocztaruk (1983), estão aí para provar. Trata-se de um conjunto de fotos do entorno da Rodovia Transamazônica, um monstro inacabado de 4.000 km concebido durante a ditadura militar para cruzar o país de leste a oeste. Durante um mês, em 2011, a artista percorreu parte do trajeto da rodovia e registrou imagens do que sobrou, bem como os vilarejos que nasceram em seu rastro. Valeu enquanto registro fotográfico e curiosidade histórico-sociológica.

Romy Pocztaruk - 'A Última Aventura: Transamazônica' (2011) - Foto: Simone Catto

Romy Pocztaruk - 'A Última Aventura: Transamazônica' (2011) - Foto: Simone Catto

A primeira obra com que me deparei, tão logo cheguei à exposição, é o conjunto de imensas pinturas murais do paraense Eder Oliveira (1983), que nos impactam de imediato ao subirmos a rampa de acesso ao primeiro andar. São retratos de homens envolvidos em crimes e retirados das páginas da imprensa sensacionalista paraense, em sua maioria caboclos com traços negros e indígenas. O trabalho é uma denúncia social contra a discriminação desses seres excluídos, mas as imagens, que em seu contexto original estão espalhadas pelos muros de Belém, perderam muito de sua força ao ser transpostas para as paredes frias da Bienal. Uma coisa é a gente topar com uma pintura dessas andando pelas ruas, e outra é encontrá-la em um espaço fechado: descontextualizadas, elas perdem o sentido. Porque é fato que determinadas obras de arte estão indissociavelmente vinculadas ao espaço onde se encontram – sobretudo trabalhos de street art, como é o caso deste aqui.

O excluídos do paraense Eder Oliveira em pintura mural (2014) - Foto: Simone Catto

E aqui, uma das pinturas em seu contexto original: muito mais força e sentido! - Foto: www.31bienal.org.br

Em determinado momento, encontrei um dos projetos coletivos mencionados pelo curador: 'Dios es marica' ('Deus é bicha'). Organizado por Miguel A. López, o projeto reúne obras criadas entre o fim dos anos 70 e o fim dos anos 80 por quatro artistas de língua espanhola, cada um de uma nacionalidade: Nahum Zenil (1947), do México; Ocaña (1947-1983), da Catalunha – Espanha; Sergio Zevallos (1962), do Grupo Chaclacayo – Peru; e a dupla Yeguas del Apocalipsis (Pedro Lemebel - 1955 e Francisco Casas - 1959), do Chile. Vemos, então, pinturas, fotografias e vídeos de performances que empregam, segundo os curadores, "a teatralização do gênero, o travestismo e a paródia de imagens associadas à religião e à história cultural e política (...) em contextos que enfrentavam fortes crises econômicas, violência social, ditaduras e/ou processos de transição democrática". Em todas as obras há alguma forma de afronta sexual de cunho religioso. Ora, se o objetivo era pretensamente político, como indica o texto dos curadores, por que somente a Igreja foi atacada? Isso até faria algum sentido – apesar do mau gosto explícito - se a intenção do grupo fosse unicamente protestar contra a hipocrisia sexual do Catolicismo ou de outras religiões. Com objetivos diluídos e uma proposta vazia de um real significado, no entanto, parece-me que o único fim que esse grupo pretendeu foi chocar por chocar, não importa por quais meios fossem – e em minha opinião, o fez da forma mais rasteira possível.

Coletivo de Arte Yeguas del Apocalipsis (Pedro Lemebel e Francisco Casas) - 'Las dos Fridas' (1989-2014),
 em fotografia de Pedro Marinello - Foto: Simone Catto

A instalação 'Martírio', do maranhense Thiago Martins de Melo, é mais uma obra de protesto, desta vez contra a economia de exploração que prevalece na Amazônia desde os tempos do descobrimento. O artista mescla a pintura de alegorias com a escultura em um conjunto colorido e rebuscado para homenagear os "mártires amazônicos", isto é, "centenas de trabalhadores e líderes comunitários que morreram anonimamente na luta pela defesa da terra". Já vi isso antes, provavelmente em outras Bienais.

