quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Alphonse Mucha, o mago da Belle Époque.

Você consegue pensar em algum artista plástico cuja obra seja mais conhecida que ele próprio? Pois bem, eu diria que Alphonse Mucha é um desses casos. É provável que muita gente já tenha se deparado em algum momento de suas vidas com ilustrações de mulheres ao mesmo tempo delicadas e sensuais, envoltas em arabescos e ornamentos de flores e folhagens vivamente coloridos. Eu mesma creio ter visto uma obra de Mucha pela primeira vez ainda criança. Talvez em alguma revista, já que meus pais sempre tiveram muitas revistas em casa, ou então na capa de algum caderno universitário na papelaria, ou mesmo em alguma peça decorativa de uma loja de presentes. Contudo, só após a adolescência é que vim a saber que o criador daquelas mulheres belas e exuberantes era o artista tcheco do Art Nouveau. A essa altura, aliás, eu também já havia me apaixonado por esse estilo artístico e decorativo que pareava com o Simbolismo na literatura e na pintura e teve seu contraponto musical com Debussy, Ravel e Erik Satie. Quando tive a oportunidade de visitar Praga, alguns anos atrás, não me furtei a visitar o museu dedicado ao artista que apaixonou Paris no período da Belle Époque, na virada do século XIX para o século XX, e foi assim que pude mergulhar um pouco mais no universo onírico de Alphonse Mucha. 

Tudo começou em 1894, quando Mucha criou seu primeiro pôster para divulgar a peça ‘Gismonda’, estrelada pela atriz Sarah Bernhardt, ícone da época. Esse trabalho, o primeiro de muitos para a diva dos palcos que se tornaria grande amiga e apoiadora, o tornaria famoso: em apenas seis anos, o jovem moraviano até então desconhecido não só revolucionaria os cânones dos cartazes publicitários como também desenharia os contornos do Art Nouveau. Mucha possui um estilo único e inconfundível, do tipo que detectamos tão logo deitamos os olhos em alguma de suas obras, mas, embora nem toda a magia de um talento possa ser explicada, vale a pena elencar algumas características pictóricas que muito contribuíram para que o artista conquistasse Paris e o mundo.

Alphonse Mucha - cartaz para 'Gismonda', 1894

1. Arabescos em profusão 

No universo de Mucha, o arabesco é o principal motivo decorativo e, não por acaso, se tornaria a assinatura do movimento Art Nouveau. O corpo da mulher, quando não está serpenteado e quase fundido aos contornos de uma luxuriante vegetação, ganha sensualidade e volúpia graças a um sutil jogo de curvas. Mucha engendra, assim, um novo ideal feminino que encarna uma beleza em harmonia com a Natureza, a qual, por si mesma, inspira toda a criação artística. 

No cartaz abaixo, o cabelo da mulher, contornado por linhas negras, escapa revolto e invade com rebeldia várias porções do quadro, como se quisesse reclamar a posse do espaço. Quando o artista abandona o mundo da publicidade e se dedica à glória dos povos eslavos após 1910, fará com que a mulher continue a encarnar uma mensagem inspirada, porém sem a efervescência que caracteriza sua produção parisiense de 1894 a 1902.

Alphonse Mucha - cartaz publicitário para o cigarro 'Job', 1896

2. O halo, um sinal místico 

Se você reparar, várias das mulheres de Mucha são circundadas por um halo adornado com motivos estilizados. Falamos então de "estilo Q": o corpo feminino constitui a “perninha” da letra, como o cartaz ‘La Danse’, abaixo. O artista chega a brincar com esse traço em seus autorretratos fotográficos, também se enquadrando nesse motivo circular. Embora realmente fascinado pela estética e pela mística da Igreja Católica, Mucha é movido acima de tudo por valores humanistas e espirituais. Está em busca de uma verdade universal, livre de diferenças culturais e religiosas. Se seu duplo envolvimento com a maçonaria e o misticismo pode parecer contraditório à primeira vista, para ele trata-se simplesmente de uma extensão de sua evolução espiritual. Mucha é um filósofo-artista convencido de que sua arte pode ajudar a criar um mundo melhor.

