domingo, 7 de março de 2021

Neurocientista francês revela os benefícios da arte para nossa saúde.

Muita gente certamente já ouviu falar, em algum momento, que a arte é terapêutica. Posso afirmar inclusive por experiência própria, pois passei boa parte de minha vida estudando piano diariamente, por longas horas, e a prática me fez tão bem que usar a palavra “êxtase”, para descrever minha sensação ao teclado, não seria exagero. Mas o poder que a arte tem de curar nossos corpos e mentes pode ser ainda maior do que imaginamos. Quem diz é a ciência. 

O neurocientista, músico e escritor francês Pierre Lemarquis publicou recentemente um livro sobre esse assunto fascinante. “L'Art qui Guérit” (A Arte que Cura) conduz os leitores em um tour pela arte ao longo dos séculos, desde o período Paleolítico até o final do século 20, interpretando obras através das lentes de seus poderes de cura - tanto para o espectador quanto para o criador. O autor integra história da arte, filosofia e psicologia ao mesmo tempo em que cita surpreendentes descobertas atuais da neurociência sobre o poder de cura pela arte.

Pierre Lemarquis, autor do livro "A Arte que Cura" - Foto: Sylvain Thiollier

Um relatório da Organização Mundial da Saúde de 2019, baseado em evidências de mais de 3.000 estudos, “identificou um importante papel das artes” na prevenção de doenças. E em 2018, médicos de Montreal, Canadá, ganharam as manchetes dos jornais quando começaram a prescrever, a pacientes que sofriam de certas doenças, visitas ao Museu de Belas Artes de Montreal. 

“Há uma corrente avançando nessa direção”, afirmou Lemarquis, que divide seu  tempo entre o resgate das artes para a medicina, a prática da clínica neurológica e a docência na Universidade de Toulon, no sul da França. 

Lemarquis também é presidente de uma nova associação francesa chamada “L'invitation à la Beauté” (Convite à Beleza), que prescreve "receitas culturais" aos pacientes, incluindo visitas a museus e exposições de arte. Apoiada pela UNESCO, a entidade criou uma coleção com obras de arte originais para emprestar aos pacientes internados em um hospital de Lyon, na França, e o projeto deve se expandir. 

Mas como, exatamente, vivenciar a arte pode tornar uma pessoa mais saudável? Como pode ajudar a tratar doenças? 

Quando vemos arte, "participamos" de sua criação

Nas últimas décadas, descobertas neurológicas lançaram luz sobre o que acontece com o cérebro quando ele vivencia a arte. O livro de Lemarquis detalha esse novo subcampo da "neuroestética", que usa tecnologias como a ressonância magnética para examinar quais vias do cérebro estão envolvidas quando criamos ou contemplamos uma obra de arte, e em que medida elas são estimuladas. 

O que pode parecer intuitivo, mas é cientificamente demonstrado no livro, é que todos os tipos de arte atuam em nosso cérebro de uma forma dinâmica e multifacetada. As redes neurais são formadas para alcançar estados elevados e complexos de conectividade. Em outras palavras, a arte pode “esculpir” e até “acariciar” nossos cérebros. Portanto, quando dizemos que uma obra de arte nos emociona, isso acontece num nível físico, mesmo. 

Lemarquis também explica que, em um processo auxiliado por neurônios-espelho, ativados quando observamos uma obra de arte, podemos ter a sensação de que estamos realmente participando da criação artística, ou nos colocando no lugar do artista. Nosso cérebro tem inclusive a tendência de “pensar” que está interagindo com um ser biológico ao perceber uma pintura figurativa de uma pessoa, por exemplo.

Rembrandt - Autorretrato - 1665-1669 - óleo s/ tela
 114,3 X 94 cm - Kenwook House, Londres

“Os efeitos benéficos das artes foram notados desde a Antiguidade Clássica”, escreve Lemarquis, referindo-se a Aristóteles, que descreveu a sensação de catarse quando os gregos assistiam a uma peça teatral, ou as emoções encarnadas pelos atores, que ajudaram os espectadores a entender melhor seus próprios pensamentos e sensações.

Mais tarde na história, Stendhal, o autor francês do século 19, contou como quase desmaiou ao contemplar afrescos na Basílica de Santa Croce, em Florença, onde sentiu "uma espécie de êxtase" por estar "absorvido na contemplação da beleza sublime". Seu coração bateu tão rápido naquele momento que ele achou que iria desfalecer. Daí o nascimento da expressão “Síndrome de Stendhal” para designar a sensação de vertigem e atordoamento que muitas pessoas vivenciam ao contemplarem uma quantidade muito grande de obras de arte num curto espaço de tempo. Lemarquis explica essa reação porque o cérebro é “invadido por emoções estimuladas pelo aumento da adrenalina no sistema nervoso autônomo”.