Thiago Martins de Melo - 'Martírio' (2014) - Foto: Simone Catto

Diante de tudo o que vivenciei, permaneceu a sensação de que a tal intenção de "protesto" político-social caiu no vácuo. Trata-se de uma Bienal pobre de recursos e absolutamente anêmica de ideias e criatividade que deve estar gerando protestos é no público visitante, isso sim. Que saudades das Bienais de verdade!

Em tempo: parece que o descaso da curadoria e dos organizadores atingiu inclusive o site oficial dessa 31ª Bienal (www.31bienal.org.br), já que lá eles sequer tiveram o cuidado de fornecer os dados biográficos mais básicos dos artistas, como a data de nascimento, a nacionalidade e eventuais informações relevantes. Que feio.

Quer arriscar? A 31ª BIENAL DE SÃO PAULO está no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, Parque do Ibirapuera, e tem entrada franca. Abre às terças, quintas, sextas, domingos e feriados das 9h às 19h, e quartas e sábados das 9h às 22h. Até 7/12.

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Urbe Café. Variedade, qualidade e alto-astral num blend irresistível.

Quem me conhece sabe como adoro papear e filosofar diante de uma boa xícara de café. Sobretudo quando tenho, à minha frente, gente querida e inteligente. Sábado tive novamente esse prazer. Após uma aula no MASP e um almoço delicioso no Gopala Madhava, na região da Consolação, foi só atravessar a rua para chegar ao Urbe Café, um de meus preferidos.

A fachada do Urbe, com mesas na calçada - Foto: Divulgação /Urbe Café

Eu gosto do Urbe por várias razões, todas absolutamente no mesmo nível de importância. Primeiro, a casa tem um ambiente descolado que eu adoro, com aquela aura de acolhimento encontrada somente nos lugares que abrem todos os dias e até muito tarde (ou "cedo", dependendo do ponto de vista! rs) O atendimento é atencioso e gentil. Além disso, há o público que o frequenta. Durante o almoço, são profissionais que trabalham na região da Paulista – o que inclui, naturalmente, gente de todas as idades e profissões. À noite e nos fins de semana, o ambiente fica ainda mais interessante. Predominam os moradores da região, pessoas que saem dos vários cinemas do entorno, casais, a turma GLS, culturetes e por aí vai.

Além do salão principal, a casa tem um mezanino e também algumas mesas na parte externa, para quem fuma ou quiser aproveitar um dia ou noite mais quente.

O aconchegante ambiente interno em foto tirada do mezanino - Foto: vejasp.abril.com.br

Vista parcial do salão e do balcão - Foto: Simone Catto

O cardápio é extenso. Há algumas opções de pratos leves para almoço e jantar, mas o forte, naturalmente, é a grande variedade de cafés quentes ou frios, um mais saboroso que o outro!

Irish Coffee - Foto: Divulgação / Urbe Café

O Cappuccino Vienense, que leva nutella e chantilly, com uma tentadora
porção de pães de queijo... nham! - Foto: Divulgação / Urbe Café

O café na Prensa Francesa, como é chamado no Urbe, é preparado em uma jarra de vidro ou plástico com um sistema que usa um êmbolo. Como o filtro de metal do êmbolo não absorve os óleos essenciais do café, ele fica mais complexo e intenso. Deve ser interessante observar o processo, ainda mais que ele tem um lado ecologicamente correto por não empregar energia elétrica nem filtro de papel. Vou experimentar um desse na próxima vez!

Café preparado na Prensa Francesa - Foto: Divulgação / Urbe Café

E não para por aí: a casa também tem grande oferta de drinks, desde clássicos como a margarita e o cosmopolitan até caipirinhas e invenções como o Bossa Nova, que leva cachaça, mate gelado, geleia de jabuticaba, laranja e limão. Para os mais comportados, há chás, shakes e sucos variados que podem ser degustados com várias opções de doces e salgados. Sim, o Urbe tem de tudo para todos os gostos!

