terça-feira, 30 de setembro de 2014

Bar Paralelo 12:27, na Vila Mariana. Refúgio garantido de domingo a domingo.

Um das coisas que São Paulo tem de bom é que a gente nunca fica órfã no quesito "comer e beber", pois existem bares e restaurantes que abrem todos os dias. Isto significa que, se você sair de uma sessão tardia do cinema ou do teatro num domingão à noite, não precisará rodar muito à procura de um lugar para matar a fome ou simplesmente beber alguma coisa.

Um bar que abre todos os dias é o Paralelo 12:27, na rua Joaquim Távora, reduto gastronômico da Vila Mariana. Inaugurado em 2004, ele é muito parecido no estilo e na proposta com o vizinho 'Genuíno', com a diferença de que não tem a área avantajada nem o quintal ajardinado que fez a fama do concorrente mais veterano. Mesmo assim, o Paralelo é um bar extremamente agradável, perfeito para as noites de verão que estão vindo por aí, já que na frente há uma área aberta bem gostosa. Meu ponto favorito é o mezanino mais ao fundo, que é mais reservado e permite uma visão estratégica do lugar. O interior também é acolhedor e arejado.

A área à frente do bar é a mais gostosa, sobretudo a que fica na parte mais elevada, no mezanino.
Foto: www.paralelo1227.com.br

Detalhe da área interna - foto: Simone Catto

Outro ângulo do salão interno - foto: www.paralelo1227.com.br

Entre os frequentadores do bar estão estudantes da ESPM e da Faculdade Belas Artes, ali pertinho, o pessoal que trabalha na região e, logicamente, os próprios moradores da Vila Mariana que desejam papear e beber alguma coisa sem pegar trânsito e confusão.

Há um senão para quem, como eu, vai a bares para bater papo sem muvuca e detesta futebol: o site da casa diz que há música ao vivo de quarta a sábado e que todos os jogos dos campeonatos Paulista e Brasileiro são transmitidos em um telão. Felizmente, nos dias em que lá estive não havia música nem jogo, de forma que minha experiência foi ótima. Vale a pena dar uma ligada antes para checar!

O cardápio, farto, tem todos os clássicos dos bons botecos e um pouco mais: cachaças nobres, cervejas nacionais e importadas, caipirinhas, drinks variados e comidinhas para todos os gostos, desde petiscos usuais como frango à passarinho, pastéis, bolinhos variados e outros, passando pelo filé mignon aperitivo à milanesa, a calabresa na cachaça, picanha na chapa e o escondidinho de carne seca desfiada coberta com purê de mandioca e catupiry, entre muitas outras opções. Se a fome for muita e você quiser algo com mais "sustância", o bar também serve sanduíches e alguns pratos. Em minha última visita, optei pelo escondidinho, muito bem servido e saboroso.

O escondidinho de carne seca desfiada com purê de mandioca e catupiry cumpriu plenamente sua função!
Foto: Simone Catto

Adivinhe o que pedi para acompanhar?... Sim, ela mesmo... a clássica, imbatível e inigualável caipirinha de limão com cachaça (R$ 14) que, no meu caso, foi a 'Espírito de Minas'. Delícia!

A caipirinha clássica também fez bonito!
Foto: Simone Catto

O PARALELO 12:27 abre de domingo a domingo das 12h à 01h e fica na Rua Joaquim Távora, 1227 – Vila Mariana. Tel.: 5579-1227. Para consultar o cardápio na íntegra, acesse www.paralelo1227.com.br (aliás, bem que eles poderiam dar um jeito no layout do site, que é bem feinho...) Fica a dica!

domingo, 28 de setembro de 2014

'Eu, Christiane F., a vida apesar de tudo': não leia se estiver deprimido!

Há livros que a gente lê porque têm uma temática que para nós é absolutamente apaixonante. Outros nós lemos porque consideramos edificantes, isto é, temos certeza de que vão nos acrescentar algum aprendizado. Há livros, porém, que não são nem uma coisa nem outra: lemos por mera curiosidade e, depois, ficamos com uma sensação de vazio. Esse foi o caso de Eu, Christiane F., a vida apesar de tudo, relato autobiográfico de Christiane V. Felscherinow escrito em dobradinha com a jornalista Sonya Vukovic. 