Alphonse Mucha - 'La Danse', 1898

3. A fotografia como ferramenta

O meio fotográfico é fundamental na obra de Mucha, tão onipresente em seu trabalho quanto o esboço preparatório, o que fica evidenciado pelos “quadrados” que desenha diretamente em uma impressão antes de transpor uma figura para a tela. Com um gosto muito pronunciado pela direção e pelo cinema, ele mobiliza, para tirar suas fotos, os amigos (Gauguin, por exemplo), modelos profissionais, sua família (a esposa Maruška e a filha Jaroslava) e conhecidos que encontra durante suas viagens aos países do Leste, Balcãs e Rússia. A Fundação Mucha em Praga guarda mais de 2.000 dessas fotos, uma coleção na qual o artista compunha cenas como se fossem peças de quebra-cabeças.

Mucha et Jaroslava posando para o cartaz 'De Forest Phonofilm', um dos primeiros filmes falados transmitidos em Praga, c.1927.

4. A exaltação da cultura eslava 

Quando Mucha chegou a Paris, em 1887, era cidadão do Império Austro-Húngaro. A progressiva afirmação de uma identidade eslava e o despertar nacional passam, então, pela valorização do folclore e das tradições populares. Mucha reforça esse nacionalismo quando se retrata vestindo a camisa russa "rubashka" ou então vestindo suas modelos com trajes adornados com bordados tradicionais. Seu compromisso é tão forte que, quando a independência da Tchecoslováquia foi proclamada em 1918, ele desenhou selos comemorativos e papel-moeda. Mas seguindo sua concepção universalista, também incorpora motivos ornamentais de outras culturas - celta, grega, islâmica, japonesa, egípcia - com destaque para Bizâncio, que o artista considera como o alicerce da cultura eslava.

Alphonse Mucha - 'Rêverie', 1897

5. Um espaço pleno de símbolos e ornamentos

A abundância de detalhes e a riqueza ornamental contribuem para a exuberância decorativa, tanto que o tema feminino acaba se confundindo com o fundo. Mucha leva esse gosto pela decoração ao extremo também na criação de joias fantásticas, embora as únicas que veriam a luz do dia são aquelas encomendadas pelo joalheiro Georges Fouquet para a Exposição Universal de 1900, para sua boutique na rue Royale e para a onipresente musa Sarah Bernhardt. Todos esses trabalhos têm uma leitura dúbia: aqui e acolá, Mucha insere símbolos místicos, tais como a estrela de seis pontas, a lua, o sol e a roda; ou então elementos maçônicos, como folhas de louro, o triângulo e ícones egípcios.

Alphonse Mucha - 'O Zodíaco', 1896

6. A reinvenção ousada do pôster

Enquanto Jules Chéret e Henri de Toulouse-Lautrec dominam o gênero pôster, um com suas “chérettes” (jovens vedetes com as pernas de fora) e o outro com suas cores planas, Mucha abre um novo caminho. Quando Sarah Bernhardt deseja relançar sua peça ‘Gismonda’ entre o Natal e o Ano Novo de 1894 com um novo pôster publicitário, o gráfico Lemercier recorre a Mucha porque ele era o único artista disponível no período das festas. O resultado é conhecido: a "Divina" Sarah fica enfeitiçada e compreende imediatamente a originalidade desse artista que ousou propor para o cartaz um formato estreito e alto no qual inscreve a atriz, como um ícone, com cores suaves e detalhes fortes. O sucesso é tanto que o público tenta subornar os funcionários que colam os cartazes nas ruas de Paris ou acorrem à oficina gráfica de Lemercier para conseguir um exemplar. E assim nasce uma lenda.

Fonte: Beaux Arts Magazine