domingo, 31 de março de 2013

French Cancan, de Jean Renoir. Tributo ao Impressionismo numa explosão de alegria.

Posso estar enganada, mas possuo uma memória remota, mas muito remota mesmo, de já ter assistido a French Cancan (1954 – 35 mm - 102') na televisão, quando criança. E se não estiver errada, certamente foi na companhia de minha querida e saudosa vovó, ao lado da qual me aconchegava no sofá da saleta de TV para assistir aos clássicos exibidos em emissoras como Globo, Band (então 'Bandeirantes') e Record. Sim, àquela época havia bons filmes na TV aberta, e não o lixo que nos é impingido hoje.

Só sei que, ao saber que French Cancan, de Jean Renoir (1894-1979), seria exibido na Cinemateca como parte da programação da Festa Internacional da Francofonia, promovida pela Aliança Francesa, não quis perder por nada. Para quem não sabe, o diretor Jean Renoir é filho de Pierre-Auguste Renoir, um dos mais fabulosos mestres do impressionismo francês. E o que Jean fez, neste que é um de seus últimos filmes, foi prestar um belíssimo tributo ao pai e aos colegas pintores que, ao lado deste, sofreram por anos a fio o escárnio do establishment das academias de arte para triunfar ao final.

O alegre número de cancan exibido ao final, com fabulosas bailarinas.

Françoise Arnoul, no papel da mocinha Nini. Além de atriz, uma bailarina de primeira.

French Cancan nos remete a uma alegre e exuberante sequência de quadros animados de Toulouse-Lautrec, como se tantas de suas imagens de cabarés com dançarinas, burgueses de cartola, cortesãs, damas elegantes, artistas, bêbados e outros tipos tão encantadores quanto decadentes tivessem ganhado um sopro de vida e começado a desfilar diante de nossos olhos.

Uma versão do cartaz do filme, livremente inspirada em Toulouse-Lautrec.

Nini (Françoise Arnoul), ao centro, e o namorado Paulo (Franco Pastorino), antes de virar estrela no Moulin Rouge.

O colorido do filme grita diante de nós, capturando nosso olhar do início ao fim ao tingir de alegria os vícios de uma classe que mergulhava nos prazeres mundanos para esquecer sabe-se lá o quê. Não por acaso, French Cancan é uma das obras mais encantadores e populares de Jean Renoir.

No Moulin Rouge, as dançarinas literalmente "invadem" o salão.

Os burgueses se deliciam nos cabarés.

Henri de Toulouse-Lautrec - 'No Moulin Rouge' (1892), uma das obras que, possivelmente, inspiraram Jean Renoir.

Curiosamente, Edith Piaf faz uma breve participação, interpretando uma canção no papel da cantora Eugénie Buffet, que teve grande sucesso no final do século XIX.

E não é que a pequena "Pardal" também fez uma participação? Grande Piaf!

O enredo é singelo, assim como as atuações dos atores que, não raro, resvalam para uma interpretação francamente naïve. Essa suposta "ingenuidade" com que o diretor retrata a decadência moral do fim do século XIX, porém, é perfeitamente adequada ao estilo e caráter do filme. Afinal, a tudo se perdoa nas pinturas de Lautrec, bem como nesta obra-prima de Jean Renoir. Tanto num quanto noutro, o lirismo e a beleza absurda com que os vícios, a imoralidade e a decadência são retratados transcendem anos-luz a qualquer julgamento moral.

As alegres dançarinas, com Nini ao centro.
  
O cancan, toujours...

E a famosa versão de Lautrec para o 'Baile no Moulin Rouge' (1890).

O filme é inspirado na biografia de Charles Zidler, um dos fundadores do cabaré Moulin Rouge. Jean Gabin interpreta o elegante Henri Danglard, dono de um cabaré decadente em Montmartre que tem como atração principal a fogosa dançarina do ventre Lola (María Félix), que também é sua amante. 

Danglard (Jean Gabin), o dono do cabaré, e a amante Lola (María Félix).