Para quem não sabe ou nasceu após a década de 70, o livro é continuação de um best-seller de 1979 que estourou nas livrarias do mundo todo: Eu, Christiane F., 13 anos, drogada, prostituída. Na ocasião, a obra chocou os leitores ao retratar, sem meios-tons ou meias-palavras, exatamente aquilo que o título diz: a rotina e o universo de uma adolescente alemã de 13 anos afundada no vício da heroína e sendo obrigada a se prostituir para adquirir a droga. A jovem Christiane deu seu depoimento aos jornalistas Kai Hermann e Horst Rieck e, posteriormente, o livro foi até adotado em escolas da Alemanha para alertar as crianças quanto aos perigos das drogas.

Nesta continuação, trinta e cinco anos depois, Christiane tem 51 anos e ficamos sabendo que seu calvário não terminou, definitivamente, com o fim de sua primeira autobiografia. Todos teriam preferido imaginar que aquela garota, ainda uma criança, tivesse feito um tratamento sério de desintoxicação, achado um rumo na vida, estudado, casado, sido feliz, enfim, que tivesse se tornado uma mulher liberta de uma infância sombria. Afinal, ela ainda era tão jovem! Porém, não foi o que aconteceu: a sombra do vício sempre perseguiu Christiane. Por vezes ela seguia tratamentos de desintoxicação e até conseguia permanecer "limpa" - como se diz por aí – por algum tempo, mas logo acabava consumindo novamente alguma droga. Se não fosse a heroína, era o LSD, a bebida, os comprimidos... sempre uma espécie de fuga que a mergulhasse em torpor, porque simplesmente não conseguia suportar sua existência.

Christiane hoje, aos 51 anos, em foto de Marcel Mettelsiefen.
O mais funesto disso tudo é que, não importa aonde Christiane fosse, sempre acabava atraindo, em torno de si, pessoas conectadas com as drogas de alguma maneira, em uma espécie de sintonia macabra. Se mudasse de cidade ou até de país, logo estava em contato com os junkies ou traficantes locais. É o que ocorreu quando morou na Grécia e apaixonou-se por uma espécie de hippie que, obviamente, também consumia drogas, e viveu com ele uma história de amor que durou algum tempo. 

Em 1986, Christiane chegou a ficar um ano encarcerada em um presídio feminino. Fiquei chocada em constatar que até na Alemanha, um país dito "desenvolvido", as prisões são violentas e prisioneiras podem se matar sem que as carcereiras ou o Estado tomem qualquer tipo de atitude. Pelo menos é o que ela relata sobre sua prisão na década de 80 – não sei como estão as coisas por lá hoje.

Um filho, Phillip, fez com que Christiane recobrasse a sanidade por algum tempo. Ela tentou ser, para ele, tudo o que seus pais não haviam sido para ela. Ambos eram pessoas egoístas, ausentes, desprovidas de afeto e incapazes de dirigir gestos de carinho às duas filhas. Por isso, ela cercou Phillip de amor e cuidados, agia de forma responsável com a educação e os horários do menino, fazia-lhe companhia, brincava com ele, enfim, fazia tudo aquilo que uma mãe prestimosa faz com gosto. Pelo menino, a quem ela sempre amou, fez e faz qualquer sacrifício e tentou poupá-lo ao máximo dos fantasmas de sua triste trajetória. Só que Christiane não conseguia se livrar das más companhias e, certa vez, o menino chegou até a sofrer um sequestro por um suposto "amigo". Para que o Estado não lhe tomasse o filho, chegou a fugir desvairadamente com ele, mas, quando Phillip tinha uns 11 anos, os assistentes sociais o entregaram a um lar adotivo que também cuidava de outras crianças em situação de risco. Christiane ficou dilacerada. Embora Phillip tivesse sido entregue a uma família cordial com a qual ela tivesse permissão de ter contato e inclusive contribuía financeiramente para auxiliar no sustento do filho, a dor dessa separação foi-lhe insuportável. Quando Phillip foi embora, Christiane mergulhou novamente na espiral descendente de descontrole das drogas.