Igreja de Santa Croce, Florença
















Mas nem sempre é fácil identificar o que sentimos em relação a uma obra de arte. Isso ocorre em parte porque nossa reação é o resultado dinâmico da estimulação neuronal que combina áreas do cérebro que normalmente não operam juntas: os recessos mais profundos de nossas mentes, que governam o sistema de prazer e recompensa, bem como outros sistemas que lidam com conhecimentos, percepções e circuitos motores. Lemarquis escreve que, como resultado desses processos, começamos a experimentar "empatia estética", ou a impressão de que uma obra de arte é parte de nós - que incorporamos seu "espírito". “Esse vai-e-vem constante, esse espaço vazio entre os dois, é a fonte de tudo - o sentido da vida”, acrescenta. 

Como a arte pode ajudar a curar

Segundo o autor, as áreas de nosso cérebro que são ativadas quando criamos ou contemplamos arte liberam hormônios e neurotransmissores benéficos para nossa saúde e geram uma sensação de bem-estar. Eles incluem a dopamina (ausente entre os pacientes de Parkinson), serotonina (encontrada em antidepressivos), bem como endorfinas e oxitocina, que podem auxiliar no controle e na redução da dor. A adrenalina e a cortisona podem ser ativadas de forma a ter um efeito revigorante no corpo ou, pelo contrário, podem ser bloqueadas para produzir um efeito relaxante, dependendo da obra de arte. Todos esses hormônios podem ajudar a tratar doenças mentais, perda de memória ou doenças associadas ao estresse, entre outros problemas de saúde.

Em um exemplo do livro, uma paciente hospitalizada na França, sofrendo de feridas crônicas nas pernas, encontrou motivação para se tornar mais ativa depois que uma pintura de uma bailarina foi pendurada em seu quarto, a seu pedido. Isso a distraiu de sua doença e, “por meio de mimetismo, ela começou a tentar mover as pernas, ao mesmo tempo que pedia menos doses de analgésicos. Aos poucos, ampliou sua capacidade de caminhar, tanto que sua perda muscular diminuiu, melhorando a circulação sanguínea e auxiliando na cicatrização das feridas”.

Edgar Degas - "A Estrela" (Dançarina no Palco) - c. 1876 - pastel
58,4 X 42 cm - Musée d'Orsay, Paris

Além disso, alguns artistas são conhecidos por criar conscientemente obras com o intuito de ajudar a curar os espectadores, como o pintor renascentista alemão Matthias Grünewald, criador de um famoso retábulo de Isenheim que havia sido encomendado por um hospital para inspirar uma sensação de "equilíbrio interior" entre os pacientes internados. Da mesma forma, índios Navajos da América do Norte usam rituais de cura que envolvem arte e beleza, para ajudar a “restaurar a harmonia interior” dos enfermos.

Curiosamente, essa interação parece funcionar melhor com arte original, e não com reproduções. Lemarquis diz que um aspecto “inacabado” da obra - o toque de seu criador - ajuda o observador a ter uma noção de sua própria participação. Da mesma forma, a ciência mostra que sentimos uma espécie de “distância” da obra de arte reproduzida em um papel ou tela, em comparação com nossa presença física diante dela.

“Nossos cérebros capturam muito mais informações do que temos consciência”, explica Lemarquis. Ao perceber uma obra de arte pessoalmente, por exemplo, o cérebro é "iluminado, por algo semelhante a raios de uma lâmpada". Mas quando o nível de exposição ao trabalho é “enfraquecido”, como acontece com uma ilustração ou imagem numa tela de computador, “quantidades de informação e, conseqüentemente, possíveis interações (neurológicas)” são perdidas.

Curando o coração e a cabeça

Lemarquis constatou em primeira mão o impacto positivo das artes nos pacientes. “Isso vai curá-los? Talvez não, mas permitirá que administrem melhor sua doença e, assim que isso acontecer, estarão no caminho da recuperação”, afirma.

As respostas dos pacientes têm sido extremamente positivas no hospital de Lyon, onde o grupo “Convite à Beleza”, do qual Lemarquis faz parte, montou uma coleção de arte e poesia para suas "prescrições de cultura”. Os cuidadores relataram que os pacientes passaram a se movimentar mais quando expostos às obras de arte escolhidas, o que leva a uma melhora da cicatrização. Muitos pacientes afirmaram se sentir "menos sozinhos" e a maioria estava visivelmente mais relaxada e alegre. Agora o projeto “Convite à Beleza” pretende expandir sua coleção de arte para o serviço gastro-pediátrico de um hospital infantil em Lyon.

Iniciativas semelhantes estão surgindo em todo o mundo. Nos EUA, o NeuroArts Blueprint do Aspen Institute e o International Arts + Mind Lab (IAM Lab), da Johns Hopkins University, foram lançados em setembro de 2020. A organização afirma que tem como objetivo “a promoção da ciência das artes, saúde e bem-estar” ajudando a “construir o campo emergente das neuroartes - o depósito de robustas evidências científicas que nos mostram que a arte pode mudar o cérebro e o corpo e promover o bem-estar de maneiras que podem ser medidas, mapeadas e colocadas em prática.”

“Você não trata uma doença, você trata uma pessoa”, afirma Lemarquis. “Você precisa de remédios puramente científicos para lidar com a doença e de remédios artísticos para lidar com a pessoa, com seu lado humano. Os dois são complementares. As pessoas precisam sonhar. Elas precisam de imaginação.”

Fonte: Artnet