Um dia, ao visitar outro cabaré com Lola e seus amigos, Danglard vê a jovem lavadeira Nini dançar e se encanta com a vivacidade e graça da mocinha, convidando-a para compor um novo número que irá revitalizar o cancan, uma dança que todos já julgavam ultrapassada. Nini e as outras dançarinas são então treinadas por uma velha dançarina de cancan, Mme. Prunelle, para se apresentarem no Moulin Rouge, o novo cabaré construído por Danglard para salvá-lo da ruína. Para desespero de Paulo, o jovem e belo namorado padeiro, Nini torna-se amante de Danglard, sem saber que o homem seduz cada nova estrela que promove em seus shows. Apesar do coração partido de Nini, dos ciúmes de Lola e das intrigas dos inimigos, Danglard naturalmente triunfa com o Moulin Rouge e o filme tem um grand finale que culmina numa explosão de alegria, um belíssimo e memorável número de cancan.


Assista aqui ao número final de cancan, sem dúvida o mais belo que já vi! Aliás, toda vez que assisto tenho vontade de pular pra dentro dessa festa!



Ficha técnica parcial:

Henri Danglard - Jean Gabin
Nini - Françoise Arnoul
Lola “La Belle Abbaisse” – María Félix
Paulo – Franco Pastorino
Mimi Prunelle - Pâquerette
Edith Piaf – Eugénie Buffet

domingo, 24 de março de 2013

Oui, a França também está aqui.

O rio Sena, sempre lindo... - Foto: Simone Catto 
Quem me conhece sabe de minha profunda identificação, sabe-se lá como e por quê, com a cultura francesa. Aliás, será que me chamo 'Simone' por acaso? rs... Sei lá. Só sei que, em 2011, participei de um concurso cultural promovido pela Aliança Francesa em São Paulo, no qual deveria apresentar uma produção literária com o tema 'O que há de francês em São Paulo?'. Então inscrevi o texto abaixo e - legal! - fui uma das vencedoras, tendo minha "obra" revelada em uma exposição na Aliança Francesa de Santo Amaro. E como estamos em plena Festa da Francophonie, resolvi compartilhá-la com vocês enquanto presto uma homenagem aos mentores que não param de me inspirar naquele país. Para uma melhor visualização, grafei as palavras de origem francesa em azul. É isso aí, vive la France qui habite Sampa! 

A França em Sampa

Em São Paulo, há um pouco de francês a qualquer tempo e em todo lugar.
Do pão francês que comemos ao despertar ao edredom que estendemos à hora de deitar.

Há um pouco de francês na Isabelle, Simone ou Michelle que, num dia de inverno, veste o mantô e o cachecol para ir trabalhar de metrô porque bateu seu Peugeot, Citroën ou Renault e destruiu o capô.

Há um pouco de francês em cada garoto no guichê da estação Trianon que compra bilhete vestindo boné com pompom.

Há um pouco de francês em cada amante que tira o sutiã em uma garçonnière secreta do Edifício Copan.

Há um pouco de francês em cada madame que sai com o chofer, para num bistrô e degusta champanhe enquanto o garçom serve o couvert.

Há um pouco de francês no sommelier do La Casserole, do La Tartine, do Le Vin e do Ça-Vaassim como há um pouco de francês no chef do Freddy, do Marcel, do Petit Trou e do Voilà.

Há um pouco de francês na moça que compra bijuteria no camelô depois de buscar o filho na creche e enfiar-lhe uma blusa de tricô. 

Há um pouco de francês em cada garota que retoca o batom no toalete depois de se lambuzar com o patê, a salada e o queijo na “baguette”.

Há um pouco de francês num hotel chique como o Renaissance ou o Sofitel, assim como há um pouco de francês em cada hóspede que veste o maiô, dá um mergulho, faz massagem e almoça um filé regado a bordeaux.

Há um pouco de francês em cada concièrge que faz reservas para o teatro e o balémas indica a rua Augusta para uma boate ou cabaré.

Há um pouco de francês em cada manequim que prova roupa no ateliêfaz pivô na passarela da SP Fashion Week e recebe um bom cachê.

