domingo, 24 de fevereiro de 2019

'Poderia me perdoar?’, uma história agridoce e bem contada sobre letras que se afogam

Nem 'Roma', nem 'A Favorita'. Nenhuma dessas produções, em minha opinião, estaria apta a concorrer ao Oscar de Melhor Filme este ano. Não assisti a todos os concorrentes, mas vi 'Bohemian Rapsody' e o considero um bom filme, superior a esses dois. Não que os tenha achado propriamente ruins, mas não bons o suficiente para justificar o alarde que a mídia fez em torno de ambos. Explico por quê.  

O mexicano 'Roma', dirigido por Alfonso Cuarón, conta uma história OK que foi valorizada pela bela fotografia em preto e branco, recurso estético que, diga-se de passagem, pode funcionar até certa medida para mascarar ou resgatar roteiros fracos. Aliás, uma boa tática para saber se um filme em preto e branco é bom ou não é imaginá-lo colorido. Se ele resistir bravamente, mesmo que não tenha o mesmo appeal de seu original em preto e branco, é porque é bom. Porém, ao fazer o mesmo exercício com 'Roma', cheguei à dolorosa conclusão de que, se fosse colorido, o filme desbotaria de vez. E as emoções que desperta, já suficientemente pálidas, correriam sério risco de se tornar invisíveis. E mais: 'Roma' é um filme de silêncios, o que em tese é ideal para suscitar estados reflexivos, mas em seu caso não funcionou. Não para mim, pelo menos. Para um filme de "silêncios" ser grande, os recursos que entremeiam seus silêncios – leia-se: roteiro, direção, atuações - precisam ser superlativos, o que, repito, em minha opinião, não ocorreu. Gostei da atuação da protagonista, Yalitza Aparicio, que nos brinda com alguns momentos tocantes, mas ela não foi suficiente para segurar o filme. Temos, portanto, uma produção apenas mediana que não justifica uma indicação ao Oscar.  

Já a 'A Favorita', com direção de um grego chamado Yórgos Lánthimos, tem um roteiro regular, uma belíssima produção, o que para mim foi seu maior trunfo, e boas atuações das atrizes. Ocorre que Emma Stone "já deu", como se diz por aí. Virou chichê, uma espécie de atriz-caça-voto-para-Oscar, com sua beleza inexpressiva. Cansou. É curioso como outras atrizes, igualmente bonitas e talentosas, podem se repetir indefinidamente nas telas e não cansar nunca. É o caso de Juliette Binoche, Cate Blanchett, Naomi Watts ou mesmo a almodovariana Penélope Cruz. Todas divas. 'A Favorita' chamou minha atenção pela luxuosa produção e pela fotografia, até porque me agradam os filmes ditos "de época", mas me despertou emoções tão rasas quanto o olhar de Emma Stone. Merece concorrer ao Oscar de Melhor Filme? Novamente, em minha opinião, não.

Porém, há outro filme, terno e singelo, que considero de longe melhor que 'Roma' e 'A Favorita', mesmo com toda a sua simplicidade: 'Poderia me perdoar?'. Dirigido por uma certa Marielle Heller e adaptado da autobiografia de Lee Israel (1939-2014), conta a história real de uma decadente escritora nova-iorquina, cinquentona, alcoólatra e antissocial, que acha um meio - digamos, inusitado, para pagar as inúmeras contas atrasadas que se empilham em sua mesa: forjar cartas de celebridades artísticas e literárias. A verdadeira Lee Israel fez exatamente isso no início da década de 90, mais por desespero do que por ganância. Após uma promissora trajetória como escritora nos anos 70 e 80, Israel teve um bloqueio criativo, talvez causado pela bebida, e amargou um ostracismo acompanhado de crescentes dificuldades financeiras. A escritora se lançou então à carreira de falsária e, segundo especialistas, forjou brilhantemente dezenas de cartas, a maioria de grandes personalidades literárias, as quais vendeu a livreiros e colecionadores antes de ser desmascarada e condenada pela Justiça de Nova York.