Waffle com nutella, doce de leite, bananas fatiadas bem fininhas e sorvete de baunilha.
Quem resiste? - Foto: Divulgação / Urbe Café

No sábado, tomei um café coado no coador Hario V60. A atendente coa o café na própria mesa, à sua frente. É interessante observar o processo, mas... achei o café meio fraco. Tudo bem que não gosto de cafés extremamente fortes, mas um pouco mais de corpo faz bem! Um amigo pediu o chocolate quente com marshmallow, uma 'gordice' com só-Deus-sabe quantas calorias! (rs)

Dois dos nossos pedidos: o meu, café coado no coador Hario V60, e o chocolate quente com marshmallow.
 
Foto: Simone Catto

Uma ótima notícia, sobretudo para quem mora perto, é que o Urbe Café serve um brunch de quinta a domingo, das 10h às 15h. Perfeito para quando 'bater' aquela preguiça de fim de semana!

Itens servidos no brunch de quinta a domingo - Foto: Divulgação / Urbe Café

Você também é apaixonado(a) por café? Gosta de experimentar blends diferentes? Então com certeza vai gostar do ambiente e do cardápio do URBE CAFÉ. Vá lá: Rua Antônio Carlos, 404 – Consolação. Tel.: (11) 3262-3943. Abre às segundas-feiras das 12h à 01h30, terças a quintas das 10h à 01h30 e sextas e sábados das 10h às 04h.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Bar Paralelo 12:27, na Vila Mariana. Refúgio garantido de domingo a domingo.

Um das coisas que São Paulo tem de bom é que a gente nunca fica órfã no quesito "comer e beber", pois existem bares e restaurantes que abrem todos os dias. Isto significa que, se você sair de uma sessão tardia do cinema ou do teatro num domingão à noite, não precisará rodar muito à procura de um lugar para matar a fome ou simplesmente beber alguma coisa.

Um bar que abre todos os dias é o Paralelo 12:27, na rua Joaquim Távora, reduto gastronômico da Vila Mariana. Inaugurado em 2004, ele é muito parecido no estilo e na proposta com o vizinho 'Genuíno', com a diferença de que não tem a área avantajada nem o quintal ajardinado que fez a fama do concorrente mais veterano. Mesmo assim, o Paralelo é um bar extremamente agradável, perfeito para as noites de verão que estão vindo por aí, já que na frente há uma área aberta bem gostosa. Meu ponto favorito é o mezanino mais ao fundo, que é mais reservado e permite uma visão estratégica do lugar. O interior também é acolhedor e arejado.

A área à frente do bar é a mais gostosa, sobretudo a que fica na parte mais elevada, no mezanino.
Foto: www.paralelo1227.com.br

Detalhe da área interna - foto: Simone Catto

Outro ângulo do salão interno - foto: www.paralelo1227.com.br

Entre os frequentadores do bar estão estudantes da ESPM e da Faculdade Belas Artes, ali pertinho, o pessoal que trabalha na região e, logicamente, os próprios moradores da Vila Mariana que desejam papear e beber alguma coisa sem pegar trânsito e confusão.

Há um senão para quem, como eu, vai a bares para bater papo sem muvuca e detesta futebol: o site da casa diz que há música ao vivo de quarta a sábado e que todos os jogos dos campeonatos Paulista e Brasileiro são transmitidos em um telão. Felizmente, nos dias em que lá estive não havia música nem jogo, de forma que minha experiência foi ótima. Vale a pena dar uma ligada antes para checar!