Uma foto de Christiane jovem no Sunset Boulevard,
para a divulgação de filme baseado em sua vida.
Um outro aspecto aterrador é que, até nos últimos tempos, o Estado alemão tem vigiado Christiane de muito perto. Várias vezes, ao sair e retornar para casa, ela percebe que outras pessoas estiveram em seu apartamento. É assustador. Mas o pior, sem dúvida, são as sequelas terríveis na saúde por causa da verdadeira montanha-russa a que submeteu seu maltratado organismo desde muito nova. Há décadas seu fígado está inflamado, ela sofre de hepatite C, transpira o tempo todo, tem os braços cobertos de feridas e é acometida de muitos outros males. Pode-se dizer que Christiane é uma sobrevivente, e nem ela mesma consegue entender como conseguiu estar viva até agora.

O único aspecto positivo de sua vida, hoje, é que Christiane tem uma ótima relação com o filho adolescente, um menino aplicado e bem-ajustado que gosta de computadores e tem amigos. Interessa-se por sua vida, encoraja-o a estudar e conhecer o mundo, mas não sabe se ainda estará por aqui quando isso acontecer, pois pressente que seu fim está próximo.

Diante de tudo isso, só posso dizer que, no saldo final, Eu, Christiane F., a vida apesar de tudo é um livro um bocado barra-pesada que não acrescentou nada de bom à minha experiência. Só fez com que eu lamentasse, e muito, a infelicidade dessa mulher e de tantas outras pessoas prisioneiras das drogas, independentemente de país ou classe social.

Renato Brolezzi revela Ticiano, o mago da cor do século XVI.

Quando a gente menciona a época do Renascimento nas artes, é natural que todo mundo pense imediatamente no fenômeno que ocorreu no século XVI em Florença, cujos maiores representantes são Leonardo da Vinci e Michelangelo. O que muita gente não sabe é que ocorreu um Renascimento artístico também no norte da Itália, no mesmo século XVI. O polo irradiador foi Veneza que, já naquela época, era uma próspera e cosmopolita metrópole que chegou a abrigar 800 mil habitantes devido a seu intenso comércio com o Oriente. Foi nesse contexto que nasceu Tiziano Vecellio (c.1490-1576), o "mestre da cor" e, possivelmente, maior representante do Renascimento no Norte da Itália.

Esse grande mestre foi tema de mais uma aula lotada do prof. Renato Brolezzi no Grande Auditório do MASP, que teve como ponto de partida a pintura Retrato do Cardeal Cristoforo Madruzzo, de 1552. A obra faz parte do acervo do MASP, assim como todas as demais abordadas nos cursos ministrados pelo prof. Brolezzi no museu, e em 1992 teria sido restaurada pela Fundação Getty de Los Angeles.

Ticiano - Retrato do Cardeal Cristoforo Madruzzo (1552) - MASP
Mas vamos a Ticiano. Celebrado como o maior “pintor da terra” do século XVI, nasceu numa cidade próxima a Veneza e se mudou para lá quando tinha entre 10 e 12 anos de idade. Em Veneza teve aulas com alguns mestres, dos quais se destacam Giovanni Bellini (1429-1507) e Giorgione (c.1477-1510), que também frequentava o ateliê de Bellini e com quem trabalhou em conjunto nos seus primeiros anos. Posteriormente, Ticiano tornou-se amigo de intelectuais e poetas, como Ludovico Ariosto, de quem pintou um retrato. Grande retratista, o mestre veneziano tornou-se muito requisitado pelos aristocratas, pintando reis, rainhas, nobres e outros "figurões", como o cardeal que aparece na pintura-tema de nossa aula. Devido a seu enorme talento e conexões, ao contrário de tantos grandes artistas que morreram na miséria, Ticiano havia acumulado grande riqueza ao fim da vida.

Agora vamos ao retratado. Notório advogado, diplomata e intelectual, o cardeal Cristoforo Madruzzo pertencia a uma poderosa família da cidade de Trento. Político extremamente hábil e bem relacionado, foi nomeado pelo Papa Paulo III Farnese dignatário do famoso Concílio de Trento, entre 1545 e 1563. Para quem não lembra, o Concílio de Trento foi uma tentativa de conciliação dos católicos com os luteranos do Norte.