Há um pouco de francês nos protestos da Avenida Paulista e na diversidade que enfeita cada pista.

Há um pouco de francês na beleza decadente do velho Centro e na pujança noturna que encanta quem está fora e dentro.

Há um pouco de francês em cada esquina, em cada bairro e por aí. Oui, Sampa, a França também está aqui!

Éclairs da Julice Boulangère... merveilleux, nham! - Foto: Simone Catto

segunda-feira, 18 de março de 2013

'O Pensionista'. Beleza, mistério e música ao vivo na primeira obra-prima de Hitchcock.

Ontem tive uma daquelas surpresas que, vira e mexe, me deixam maravilhada quando me aventuro por certos programas em Sampa. Fui pela primeira vez ao evento Cinematographo, no MIS – Museu da Imagem e do Som, que consiste na projeção de filmes mudos sonorizados por músicos ao vivo, como na década de 20. Desta vez foi exibido o longa O Pensionista, (Inglaterra, 1927, 68 min, DVD), de Alfred Hitchcock, considerado pelo próprio mestre como sua primeira obra-prima de suspense.

Ivor Novello, o protagonista.

Ivor Novello e June, a mocinha. 

Eu tinha pelo menos três razões para ir ao MIS: primeira, adoro bom cinema. Segunda, adoro Hitchcock. E terceira, adoro música boa ao vivo. Estava formada a "Santíssima Trindade" que, somada à simpatia que venho nutrindo pelo museu desde que André Sturm deu uma "chacoalhada" na programação cultural, me levou ao MIS em pleno domingo chuvoso. Naturalmente, comprei o ingresso com antecedência, pelo Ingresso Rápido, para não correr o risco de ficar sem. Inicialmente, o museu havia programado apenas uma sessão às 16h, mas, como os ingressos se esgotaram rapidamente, foi aberta uma outra sessão às 18h – é nessa que me encaixei. Aí entra outro detalhe assombroso: a inteira custou apenas R$ 4,00, acredite se quiser. Somado à taxa de conveniência da compra, esse valor fez com que meu programa – aliás, um PROGRAMAÇO! – saísse por inacreditáveis R$ 4,75.

Como já era de se esperar, a sessão das 18h também lotou e tinha fila de espera. O público? De todas as idades, mas predominava um pessoal na faixa dos 25-35 anos. Gente que, via-se, aprecia eventos culturais de qualidade.

Mas vamos ao filme. O Pensionista ('The Lodger – A story of the London fog') já apresenta, de cara, alguns elementos que passariam a ser recorrentes na futura obra do mestre Hitchcock. A fascinação por loiras é um deles: o enredo gira em torno de uma série de assassinatos de jovens loiras cujos corpos são sempre encontrados com um bilhete assinado por "The Avenger" ("O Vingador"). O cenário é uma Londres misteriosamente bela e sedutora com sua névoa envolta em sépia. E a primeira cena do filme, sintomaticamente, é o close do grito de uma loura sendo assassinada.

Quando a notícia dos assassinatos se espalha, as loiras ficam em polvorosa.

Outro elemento característico de futuras obras de Hitchcock que se faz presente nessa obra é o personagem inocente injustamente acusado de um crime que não cometeu. O injustiçado, no caso, é um belíssimo homem de cabelos negros, reservado e refinado, que se hospeda por um mês na casa de uma simpática família que aluga quartos mobiliados. Esse homem é interpretado por Ivor Novello (1893-1951), um sucesso dos palcos londrinos de então que fez fama sobretudo como compositor e cantor. Ao me deparar com o personagem, foi inevitável associá-lo à figura do dândi 'Dorian Gray', com toda aquela aura de mistério e sex appeal. Não duvido que o ator tenha povoado a imaginação - e a libido - de muitas inglesinhas que sequer imaginavam que, segundo consta, o deus preferia a companhia dos rapazes.

O misterioso pensionista chega à casa da família.

O homem discreto e elegante desperta suspeitas.

Gentil e cavalheiro, o inquilino não demora a conquistar a simpatia da mocinha.