Richard Grant (Jack Hock) e a protagonista Melissa MacCarthy (Lee Israel), um poço de expressividade.

Achei o filme muito bom por vários motivos. Número um: conta uma história formidável, verídica e muito bem costurada num roteiro impecável. Porque é isso. Podemos ter a história mais interessante do mundo, mas, se o roteiro não for bom, pode esquecer. Mata o filme a navalhadas. Não à toa, 'Poderia me perdoar' está concorrendo ao Oscar de Melhor Roteiro Adaptado. Palmas para a roteirista Nicole Holofcener.

Número dois: a atriz principal, Melissa McCarthy, interpreta divinamente a escritora Lee Israel, com toda a pujança e expressividade que a personagem exige. Desmazelada, mal vestida e afogada em incontáveis doses de bebida, Lee é a própria imagem de uma irremediável perdedora. Chega um momento, no filme, que a gente até torce para que suas trambicagens deem certo, tamanha a simpatia que a pobre mulher inspira. Melissa concorre ao Oscar de Melhor Atriz e, embora eu não tenha visto os trabalhos de duas das indicadas, Lady Gaga (hã?) e Glenn Close, creio que deveria levar a estatueta com todo o louvor. E cá entre nós, desde quando Lady Gaga é atriz? Afff... Só sei que Melissa McCarthy dá um banho de interpretação e achei-a superior a Yalitza Aparicio, que concorre com 'Roma', e Olivia Colman, com 'A Favorita'. Sem falar que as demais atuações do filme também são excelentes, com destaque para Richard Grant, que interpreta Jack Hock, um gay sessentão quase indigente, desocupado e picareta, que se torna amigo da escritora. Sim, temos aqui uma história de perdedores magnificamente contada. Grant também concorre ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante e sua indicação é mais do que merecida. 

A verdadeira Lee Israel (1939-2014)

Tudo bem que 'Poderia me perdoar?' possa ter exercido um apelo especial sobre minha sensibilidade pelo fato de contar uma história tocante que se passa no universo das letras, que me é tão caro e está tão imiscuído em meu dia a dia, mas, mesmo analisando-o com isenção, posso dizer sem pestanejar que se trata de um excelente filme. Quem "não poderia se perdoar" em perdê-lo é o leitor empático com alma sensível, amante de cinema e de livros. Assisti no Shopping Frei Caneca e creio que ainda deva estar em cartaz por lá. Confira o trailer:


sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

O inacreditável caso de um tesouro encontrado por acaso

Fonte: Le Parisien

É por isso que invejo os europeus. Não bastasse habitarem o continente que concentra a maior quantidade de museus interessantes do mundo, ainda por cima vivem descobrindo obras de arte que "brotam" do nada, como por encanto. No último verão de lá, ou seja, em meados do ano passado, a grife Oscar de la Renta estava reformando um amplo imóvel em Paris – mais precisamente, à rua Marignan no. 4 - para instalar uma nova boutique de luxo. Desfiles de moda estavam programados para o local, no início de fevereiro, supondo-se que a reforma estivesse concluída. No entanto, durante os trabalhos, os operários descobriram uma grande pintura colada à parede, atrás de alguns painéis mal fixados. Especialistas analisaram a obra e concluíram tratar-se de uma pintura de um aluno de Charles Le Brun (1619-1690), primeiro pintor oficial da corte de Luís XIV, o Rei Sol. Ou seja: como se Paris já não tivesse obras de arte o suficiente, ainda acharam mais uma. 

"Nós estávamos no processo de raspagem. Removíamos os painéis de madeira no salão do andar superior e topamos com esse quadro", diz um dos integrantes da equipe da designer de interiores Nathalie Ryan. A reforma do imóvel parou no ato. Alex Bolen, diretor geral da Oscar de la Renta, foi informado da descoberta e rapidamente pegou um avião de Nova York a Paris para admirar a pintura de três séculos e meio. "Quando a encontramos, estava completamente suja", testemunha um responsável pelos trabalhos. Imediatamente, a direção da Oscar de La Renta contratou um especialista em conservação e restauração, Benoit Janson, que ao cabo de dois meses revelou a pintura do século XVII com as cores originais, desvendadas pouco a pouco.