O cardápio, farto, tem todos os clássicos dos bons botecos e um pouco mais: cachaças nobres, cervejas nacionais e importadas, caipirinhas, drinks variados e comidinhas para todos os gostos, desde petiscos usuais como frango à passarinho, pastéis, bolinhos variados e outros, passando pelo filé mignon aperitivo à milanesa, a calabresa na cachaça, picanha na chapa e o escondidinho de carne seca desfiada coberta com purê de mandioca e catupiry, entre muitas outras opções. Se a fome for muita e você quiser algo com mais "sustância", o bar também serve sanduíches e alguns pratos. Em minha última visita, optei pelo escondidinho, muito bem servido e saboroso.

O escondidinho de carne seca desfiada com purê de mandioca e catupiry cumpriu plenamente sua função!
Foto: Simone Catto

Adivinhe o que pedi para acompanhar?... Sim, ela mesmo... a clássica, imbatível e inigualável caipirinha de limão com cachaça (R$ 14) que, no meu caso, foi a 'Espírito de Minas'. Delícia!

A caipirinha clássica também fez bonito!
Foto: Simone Catto

O PARALELO 12:27 abre de domingo a domingo das 12h à 01h e fica na Rua Joaquim Távora, 1227 – Vila Mariana. Tel.: 5579-1227. Para consultar o cardápio na íntegra, acesse www.paralelo1227.com.br (aliás, bem que eles poderiam dar um jeito no layout do site, que é bem feinho...) Fica a dica!

domingo, 28 de setembro de 2014

'Eu, Christiane F., a vida apesar de tudo': não leia se estiver deprimido!

Há livros que a gente lê porque têm uma temática que para nós é absolutamente apaixonante. Outros nós lemos porque consideramos edificantes, isto é, temos certeza de que vão nos acrescentar algum aprendizado. Há livros, porém, que não são nem uma coisa nem outra: lemos por mera curiosidade e, depois, ficamos com uma sensação de vazio. Esse foi o caso de Eu, Christiane F., a vida apesar de tudo, relato autobiográfico de Christiane V. Felscherinow escrito em dobradinha com a jornalista Sonya Vukovic. 

Para quem não sabe ou nasceu após a década de 70, o livro é continuação de um best-seller de 1979 que estourou nas livrarias do mundo todo: Eu, Christiane F., 13 anos, drogada, prostituída. Na ocasião, a obra chocou os leitores ao retratar, sem meios-tons ou meias-palavras, exatamente aquilo que o título diz: a rotina e o universo de uma adolescente alemã de 13 anos afundada no vício da heroína e sendo obrigada a se prostituir para adquirir a droga. A jovem Christiane deu seu depoimento aos jornalistas Kai Hermann e Horst Rieck e, posteriormente, o livro foi até adotado em escolas da Alemanha para alertar as crianças quanto aos perigos das drogas.

Nesta continuação, trinta e cinco anos depois, Christiane tem 51 anos e ficamos sabendo que seu calvário não terminou, definitivamente, com o fim de sua primeira autobiografia. Todos teriam preferido imaginar que aquela garota, ainda uma criança, tivesse feito um tratamento sério de desintoxicação, achado um rumo na vida, estudado, casado, sido feliz, enfim, que tivesse se tornado uma mulher liberta de uma infância sombria. Afinal, ela ainda era tão jovem! Porém, não foi o que aconteceu: a sombra do vício sempre perseguiu Christiane. Por vezes ela seguia tratamentos de desintoxicação e até conseguia permanecer "limpa" - como se diz por aí – por algum tempo, mas logo acabava consumindo novamente alguma droga. Se não fosse a heroína, era o LSD, a bebida, os comprimidos... sempre uma espécie de fuga que a mergulhasse em torpor, porque simplesmente não conseguia suportar sua existência.

Christiane hoje, aos 51 anos, em foto de Marcel Mettelsiefen.
O mais funesto disso tudo é que, não importa aonde Christiane fosse, sempre acabava atraindo, em torno de si, pessoas conectadas com as drogas de alguma maneira, em uma espécie de sintonia macabra. Se mudasse de cidade ou até de país, logo estava em contato com os junkies ou traficantes locais. É o que ocorreu quando morou na Grécia e apaixonou-se por uma espécie de hippie que, obviamente, também consumia drogas, e viveu com ele uma história de amor que durou algum tempo. 