O mais extraordinário nessa pintura, assim como em outras de Ticiano, é que estudos e fotos de raio-X do quadro constataram que não há linhas sob as cores, mas apenas tinta pura! É isso mesmo: Ticiano modelava suas imagens sem desenho, apenas pela aplicação de cor. Jogava com os pigmentos e manipulava as figuras somente com manchas cromáticas, uma inovação que lhe valeu a alcunha de "grande alquimista da matéria", por se apropriar dela e lhe infundir transcendência. É impressionante como Ticiano consegue reproduzir, com grande riqueza e perfeição, as texturas de diferentes tecidos, peles e superfícies, apenas manejando o empastamento de cores. Essa habilidade foi reconhecida e mencionada pelo próprio Giorgio Vasari, artista seiscentista que se notabilizou pela biografia de grandes artistas e é considerado o primeiro historiador de arte. Aliás, vale ressaltar que, enquanto Florença privilegiava a linha, o Norte da Itália destacou-se pela maestria de seus artistas no manejo de diferentes pigmentos coloridos.

Quem tiver o privilégio de contemplar a obra ao vivo, no MASP, notará que o negro da capa do cardeal não era "totalmente" negro: existem muitas cores ocultas ali, tais como azuis, vermelhos e verdes, o que fazia parte da estratégia cromática de Ticiano.

O quadro é extremamente sintético e constituído de apenas quatro elementos: o cardeal, a cortina, o relógio e o feixe de cartas nas mãos do cardeal. Ele abre a cortina como se quisesse nos revelar algo, no caso uma mesinha de trabalho, dando-nos a entender, de alguma maneira, que estamos diante de um homem muito importante. É interessante que, embora o cardeal fosse extremamente poderoso, ele não parece arrogante na pintura. Vale destacar que o relógio é um elemento muito frequente nas obras de Ticiamo, como se ele quisesse nos lembrar, permanentemente, do caráter fugaz do tempo.

Vamos, agora, analisar outras obras do mestre. Abaixo está o Retrato do Papa Paulo III com Alexandre e Otavio Farnese (1546). Os rapazes eram sobrinhos do pontífice e tinham a incumbência de administrar as finanças da Santa Fé. Uma curiosidade: a palavra "sobrinho", em italiano, é "nipote". Daí a origem da expressão "nepotismo" para designar o favoritismo para com parentes, especialmente pelo poder público. Sim, história da arte é cultura, sempre!

Ticiano - Retrato do Papa Paulo III com Alexandre e Otavio Farnese (1546)

A seguir está a Ascensão da Virgem (1516-1518), primeira grande obra de Ticiano para a igreja Santa Maria Gloriosa dei Frari, reduto da família Frare em Veneza e local onde o mestre está sepultado. Temos um esquema retangular na parte inferior, onde estão dispostos os apóstolos, e outro circular na porção superior, onde estão a Virgem com os querubins em um espécie de ciranda e a figura de Deus Pai mais acima. Note que a Virgem está no vértice de um triângulo imaginário que tem como base os dois apóstolos de vermelho.

Ticiano - A Ascensão da Virgem (1516-18)

É na igreja Santa Maria Gloriosa dei Frare que também está uma das mais célebres obras de Ticiano, a Madona de Pesaro (iniciada em 1519 concluída em 1528), encomendada pelo nobre Jacopo Pesaro como agradecimento aos céus pela grande vitória dos cristãos contra o Império Otomano na batalha da Ilha de Maura, Grécia, em 1502. No quadro vemos um alferes porta-bandeira arrastando um prisioneiro turco, o personagem de turbante.

Ticiano - Madona de Pesaro (1519-1528)

O aspecto mais inovador dessa pintura é que Ticiano subverteu totalmente a perspectiva central da Renascença, deslocando a Virgem e o Menino Jesus para a lateral, em uma radical mudança de ponto de vista. Em primeiro plano, estão Jacopo Pesaro e seu irmão, ajoelhados. Atrás do nobre de vermelho está o resto da família Pesaro. Vemos também São Pedro, com o livro aberto, bem como São Francisco e Santo Antônio à direita da Virgem.

A seguir está o Retrato de Federico II de Gonzaga (1529), príncipe de Mantova. A imagem do cãozinho dando a pata pode ser interpretada como um símbolo da domesticação da natureza pela razão.

Ticiano - Retrato de Federico II de Gonzaga (1529) - Museu do Prado

Abaixo está o Retrato de Eleanora Gonzaga della Rovere (1536-1538), filha de Federico II. Novamente aparece o relógio, ícone recorrente na pintura de Ticiano.