A família anfitriã é constituída por um casal de senhores e sua bela filha Daisy – uma jovem também loira que trabalha como manequim e é constantemente assediada por um policial apaixonado e boa-praça da Scotland Yard (Malcolm Keen, 1887-1970). Nos créditos do filme, o nome da atriz aparece apenas como "June", sem sobrenome. Tentei rastreá-la no Google, mas até o momento não encontrei nenhuma informação sobre ela.

June, a atriz sem sobrenome...

O policial não sai da casa de Daisy.

Para desalento do pobre policial, é evidente que Daisy fica hipnotizada pelos encantos do misterioso inquilino que, em determinado momento, passa a despertar suspeitas devido a seu comportamento reservado e uma série de coincidências. No entanto, transformar o belo hóspede no assassino seria uma solução um tanto óbvia, além de que a mocinha não poderia terminar o filme com o coração partido. O resultado foi um estiloso happy end.

Quem leva a melhor é o belo inquilino.


É evidente que, apesar de sua genialidade, o filme tem alguns furos, como a cena em que o inquilino foge algemado da casa da família na companhia de Daisy, ambos sentam num banco a poucos metros dali para que ele lhe conte sua triste história, e os policiais não aparecem para prendê-lo, sendo que também estavam na casa. No entanto, lapsos como esse não constituem demérito, mas apenas um sinal da ingenuidade de uma obra criada por e para pessoas de um outro tempo. O Pensionista é um belíssimo filme valorizado por um enredo atraente, atores com grande aura de magia – a começar por Ivor Novello -, uma fotografia maravilhosa e uma fantástica atmosfera de mistério.


O acompanhamento sonoro ao vivo foi um show à parte. A trilha composta por Anselmo Mancini, que estava ao piano, contou com a participação de Moisés Pantolfi (vibrafone e percussão) e Ronnie Oliveira (baixo acústico). Extremamente envolvente, a música acompanhava perfeitamente o ritmo e o teor de dramaticidade das cenas, lembrando mesmo a trilha daqueles filmes mudos que, infelizmente, não passam mais na TV. Posso dizer que me senti como se tivesse sido transportada para os anos 20!!!

Segundo o site do MIS, a trilha de Mancini teve influências de Villa-Lobos e Philip Glass, entre outros, e foi inspirada pela sonoridade de Bernard Herrmann, compositor que teve uma longa parceria com Hitchcock em seus principais filmes sonoros, tais como Um corpo que cai (1958) e Psicose (1964).

O Pensionista foi exibido no MIS apenas no domingo, mas você pode conferir, abaixo, a obra-prima na íntegra. Está certo que a trilha sonora faz falta, mas, mesmo assim, vale a pena dar uma espiada!


domingo, 10 de março de 2013

68 La Pizzeria. Uma mineira com sotaque paulista e a cara dos Jardins.

É inacreditável a quantidade de restaurantes que têm sido abertos em São Paulo. Está certo que alguns não vingam, mas o fato é que a variedade gastronômica da cidade está ficando maior a cada dia. O que é muito bom, porque, cá entre nós, excetuando-se a oferta cultural e a gastronomia, não há nada que justifique uma criatura qualquer continuar vivendo nessa cidade de loucos. Estou errada? Porque vamos combinar: se for para morarmos em meio ao trânsito, à violência e à poluição, isso sem falar de tanta gente tranqueira, que pelo menos possamos gastar nosso suado dinheirinho com um restaurante charmoso, um champanhe, um teatro de alto nível ou mesmo um cinema seguido de uma boa pizza. Ah, é aqui que eu queria chegar.

Outro dia fui conhecer, com uma amiga, a 68 La Pizzeria, casa que possui matriz em Belo Horizonte e aportou em Sampa há pouco. Aliás, vale ressaltar que, de uns três anos para cá, São Paulo tem presenciado uma onda de inaugurações de restaurantes oriundos de outros estados brasileiros.

