Essa
lembrança está entre as melhores de minha infância. Se hoje possuo um mínimo de
inventividade e imaginação, não duvido que isso se deva, entre outros fatores,
às centenas de "viagens" literárias que empreendi desde criança. Eu tinha, ou
melhor, guardo até hoje com o maior carinho, uma coleção de livros grandes, de
capa dura com belas ilustrações, que contêm dezenas de contos de fadas dos mais
diversos países – cada livro dedicado a um país. Provavelmente, li pela
primeira vez a fábula 'A Bela e a Fera' num deles, no volume que diz 'Os mais belos contos
de fadas franceses', já que essa fábula foi escrita por uma francesa nos idos
do século XVIII.
A 'Belle' (Josette Day) e a Fera (Jean Marais) no filme de Jean Cocteau. |
Recentemente,
tive a alegria de reencontrar essa belíssima fábula no cinema, quando La
Belle et la Bête (1946, 35mm, 96'), obra-prima do genial multiartista Jean
Cocteau (1889-1963), foi exibida na Cinemateca como parte da programação do Festival de
Cinema da Francofonia, realizada pela Aliança Francesa.
La Belle et la Bête retrata um mercador empobrecido que tem três filhas e precisa partir numa
viagem de negócios. Ao perguntar às filhas se desejam algum presente, duas
delas, más e gananciosas, pedem que o pai leve joias e vestidos. A terceira
filha, Belle (Josette Day - 1914-1978), simples e de alma bondosa, pede-lhe
apenas uma rosa. O mercador parte então em viagem, perde-se na floresta e
depara-se com um misterioso castelo. Ao arrancar do jardim do castelo uma rosa
para levar a Belle, é surpreendido pela Fera, que ameaça matá-lo por roubar
suas rosas - a menos que o mercador lhe dê, em troca, uma de suas filhas.
Belle (Josette Day) serve o pai e as irmãs megeras na modesta casa paterna. |
Avenant (Jean Marais) era um jovem que cortejava Belle. |
Belle se dispõe
a fazer o sacrifício de ir ao castelo no lugar do pai. Apesar de inicialmente
se assustar com a aparência aterradora da Fera, meio homem e meio monstro, pouco
a pouco vai percebendo que por trás de toda a sua feiura existem lampejos de
humanidade.
Belle chega ao castelo onde a Fera mora, lúgubre e assustador. |
A Fera, por sua vez, se encanta com a beleza e a bondade da jovem, tornando-a senhora do castelo e cobrindo-a de joias e trajes dignos de uma princesa. Tudo isso acontece em meio a uma atmosfera fantasmagórica carregada de mistério e magia, enfatizada por uma belíssima fotografia em preto e branco.
Belle, vestida como uma verdadeira princesa com as roupas e joias presenteadas pela Fera. |
Belle
consegue permissão da Fera para visitar o pai, falido e doente, sob a promessa
de retornar em uma semana. Ao aparecer na casa paterna ricamente vestida e
coberta de joias, desperta a inveja das irmãs e a cobiça de Avenant, o jovem
enamorado que frequenta a casa da família. Os três, com a ajuda de outro
aldeão, planejam matar a Fera e roubar seus tesouros. As irmãs roubam a chave dos
tesouros que a Fera havia confiado a Belle e os dois homens partem para o
castelo. Avenant consegue abrir o local do tesouro com a chave, mas, quando
estava prestes a entrar, uma estátua guardiã da deusa Diana adquire vida e o mata
com uma flechada. Nesse momento, o encanto se desfaz e a Fera se transforma num
belo príncipe que... tem o rosto de Avenant. Sim, a Fera, Avenant e o príncipe
foram interpretados pelo mesmo ator, o lendário galã Jean Marais (1913-1998), amante de Jean Cocteau. Marais estava perfeito nos três papéis, bem como
Josette Day no papel de Belle.
O encanto se desfez, e o príncipe ficou com a princesa... |
Dotado de
uma beleza plástica impressionante, o filme é pura poesia. A cenografia é
apuradíssima. Os figurinos são maravilhosos. Os efeitos especiais de magia
convencem e seduzem – o que é louvável, se considerarmos as dificuldades e as
limitações técnicas da época. Não, naquele tempo não existia computador, apenas
talento, pura e simplesmente!
Se eu já
era fã de Jean Cocteau e sentia grande curiosidade e fascínio em relação a Jean
Marais, depois desse filme minha admiração por ambos não apenas aumentou, como também
se estendeu à atriz Josette Day e a todos os envolvidos na criação da película –
veja alguns abaixo. Ao final do filme, estava plenamente
convicta de ter testemunhado a exibição de uma grande obra-prima. Se você gosta de cinema
e tiver a oportunidade de assistir a La Belle et la Bête, não perca. Mergulhar
naquele mundo de mistério e fantasia é, sem dúvida, uma experiência estética inesquecível.
Ficha
técnica parcial:
Direção: Jean Cocteau, René Clément
Elenco: Jean Marais, Josette Day, Mila
Parély, Nane Germon
Roteiro: Jean Cocteau
Fotografia: Henri Alekan
Figurinos: Christian Bérard
Trilha sonora:
Georges Auric
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