Ticiano - Retrato de Eleonora Gonzaga della Rovere (1536-1538)

O Autorretrato de Ticiano, a seguir, foi pintado em 1568 e revela grandes manchas cromáticas típicas do final de sua vida, quando houve um "quase derretimento da forma", segundo as palavras do prof. Renato Brolezzi.

Ticiano - Autorretrato (1568)

Abaixo está Carlos V na Batalha de Mühlberg (1548). Rei da Germânia e Itália e pai de Felipe II, rei da Espanha, Carlos V era um homem extremamente poderoso que governou por quase quarenta anos e tinha, sob seu comando, a área que hoje equivale à Alemanha. Renunciou ao poder pouco antes de morrer, em um convento. O cavalo, aqui, possui uma simbologia própria, mostrando que o rei conduz a natureza lado a lado, em igualdade de forças, ao invés de domesticá-la. Note as cores da pintura, realmente deslumbrantes!

Ticiano - Carlos V na Batalha de Mühlberg (1548) - Museu do Prado

Grande pintor também de temas mitológicos, Ticiano criou obras como O Bacanal (1523-1526), uma de suas primeiras pinturas, na qual já podemos notar grande riqueza cromática. Dá para perceber, também a semelhança com a obra 'Festim dos Deuses' (1514-1529), de seu professor Giovanni Bellini.

Ticiano - O Bacanal (1523-1526) - Museu do Prado

Giovanni Bellini, mestre de Ticiano - O Festim dos Deuses (1514-1529)

Na próxima pintura, Baco e Ariadne (1520-23), as poses das figuras estão um tanto teatrais. Baco chega numa ilha em uma carruagem de ouro puxada por panteras, ao lado das bacantes e dos faunos. Lá encontra Ariadne e se apaixona, mas ela ainda sofre por ter sido abandonada por Teseu, filho de Zeus e Danae.

Ticiano - Baco e Ariadne (1520-1523) - National Gallery, Londres

A próxima obra de temática mitológica, Danae recebendo a Chuva de Ouro (1553), narra a história da mãe de Teseu, o jovem que partiu o coração da pobre Ariadne da obra anterior. Esta é uma pintura extremamente sensual - diz-se, mesmo, que Ticiano criou a poesia erótica pictórica, a qual ele mesmo denominava "poesia pintada". Aqui, vemos a jovem Danae trancafiada no porão por seu pai Acrísio, porque ele havia ouvido uma profecia de que seria morto por um neto e, mantendo a filha longe dos homens, ela não teria como conceber uma criança. Danae era guardada por uma escrava, mas Zeus a avistou dos céus e se apaixonou. Como não era bobo nem nada, Zeus então provocou uma chuva de moedas de ouro para atrair a escrava para fora, ela saiu deixando uma fresta da porta aberta e Zeus entrou no porão disfarçado em névoa. Lá dentro, se metamorfoseou num belo jovem e o resto da história dá para imaginar... Danae engravidou e então nasceu Teseu. Anos mais tarde, o avô Acrísio e o neto se reencontraram numa festa e, ao arremessar um disco, o neto sem querer atingiu o avô, que morreu, concretizando a profecia. Os deuses não perdoavam nada!

Ticiano - Baco e Ariadne recebendo a Chuva de Ouro (1553)

O políptico Ressurreição de Cristo, um óleo sobre madeira de 1522, é um dos primeiros noturnos da história da arte. Do lado esquerdo, ajoelhado, está Altobello Alveroldi, o nobre que encomendou o quadro em 1520. E do direito, estão a Virgem e São Sebastião em seu martírio. Nesta imagem não dá para visualizarmos, mas a data de 1522 está do lado direito, junto da representação de São Sebastião.

Ticiano - Ressurreição de Cristo (1522)

Na pintura Não me toque (c.1514), Cristo aparece para Maria Madalena após sua Ressurreição, antes de ascender aos céus. Ela tenta tocá-lo, maravilhada, mas ele lhe diz: "Não me toque, não pertenço a este mundo!". É essa cena mágica que Ticiano retrata abaixo.

Ticiano - Não me Toque! - (c.1514) - National Gallery, Londres

A seguir está Maria Madalena arrependida no deserto (década de 1560), quadro que tem uma luz extraordinária!