A fachada é discreta - Foto: Simone Catto

Bem, o que posso dizer, em primeiro lugar, é que a '68' é uma pizzaria muito bonita. Ao vislumbrarmos a fachada, no entanto, não imaginamos o tamanho da casa no interior. Assim que entramos, por exemplo, uma hostess nos indicou uma mesa com sofás, logo à entrada. Como o lugar nos pareceu agradável, ficamos por ali mesmo. A funcionária, no entanto, sequer nos mostrou o restante da casa, que, descobrimos depois, possui salões e ambientes muito mais gostosos na área externa. Se soubéssemos, teríamos nos acomodado em uma das mesas do jardim, já que a noite estava uma delícia!

Essa saletinha com vista para a rua é um charme. Porém, já estava ocupada quando chegamos... - Foto: Simone Catto 

O salão interno: ficamos numa das mesas com sofazinhos - Foto: Simone Catto 
  
A área externa... é ou não é mais charmosa??? - Foto: www.meiaoito.com.br

Somente na hora de ir embora, o gentil maître Silvano nos acompanhou aos outros salões e inclusive nos apresentou o Espaço Clicquot, que até então nem imaginávamos existir. No andar superior há outro belo espaço para eventos, a Adega Vip. Todos os ambientes da casa, aliás, são muito bonitos, com um charme bem contemporâneo.

O Espaço Clicquot, aos fundos, perfeito para um petit comité - Foto: Simone Catto   

A Adega Vip, no andar superior, também é estilosa - Foto: www.meiaoito.com.br

Outro ângulo da Adega Vip - Foto: Simone Catto

Para embalar nosso papo, pedimos primeiramente meia garrafa do chileno Carmen Carmenère, sempre uma boa pedida. A propósito, o site da casa informa que a adega oferece cerca de 600 rótulos de vinho e champanhe. Na hora de fazer o pedido, optamos por uma pizza meia San Remo, meia Selvaggia. A San Remo leva molho de tomate, mussarela de búfala, molho pesto, tomate cereja, basílico e queijo parmesão. E a Selvaggia é composta por molho de tomate, mussarela especial, shiitake assado com azeite, alho salsinha e basílico. Estavam ambas perfeitas, saborosíssimas!

Depois finalizamos a refeição com um cafezinho e... bingo!! Eu estava pronta para uma ótima noite de sono e um dia seguinte melhor ainda! Viva Sampa com suas fabulosas pizzarias – mesmo que sejam made in Minas!

Vale a pena conhecer a 68 LA PIZZERIA, mas, se o clima estiver agradável, peça uma mesa na área externa. O endereço é Al. Tietê, 54 – Jardins. Tel.: 3081-4057. www.meiaoito.com.br/sp

sexta-feira, 8 de março de 2013

'A Caverna dos Sonhos Esquecidos'. Um fascinante encontro em 3D com nossos espíritos mais ancestrais.

Se um amigo te convidasse a assistir, no cinema, a um documentário sobre cavernas pré-históricas, qual seria sua resposta? A maioria das pessoas, creio, declinaria educadamente e daria uma desculpa para sair correndo. Porque vamos falar claro: cavernas pré-históricas não são exatamente o tipo de assunto que costuma despertar grandes interesses nas pessoas comuns, certo?

Bem, era o que eu pensava, até assistir, no CineSesc, a 'A Caverna dos Sonhos Esquecidos', documentário dirigido em 2010 por Werner Herzog. Estive lá num domingo, e qual não foi minha surpresa, quando, já acomodada em minha cadeira, vi a sala encher e encher cada vez mais, até ficar quase completamente lotada? Detalhe: a sala do CineSesc tem 300 lugares. Definitivamente, não é nenhum "ovinho". Tudo bem que o perfil das pessoas com o hábito de frequentar o CineSesc e, notadamente, o público desse filme, não podem ser descritos como "grande massa". Percebe-se que é gente que possui um mínimo de formação e se interessa por cultura. Mesmo assim, me surpreendi com a quantidade de espectadores no cinema.

