terça-feira, 16 de dezembro de 2014

'Relatos Selvagens'. O confronto do homem com seu limite num filme como poucos.

Em se tratando de cinema, temos mesmo de tirar o chapéu para nossos hermanos argentinos: não é de agora que eles estão arrasando com filmes que, se comparados à média da produção brasileira, ganham disparado em sofisticação e inteligência. São filmes profundos, muito bem realizados, com temáticas complexas e grandes elencos. Que cinéfilo não se lembra do magnífico 'O Segredo de seus Olhos', produção de 2009 de Juan José Campanella com o não menos magnífico Ricardo Darín?

'Relatos Selvagens' (Relatos Salvajes), de Damián Szifron, também tem Darín no elenco e está dando um show nas salas de São Paulo após abrir nossa Mostra Internacional de Cinema com grande sucesso. O filme foi a única produção latino-americana a entrar para a competição oficial do Festival de Cannes, sendo fortemente aplaudido e, além disso, concorre ao Oscar de melhor filme estrangeiro. A produção é de ninguém mais, ninguém menos que Pedro Almodóvar e seu irmão Augustín, que aparecem nos créditos. O elenco é excelente. Diante de tudo isso e principalmente do que vi na telona, dá para entender por que 'Relatos Selvagens' foi o longa mais visto na Argentina em 2014.

O filme pode ser classificado como uma mistura de drama e humor negro, destilados com sofisticação em seis histórias que têm, em comum, protagonistas que perdem a cabeça e decidem fazer a justiça com as próprias mãos diante de situações extremas e/ou surreais, porém não necessariamente inverossímeis, dado o grau de desequilíbrio de boa parte da humanidade hoje em dia.

Detalhe importante: lá não há histórias mais ou menos boas – todas mantêm o mesmo altíssimo padrão de qualidade, o que é raro ocorrer nos filmes ditos de 'antologia', isto é, constituídos por vários episódios. No primeiro, genial e o mais fantasioso de todos, um músico frustrado e traumatizado que sofreu bullying consegue reunir seus antigos desafetos em um voo de avião para realizar sua vingança. Depois há a garçonete que topa, no restaurante onde trabalha, com o mafioso que arruinou sua família, e surge também uma oportunidade de revanche. Há a história de uma briga de trânsito em uma estrada no meio do nada, entre um playboy de Audi e um motorista remediado, que descamba para uma violência descomunal.

Rita Cortese e Julieta Zylberberg interpretam a cozinheira e a garçonete do restaurante onde esta vê o homem que havia arruinado sua família. Quem incentiva a vingança é a cozinheira, que já passou uma temporada na cadeia.

Leonardo Sbaraglia e Dario Grandinetti interpretam os personagens da briga de trânsito que descamba em tragédia.

O episódio protagonizado por Ricardo Darín mostra uma situação que poderia muito bem ter se passado no Brasil: o cidadão tem o carro guinchado e é multado injustamente por estacionar em um local que não tem sinalização de proibido. Só que Darín, no papel de um engenheiro bem-sucedido que está a caminho de casa com o bolo de aniversário da filha pequena, chega a seu limite diante da injustiça da situação, da burocracia infernal e da displicência dos funcionários que o atendem (não, o filme não é brasileiro... ) Não bastasse ter que arcar com uma multa por uma falta que não cometeu, o homem chega atrasado para a festa de aniversário da filha, o que desencadeia uma sucessão de tragédias em sua vida.

Darín, como o pobre engenheiro que não consegue chegar a tempo para o aniversário da filha devido à burocracia insana.

Uma das histórias mostra o drama de um milionário que deve comprar meio mundo – policiais, peritos, advogados e até o jardineiro, para tentar livrar da cadeia o filho que atropelou uma mulher grávida e fugiu. Também aqui, aliás, qualquer semelhança com a "pátria-amada-idolatrada-salve-salve" não é mera coincidência. Por fim, temos a história de uma noiva judia que surta ao descobrir a traição do marido em plena festa de casamento - uma celebração digna de 'Facebook', feérica e dispendiosa, onde todos parecem artificialmente alegres, legais, radiantes e muuuito felizes por compartilhar da felicidade da noiva.

Erica Rivas está excepcional como a noiva que descobre ser traída no dia de seu casamento e enlouquece.

O tom tragicômico adotado no filme foi um grande acerto do diretor que, além de Darín, selecionou um elenco de primeira. Apesar de divertir pelo absurdo de algumas situações aparentemente inverossímeis, o filme suscita reflexões ao nos darmos conta de que muitas delas não são absolutamente implausíveis e poderiam perfeitamente se passar diante de nosso nariz. Sem exagero, esse é um dos melhores filmes que já vi nos últimos tempos. Simplesmente imperdível! 

Ficha técnica parcial

Direção: Damián Szifron

Elenco: Ricardo Darín, Darío Grandinetti, Oscar Martínez, Diego Gentille, Julieta Zylberberg, Leonardo Sbaraglia, Rita Cortese, Erica Rivas e outros.