Ticiano - Madalena Arrependida (década de 1560)

Na obra Anunciação (1563-1565), uma das últimas pinturas de Ticiano, o anjo Gabriel está à esquerda e, acima, a radiosa luz do Espírito Santo, em formato de pombo, fecunda a virgem vestida de vermelho e azul. O vermelho simboliza a Terra e o azul o céu.

Ticiano - Anunciação (1563-1565)

As imagens dão uma ideia da maestria de Ticiano no manejo da cor, mas nada como apreciar as obras ao vivo, nos museus do mundo! Se a Itália, Londres ou a Espanha forem muito longe, um pulinho ao nosso MASP já resolve o problema! 

sábado, 20 de setembro de 2014

Bar Balcão. O clássico do calor humano.

Em uma cidade com tantos bares que nascem, crescem, criam clones e morrem na velocidade de um gole, é um alento retornar a locais que já surgem com a vocação para ser clássicos. É o caso do Bar Balcão, instalado há anos em uma esquina da Rua Melo Alves, pertinho da Paulista. Não me pergunte há quanto tempo ele foi inaugurado porque não sei. Só sei que é o tipo de bar onde me sinto acolhida. Um bar que vai muito além dos modismos e que, mais do que sobreviver, tem vivido - e muito bem, obrigada! – com uma clientela fiel, satisfeita, descolada e interessante - pelo menos dentro daquilo que considero interessante, por assim dizer. A casa é frequentada por artistas, músicos, designers, jornalistas, profissionais liberais, o povo de comunicação, uma turma da happy hour – enfim, uma fauna diversificada e mais madura, felizmente com perfil bem diferente daquele que tem superpovoado boa parte da Vila Madalena de uns anos para cá.

A fachada já dá uma ideia do clima de aconchego no interior - Foto: Simone Catto

O Balcão ganhou esse nome porque seu salão é circundado por um enorme, único e sinuoso balcão contínuo, permitindo a aproximação das pessoas. Por isso, não é o tipo de bar aonde você deve ir para discutir a relação ou ter um tête-à-tête ao pé do ouvido. Mesmo assim, lá a gente sente uma grande sensação de "pertencimento" e, se houver clima, pode até acabar engatando um papo com a pessoa ao lado. Não foi meu caso, porque eu estava em ótima companhia, totalmente absorvida na conversa e meu propósito era outro. (rs)

Calor e proximidade: esse é o clima em torno do enorme balcão! - Foto: Simone Catto

A decoração do bar destaca-se por uma enorme pintura do artista norte-americano da pop art Roy Lichtenstein, que domina todo o salão. Nos fundos há também um mezanino, mas o espaço mais agradável é mesmo o do balcão amigo. A iluminação em tons alaranjados contribui para o clima de aconchego.

A tela de Roy Lichtenstein dá um charme pop ao lugar - Foto: Simone Catto

Detalhe bem bolado: caso o cliente saia para fumar, o centro do salão tem várias plaquinhas como esta abaixo para sinalizar que o lugar está ocupado. Assim ninguém corre o risco de perder o lugar ou de que o garçom recolha sua bebida da mesa!

Foto: Simone Catto

O cardápio tem opções etílicas para todos os gostos. Naquele dia tomei uma margarita, mas devo dizer que já provei melhores. Além disso, estranhei o copo, já que a bebida costuma ser servida naquelas taças com haste fina, formato triangular e boca larga.

Minha margarita... - Foto: Simone Catto

A Torta Pecã estava boa! - Foto: Simone Catto
Para comer, fomos de sanduíches. O meu, chamado Balcão Filé e Vegetais, levava filé mignon, cogumelos na manteiga, abobrinha e tomates grelhados, servidos no pão ciabata (R$ 26). Como o lanche tinha um tamanho respeitável, deu para dividir com uma amiga. Nem me atrevo a inserir a foto porque ficou ruim demais! 

Depois deu vontade de comer um doce e optei pela Torta Pecã, isto é, torta de nozes-pecã ao forno com sorvete de creme (R$ 16). Estava gostosa. A foto também não está lá essas coisas, mas seja o que Deus quiser.