Em 1986, Christiane chegou a ficar um ano encarcerada em um presídio feminino. Fiquei chocada em constatar que até na Alemanha, um país dito "desenvolvido", as prisões são violentas e prisioneiras podem se matar sem que as carcereiras ou o Estado tomem qualquer tipo de atitude. Pelo menos é o que ela relata sobre sua prisão na década de 80 – não sei como estão as coisas por lá hoje.

Um filho, Phillip, fez com que Christiane recobrasse a sanidade por algum tempo. Ela tentou ser, para ele, tudo o que seus pais não haviam sido para ela. Ambos eram pessoas egoístas, ausentes, desprovidas de afeto e incapazes de dirigir gestos de carinho às duas filhas. Por isso, ela cercou Phillip de amor e cuidados, agia de forma responsável com a educação e os horários do menino, fazia-lhe companhia, brincava com ele, enfim, fazia tudo aquilo que uma mãe prestimosa faz com gosto. Pelo menino, a quem ela sempre amou, fez e faz qualquer sacrifício e tentou poupá-lo ao máximo dos fantasmas de sua triste trajetória. Só que Christiane não conseguia se livrar das más companhias e, certa vez, o menino chegou até a sofrer um sequestro por um suposto "amigo". Para que o Estado não lhe tomasse o filho, chegou a fugir desvairadamente com ele, mas, quando Phillip tinha uns 11 anos, os assistentes sociais o entregaram a um lar adotivo que também cuidava de outras crianças em situação de risco. Christiane ficou dilacerada. Embora Phillip tivesse sido entregue a uma família cordial com a qual ela tivesse permissão de ter contato e inclusive contribuía financeiramente para auxiliar no sustento do filho, a dor dessa separação foi-lhe insuportável. Quando Phillip foi embora, Christiane mergulhou novamente na espiral descendente de descontrole das drogas.

Uma foto de Christiane jovem no Sunset Boulevard,
para a divulgação de filme baseado em sua vida.
Um outro aspecto aterrador é que, até nos últimos tempos, o Estado alemão tem vigiado Christiane de muito perto. Várias vezes, ao sair e retornar para casa, ela percebe que outras pessoas estiveram em seu apartamento. É assustador. Mas o pior, sem dúvida, são as sequelas terríveis na saúde por causa da verdadeira montanha-russa a que submeteu seu maltratado organismo desde muito nova. Há décadas seu fígado está inflamado, ela sofre de hepatite C, transpira o tempo todo, tem os braços cobertos de feridas e é acometida de muitos outros males. Pode-se dizer que Christiane é uma sobrevivente, e nem ela mesma consegue entender como conseguiu estar viva até agora.

O único aspecto positivo de sua vida, hoje, é que Christiane tem uma ótima relação com o filho adolescente, um menino aplicado e bem-ajustado que gosta de computadores e tem amigos. Interessa-se por sua vida, encoraja-o a estudar e conhecer o mundo, mas não sabe se ainda estará por aqui quando isso acontecer, pois pressente que seu fim está próximo.

Diante de tudo isso, só posso dizer que, no saldo final, Eu, Christiane F., a vida apesar de tudo é um livro um bocado barra-pesada que não acrescentou nada de bom à minha experiência. Só fez com que eu lamentasse, e muito, a infelicidade dessa mulher e de tantas outras pessoas prisioneiras das drogas, independentemente de país ou classe social.

Renato Brolezzi revela Ticiano, o mago da cor do século XVI.