Foto: Le Parisien

Uma equipe de restauradores e historiadores também entrou em ação para investigar essa pintura misteriosa de seis metros de comprimento e três de altura que avança uns trinta centímetros para além do piso do primeiro andar. Uma obra de dimensões excepcionais que poderia ter sido irremediavelmente apagada da história da arte se os trabalhos no local não tivessem sido realizados com cuidado. 

Um vaidoso embaixador de Luís XIV em Constantinopla

"Originalmente, este trabalho foi apresentado sobre um chassi. A tela foi então desmontada e enrolada antes de ser presa à parede", segundo Janson. "O trabalho foi realizado dentro das regras da arte, com boa aderência e aplicado na parede de forma plana. O verniz amarelou e ficou totalmente oxidado. As cores desapareceram", afirma. Apesar da ação do tempo, no entanto, é possível constatar a boa qualidade técnica e estética da pintura. 

Embora o canteiro de obras esteja fechado ao público e a marca Oscar de la Renta tenha tentado manter as informações sob sigilo, mesmo tendo relatado a descoberta ao The New York Times, os historiadores de arte estão ouriçados e visitando o local, entre certezas e dúvidas. No âmbito das certezas, está a descrição da obra: Charles Marie François Olier, Marquês de Nointel, embaixador de Luís XIV em Constantinopla, é retratado com sua escolta à frente de Jerusalém. Os cavaleiros, com o uniforme da época, entram na cidade. As paredes, a mesquita de Omar e o Muro das Lamentações são visíveis à distância. O estilo é orientalista, com vegetação exuberante.


A pintura inserida no contexto

O Marquês de Nointel é conhecido por ter encomendado quatro grandes telas narrando seus feitos no Oriente Médio, em 1673, e elas foram instaladas em quatro paredes de um salão cerimonial em Constantinopla. No retorno à França, ao final das funções diplomáticas, o marquês recobrou sua coleção de arte, sendo que algumas obras se encontram atualmente no Louvre. Consta que ele mesmo teria enrolado as quatro pinturas. Uma delas está no Museu de Atenas, a segunda é a que foi encontrada em Paris e as outras duas desapareceram. Segundo Guy Meyer, pesquisador e especialista em arte, essa descoberta "é um evento histórico, totalmente inusitado". Ele acredita que o prédio onde a obra foi encontrada tenha pertencido, em 1850, a um banqueiro chamado Mosselman, que a teria instalado em sua sala de estar. Não se sabe se o banqueiro ocultou a obra porque reformou o apartamento e desejou modernizar a decoração, ou se quis escondê-la voluntariamente por alguma razão. O fato é que a pintura ainda guarda seus segredos. 

Quem pintou? 

No momento, cogita-se quem seria o autor da obra. Sabemos que um artista chamado Jacques Carrey (1649-1726) fez ilustrações da vida do mundo otomano no rastro do Marquês de Nointel. Outros acreditam que o autor do trabalho seja, mais seguramente, o pintor Arnould de Vuez (1644-1720), próximo a Charles Le Brun na corte de Luís XIV. Sabe-se, inclusive, que Vuez participou de uma viagem de estudos a Constantinopla, organizada pelo Marquês de Nointel. Conservadores do Palácio de Versalhes (sim, todo mundo está se metendo...) preferem agir com cautela antes de proferir um veredito final. 

Naturalmente, o layout da futura loja Oscar de la Renta foi revisto e readequado. Segundo informações fornecidas pela própria grife, a pintura totalmente restaurada será posicionada no showroom de vestidos de noiva e de noite. No entanto, para desconsolo dos parisienses cultos e curiosos, a visitação não será assim fácil. Somente as endinheiradas clientes da boutique terão acesso à obra, embora arriscaria dizer que 99% delas não têm noção de seu valor – e não me refiro, aqui, ao valor monetário. Suspeito, mesmo, que a maioria sequer desviará o olhar dos vestidos por um minuto para apreciar a pintura. Espero estar errada.