Se você mora e/ou trabalha na região ou simplesmente gosta de papear num clima descontraído enquanto toma uma bebida, certamente vai encontrar um porto seguro no Balcão. Estive lá em plena terça-feira e o bar estava cheio, embora não estivesse lotado a ponto de não conseguirmos mesa. Anote aí: o BAR BALCÃO fica na Rua Dr. Melo Alves, 150 – Jardim Paulista – tel.: 3063-6091. Abre todos os dias das 18h à 01h.

sábado, 13 de setembro de 2014

'Bem-vindo a Nova York'. Depardieu dá show como o famoso tarado sexual processado por camareira.

Confesso que estava procrastinando um bocado para escrever sobre esse filme. Ele acabou de estrear em São Paulo, está com uma boa cotação nos guias especializados, mas devo dizer que o achei um tanto deprimente – talvez pela rudeza como a história, já pesada por si só, foi abordada e narrada. 

Para quem não sabe, o enredo de 'Bem-vindo a Nova York', filme de Abel Ferrara, é baseado em um escândalo sexual ocorrido há uns três anos nos Estados Unidos. Na ocasião, Dominique Strauss-Kahn, um francês sessentão todo-poderoso do Fundo Monetário Internacional e que inclusive aspirava à presidência da República pelo Partido Socialista, tentou violentar a camareira do hotel cinco-estrelas onde se hospedava em Manhattan, e ela meteu-lhe um processo. A história estourou na imprensa do mundo inteiro e o réu renunciou a seu cargo no FMI, embora não tenha permanecido quase nada atrás das grades.

No filme, o protagonista pervertido chama-se M. Devereaux e quem o interpreta é o excelente Gerard Dépardieu, magistral em sua caracterização. Já no início, percebe-se o tipo de homem que ele é: um sujeito totalmente devasso, repugnante e viciado em sexo que não poupa de suas investidas nenhuma mulher que cruze seu caminho. Logo de cara, há uma sucessão de cenas de orgia em que Devereaux e seus "amigos" divertem-se com prostitutas de luxo em hotéis e até no próprio local de trabalho. Em determinado momento, inclusive, ele tenta "empurrar" uma delas, sem pudor algum e sem sucesso, para cima de outro executivo de quem deseja obter vantagens. As cenas de sexo são mostradas com tal crueza, e o clima é tão barra-pesada, que é impossível não sentir asco por aquele homem.

Gerard Dépardieu em uma das cenas de orgia.

Para completar, Depardieu imprime todo o peso de sua imoralidade ao aspecto físico do personagem, um homem imenso que anda com dificuldade e se arrasta para lá e para cá com um corpanzil disforme e uma respiração constantemente ofegante.

Devereaux é casado com a elegante e discreta Simone, interpretada por Jacqueline Bisset, que até o escândalo estourar suporta heroicamente as traições e libertinagens do marido, fornecendo-lhe todo o apoio necessário para que se candidatasse à Presidência da República na França. Quando o homem vai para a cadeia, é ela que levanta o dinheiro para pagar a fiança milionária que irá libertá-lo. Apesar de passar por situações humilhantes na prisão, sobretudo se considerarmos sua posição social e financeira, Devereaux mal tem tempo de sentir o que significa realmente estar confinado numa cela. E em uma reflexão final, sua absoluta ausência de moralidade fica patente na forma autoindulgente como encara seus atos e seu comportamento.

Jacqueline Bisset interpreta 'Simone', a esposa elegantérrima com paciência de Jó e estômago de avestruz.

Momento da revista na prisão: humilhação em cena dantesca.

Naturalmente, conforme assinala um letreiro no início do filme, nem tudo o que é mostrado corresponde à realidade, inclusive porque seus realizadores não teriam como ter acesso a determinadas informações, como as nuances do relacionamento do próprio Strauss-Kahn com a esposa e alguns detalhes sórdidos de suas aventuras sexuais. Não sei se, caso o diretor tivesse tido uma mão mais leve e abordado o tema de forma mais branda, sobretudo nas cenas de sexo, minha impressão teria sido diferente. Desconfio, contudo, que a intenção tenha sido essa mesmo: chocar, para que o espectador fosse impactado com a sordidez da situação em toda a sua dimensão.

Ficou curioso(a)? ‘Bem vindo a Nova York’ está em cartaz no Espaço Itaú de Cinema – Frei Caneca, no Caixa Belas Artes, no Reserva Cultural e em outras salas.