Quando a gente menciona a época do Renascimento nas artes, é natural que todo mundo pense imediatamente no fenômeno que ocorreu no século XVI em Florença, cujos maiores representantes são Leonardo da Vinci e Michelangelo. O que muita gente não sabe é que ocorreu um Renascimento artístico também no norte da Itália, no mesmo século XVI. O polo irradiador foi Veneza que, já naquela época, era uma próspera e cosmopolita metrópole que chegou a abrigar 800 mil habitantes devido a seu intenso comércio com o Oriente. Foi nesse contexto que nasceu Tiziano Vecellio (c.1490-1576), o "mestre da cor" e, possivelmente, maior representante do Renascimento no Norte da Itália.

Esse grande mestre foi tema de mais uma aula lotada do prof. Renato Brolezzi no Grande Auditório do MASP, que teve como ponto de partida a pintura Retrato do Cardeal Cristoforo Madruzzo, de 1552. A obra faz parte do acervo do MASP, assim como todas as demais abordadas nos cursos ministrados pelo prof. Brolezzi no museu, e em 1992 teria sido restaurada pela Fundação Getty de Los Angeles.

Ticiano - Retrato do Cardeal Cristoforo Madruzzo (1552) - MASP
Mas vamos a Ticiano. Celebrado como o maior “pintor da terra” do século XVI, nasceu numa cidade próxima a Veneza e se mudou para lá quando tinha entre 10 e 12 anos de idade. Em Veneza teve aulas com alguns mestres, dos quais se destacam Giovanni Bellini (1429-1507) e Giorgione (c.1477-1510), que também frequentava o ateliê de Bellini e com quem trabalhou em conjunto nos seus primeiros anos. Posteriormente, Ticiano tornou-se amigo de intelectuais e poetas, como Ludovico Ariosto, de quem pintou um retrato. Grande retratista, o mestre veneziano tornou-se muito requisitado pelos aristocratas, pintando reis, rainhas, nobres e outros "figurões", como o cardeal que aparece na pintura-tema de nossa aula. Devido a seu enorme talento e conexões, ao contrário de tantos grandes artistas que morreram na miséria, Ticiano havia acumulado grande riqueza ao fim da vida.

Agora vamos ao retratado. Notório advogado, diplomata e intelectual, o cardeal Cristoforo Madruzzo pertencia a uma poderosa família da cidade de Trento. Político extremamente hábil e bem relacionado, foi nomeado pelo Papa Paulo III Farnese dignatário do famoso Concílio de Trento, entre 1545 e 1563. Para quem não lembra, o Concílio de Trento foi uma tentativa de conciliação dos católicos com os luteranos do Norte.

O mais extraordinário nessa pintura, assim como em outras de Ticiano, é que estudos e fotos de raio-X do quadro constataram que não há linhas sob as cores, mas apenas tinta pura! É isso mesmo: Ticiano modelava suas imagens sem desenho, apenas pela aplicação de cor. Jogava com os pigmentos e manipulava as figuras somente com manchas cromáticas, uma inovação que lhe valeu a alcunha de "grande alquimista da matéria", por se apropriar dela e lhe infundir transcendência. É impressionante como Ticiano consegue reproduzir, com grande riqueza e perfeição, as texturas de diferentes tecidos, peles e superfícies, apenas manejando o empastamento de cores. Essa habilidade foi reconhecida e mencionada pelo próprio Giorgio Vasari, artista seiscentista que se notabilizou pela biografia de grandes artistas e é considerado o primeiro historiador de arte. Aliás, vale ressaltar que, enquanto Florença privilegiava a linha, o Norte da Itália destacou-se pela maestria de seus artistas no manejo de diferentes pigmentos coloridos.

Quem tiver o privilégio de contemplar a obra ao vivo, no MASP, notará que o negro da capa do cardeal não era "totalmente" negro: existem muitas cores ocultas ali, tais como azuis, vermelhos e verdes, o que fazia parte da estratégia cromática de Ticiano.

O quadro é extremamente sintético e constituído de apenas quatro elementos: o cardeal, a cortina, o relógio e o feixe de cartas nas mãos do cardeal. Ele abre a cortina como se quisesse nos revelar algo, no caso uma mesinha de trabalho, dando-nos a entender, de alguma maneira, que estamos diante de um homem muito importante. É interessante que, embora o cardeal fosse extremamente poderoso, ele não parece arrogante na pintura. Vale destacar que o relógio é um elemento muito frequente nas obras de Ticiamo, como se ele quisesse nos lembrar, permanentemente, do caráter fugaz do tempo.

Vamos, agora, analisar outras obras do mestre. Abaixo está o Retrato do Papa Paulo III com Alexandre e Otavio Farnese (1546). Os rapazes eram sobrinhos do pontífice e tinham a incumbência de administrar as finanças da Santa Fé. Uma curiosidade: a palavra "sobrinho", em italiano, é "nipote". Daí a origem da expressão "nepotismo" para designar o favoritismo para com parentes, especialmente pelo poder público. Sim, história da arte é cultura, sempre!

Ticiano - Retrato do Papa Paulo III com Alexandre e Otavio Farnese (1546)

A seguir está a Ascensão da Virgem (1516-1518), primeira grande obra de Ticiano para a igreja Santa Maria Gloriosa dei Frari, reduto da família Frare em Veneza e local onde o mestre está sepultado. Temos um esquema retangular na parte inferior, onde estão dispostos os apóstolos, e outro circular na porção superior, onde estão a Virgem com os querubins em um espécie de ciranda e a figura de Deus Pai mais acima. Note que a Virgem está no vértice de um triângulo imaginário que tem como base os dois apóstolos de vermelho.

Ticiano - A Ascensão da Virgem (1516-18)

É na igreja Santa Maria Gloriosa dei Frare que também está uma das mais célebres obras de Ticiano, a Madona de Pesaro (iniciada em 1519 concluída em 1528), encomendada pelo nobre Jacopo Pesaro como agradecimento aos céus pela grande vitória dos cristãos contra o Império Otomano na batalha da Ilha de Maura, Grécia, em 1502. No quadro vemos um alferes porta-bandeira arrastando um prisioneiro turco, o personagem de turbante.

Ticiano - Madona de Pesaro (1519-1528)

O aspecto mais inovador dessa pintura é que Ticiano subverteu totalmente a perspectiva central da Renascença, deslocando a Virgem e o Menino Jesus para a lateral, em uma radical mudança de ponto de vista. Em primeiro plano, estão Jacopo Pesaro e seu irmão, ajoelhados. Atrás do nobre de vermelho está o resto da família Pesaro. Vemos também São Pedro, com o livro aberto, bem como São Francisco e Santo Antônio à direita da Virgem.

A seguir está o Retrato de Federico II de Gonzaga (1529), príncipe de Mantova. A imagem do cãozinho dando a pata pode ser interpretada como um símbolo da domesticação da natureza pela razão.

Ticiano - Retrato de Federico II de Gonzaga (1529) - Museu do Prado

Abaixo está o Retrato de Eleanora Gonzaga della Rovere (1536-1538), filha de Federico II. Novamente aparece o relógio, ícone recorrente na pintura de Ticiano.

Ticiano - Retrato de Eleonora Gonzaga della Rovere (1536-1538)

O Autorretrato de Ticiano, a seguir, foi pintado em 1568 e revela grandes manchas cromáticas típicas do final de sua vida, quando houve um "quase derretimento da forma", segundo as palavras do prof. Renato Brolezzi.

Ticiano - Autorretrato (1568)

Abaixo está Carlos V na Batalha de Mühlberg (1548). Rei da Germânia e Itália e pai de Felipe II, rei da Espanha, Carlos V era um homem extremamente poderoso que governou por quase quarenta anos e tinha, sob seu comando, a área que hoje equivale à Alemanha. Renunciou ao poder pouco antes de morrer, em um convento. O cavalo, aqui, possui uma simbologia própria, mostrando que o rei conduz a natureza lado a lado, em igualdade de forças, ao invés de domesticá-la. Note as cores da pintura, realmente deslumbrantes!