Ficha técnica parcial

Direção: Abel Ferrara
Elenco: Gérard Dépardieu, Jacqueline Bisset, Marie Mouté, Amy Ferguson, Paul Calderon e outros.

domingo, 7 de setembro de 2014

'Todos os Musicais de Chico Buarque em 90 Minutos'. Um tributo à altura do mito.

Meus pais sempre gostaram do Chico Buarque. Em determinada época, quando os discos ainda eram de vinil, eles ouviam muito um chamado 'Meus Caros Amigos', que continha belas músicas do Chico, dentre as quais a sensualíssima 'O Meu Amor', imortalizada na voz da Elba Ramalho. Ao contrário de meus pais, infelizmente não tive como assistir a musicais do Chico. Portanto, foi com surpresa que descobri, ao assistir ao espetáculo 'Todos os Musicais de Chico Buarque em 90 Minutos', no Teatro FAAP, que muitas das músicas que eu ouvia e gostava quando criança haviam feito parte do repertório de musicais que marcaram época. Outras canções ficaram famosas não só por sua melodia e/ou letra, mas por terem sido gravadas por grandes intérpretes. É o caso da já citada 'O Meu Amor', com a Elba, da belíssima 'Sob Medida', que ficou conhecida na bela voz rouca da Fafá de Belém, da fofa 'João e Maria', que na realidade foi composta pelo Sivuca (Chico "só" escreveu a letra) e foi interpretada por Nara Leão, e de 'Bastidores', que ganhou várias doses extras de dramaticidade e purpurina na interpretação impagável de Cauby Peixoto.

O elenco do espetáculo.

Sob o comando da dupla mais quente dos musicais encenados em palcos tupiniquins, Charles Möeller e Claudio Botelho, o espetáculo na realidade não tem noventa minutos, mas cento e trinta e cinco – isto é, duas horas e quinze minutos - muito bem aproveitados. Concebido como uma homenagem ao Chico, que completou 70 anos recentemente, a montagem não é nem uma peça e nem um musical, mas uma espécie de "show dramatizado" no qual oito cantores/atores, inclusive o próprio Botelho, interpretem canções do artista – algumas bem conhecidas e outras nem tanto -, encenando as situações das letras. Botelho integra o elenco como o diretor de uma trupe teatral mambembe, o que fornece o ponto de partida para as interpretações das canções.

Claudio Botelho com o elenco ao fundo.

Além de temas presentes em musicais como 'Roda Viva' (1967), 'Calabar' (1973), 'Gota d'Água (1975), 'Ópera do Malandro' (1978), 'O Grande Circo Místico' (1982) e 'O Corsário do Rei' (1985), o espetáculo também tem músicas que fizeram parte da trilha sonora de filmes como 'Quando o Carnaval Chegar' (1972), 'Dona Flor e Seus Dois Maridos' (1976), 'Bye Bye' Brasil (1979) e 'Para Viver um Grande Amor' (1983).

Fiquei impressionada com a qualidade dos intérpretes. Todos eles, sem exceção, são excelentes. Têm belas vozes, são afinadíssimos e alguns inclusive apresentam uma tessitura vocal mais ampla - certamente já integraram o elenco de musicais que vêm fazendo sucesso por aqui, boa parte dos quais encenada por Möeller e Botelho.

Esta montagem ficou em cartaz no Teatro FAAP por apenas um mês, infelizmente, e hoje foi o último dia de apresentação. No entanto, quando fui assistir, no sábado passado, ao se despedir da plateia no final do show, Claudio Botelho não descartou a possibilidade de uma nova temporada. Não sei se no próprio Teatro FAAP ou em outro lugar, mas, de qualquer forma, é bom ficar de olho! Vamos torcer para que esse belo espetáculo retorne aos palcos de Sampa!

Elenco: Claudio Botelho, Soraya Ravenle, Malu Rodrigues, Davi Guilhermme, Estrela Blanco, Felipe Tavolaro, Lilian Valeska e Renata Celidonio.

Músicos: Thiago Trajano – violão, Luciano Correa – cello, Priscilla Azevedo – piano e acordeão, Marcio Romano – percussão.

Orquestração e arranjos: Thiago Trajano 

Arranjos vocais: Jules Vandystadt