Ticiano - Carlos V na Batalha de Mühlberg (1548) - Museu do Prado

Grande pintor também de temas mitológicos, Ticiano criou obras como O Bacanal (1523-1526), uma de suas primeiras pinturas, na qual já podemos notar grande riqueza cromática. Dá para perceber, também a semelhança com a obra 'Festim dos Deuses' (1514-1529), de seu professor Giovanni Bellini.

Ticiano - O Bacanal (1523-1526) - Museu do Prado

Giovanni Bellini, mestre de Ticiano - O Festim dos Deuses (1514-1529)

Na próxima pintura, Baco e Ariadne (1520-23), as poses das figuras estão um tanto teatrais. Baco chega numa ilha em uma carruagem de ouro puxada por panteras, ao lado das bacantes e dos faunos. Lá encontra Ariadne e se apaixona, mas ela ainda sofre por ter sido abandonada por Teseu, filho de Zeus e Danae.

Ticiano - Baco e Ariadne (1520-1523) - National Gallery, Londres

A próxima obra de temática mitológica, Danae recebendo a Chuva de Ouro (1553), narra a história da mãe de Teseu, o jovem que partiu o coração da pobre Ariadne da obra anterior. Esta é uma pintura extremamente sensual - diz-se, mesmo, que Ticiano criou a poesia erótica pictórica, a qual ele mesmo denominava "poesia pintada". Aqui, vemos a jovem Danae trancafiada no porão por seu pai Acrísio, porque ele havia ouvido uma profecia de que seria morto por um neto e, mantendo a filha longe dos homens, ela não teria como conceber uma criança. Danae era guardada por uma escrava, mas Zeus a avistou dos céus e se apaixonou. Como não era bobo nem nada, Zeus então provocou uma chuva de moedas de ouro para atrair a escrava para fora, ela saiu deixando uma fresta da porta aberta e Zeus entrou no porão disfarçado em névoa. Lá dentro, se metamorfoseou num belo jovem e o resto da história dá para imaginar... Danae engravidou e então nasceu Teseu. Anos mais tarde, o avô Acrísio e o neto se reencontraram numa festa e, ao arremessar um disco, o neto sem querer atingiu o avô, que morreu, concretizando a profecia. Os deuses não perdoavam nada!

Ticiano - Baco e Ariadne recebendo a Chuva de Ouro (1553)

O políptico Ressurreição de Cristo, um óleo sobre madeira de 1522, é um dos primeiros noturnos da história da arte. Do lado esquerdo, ajoelhado, está Altobello Alveroldi, o nobre que encomendou o quadro em 1520. E do direito, estão a Virgem e São Sebastião em seu martírio. Nesta imagem não dá para visualizarmos, mas a data de 1522 está do lado direito, junto da representação de São Sebastião.

Ticiano - Ressurreição de Cristo (1522)

Na pintura Não me toque (c.1514), Cristo aparece para Maria Madalena após sua Ressurreição, antes de ascender aos céus. Ela tenta tocá-lo, maravilhada, mas ele lhe diz: "Não me toque, não pertenço a este mundo!". É essa cena mágica que Ticiano retrata abaixo.

Ticiano - Não me Toque! - (c.1514) - National Gallery, Londres

A seguir está Maria Madalena arrependida no deserto (década de 1560), quadro que tem uma luz extraordinária!

Ticiano - Madalena Arrependida (década de 1560)

Na obra Anunciação (1563-1565), uma das últimas pinturas de Ticiano, o anjo Gabriel está à esquerda e, acima, a radiosa luz do Espírito Santo, em formato de pombo, fecunda a virgem vestida de vermelho e azul. O vermelho simboliza a Terra e o azul o céu.

Ticiano - Anunciação (1563-1565)

As imagens dão uma ideia da maestria de Ticiano no manejo da cor, mas nada como apreciar as obras ao vivo, nos museus do mundo! Se a Itália, Londres ou a Espanha forem muito longe, um pulinho ao nosso MASP já resolve o problema!