Mas do que trata 'A Caverna dos Sonhos Esquecidos', afinal? O filme mostra o interior e a paisagem do entorno da caverna de Chauvet-Pont-d'Arc, no sul da França, onde estão as pinturas rupestres mais antigas de que se tem notícia: foram produzidas há cerca de 32 mil anos. Vale ressaltar que elas têm o dobro da idade das pinturas descobertas na gruta de Lascaux, a caverna pré-histórica mais conhecida do mundo e também localizada no sul da França. Isso, por si só, já seria suficiente para atrair ao cinema um público de arqueólogos, cientistas, geólogos, paleontólogos, historiadores de arte, estudantes, fãs de Herzog e curiosos de qualquer espécie.

A riqueza do traço dos cavalos é impressionante! - Foto: © Jean-Marie Chauvet  
  
Diferentes pessoas fizeram os desenhos na caverna - Foto: © Jean Clottes

As técnicas e os pigmentos utilizados também são 
diferentes entre si - Foto: © Carole Fritz / Gilles Tosello
Há algo, porém, que deixou o documentário infinitamente mais interessante: ele foi todo produzido em 3D. Sim, o espectador literalmente caminha pela caverna de cerca de 400 metros de extensão e vê, como se essas visões estivessem a um palmo de seu nariz, maravilhosas pinturas de animais como ursos, bisões, cavalos, mamutes, rinocerontes e outros. São mais de 400 pinturas representando 14 espécies animais. Muitas mostram animais em movimento ou em situação de luta, e várias estão em alto-relevo, como esculturas incrustadas nas rochas – é o caso de um cavalo que está inserido num nicho – o que denota uma preocupação, por parte de seus autores, em imprimir maior realismo às imagens. Há também alguns desenhos de animais sobrepostos e, ao analisar um deles com o método 'Carbono 14', os cientistas descobriram, curiosamente, que os dois desenhos – um sobre o outro - foram criados com um intervalo de 5 mil anos entre si (!). Segundo Herzog, essas pinturas são como "um testemunho do nascimento do espirito humano". Não duvido!


Esse painel integra várias espécies de animais - Foto: © Norbert Aujoulat

Detalhe do cavalo ao centro do painel - Foto: © Norbert Aujoulat

Desenhos de animais sobrepostos: alguns têm milênios de diferença entre si! - Foto: © Jean Clottes

Tudo isso sem falar das pegadas de pessoas e animais que estão lá até hoje, das belíssimas formações minerais, fantásticas estalagmites e estalactites que pendem do teto, esculpidas há milênios pelo tempo e pela água. Verdadeiras obras de arte e testemunhos de uma era em que as forças da natureza ainda se impunham ao homem, despertando um misto de respeito e temor.

O misterioso interior da caverna - Foto: site oficial da caverna (rodapé)

Uma curiosidade: alguns dos homens pré-históricos que frequentaram a caverna deixaram pelas paredes várias marcas de suas mãos espalmadas, como se fossem carimbos. Ao seguir o rastro dessas mãos, os cientistas descobriram que um desses "artistas" tinha o dedo mindinho torto. A mão "carimbada" com o mindinho torto aparece aqui e ali, em diferentes pontos da caverna, de modo que os cientistas puderam mapear a "atividade artística" desse vovô pré-histórico tão peculiar.

O "carimbo" de uma mão em negativo - Foto: © Jean-Marie Chauvet

No entanto, descobriu-se que o homem não habitou a caverna de Chauvet, apenas a frequentou para encontros ou a prática de rituais. Isso é explicado pelo fato de não ter sido encontrado, em seu interior, nenhum crânio humano, mas apenas de animais - sobretudo ursos -, que possivelmente buscavam abrigo na caverna durante o inverno. 

Essa cruz é um verdadeiro enigma, já que seu autor viveu cerca de 30 mil 
anos antes da era cristã! - Foto: © Dominique Baffier / Valérie Feruglio

O crânio do urso foi colocado propositalmente sobre a pedra, o que sugere a prática de 
um ritual - Foto: © Jean Clottes

Há ossos de animais por toda a caverna - Foto: © Carole Fritz / Gilles Tosello

Toda essa riqueza pictórica e geológica só ficou preservada porque há cerca de 20 mil anos um deslizamento de rochas bloqueou a entrada da caverna, que só seria descoberta em 1994 e não está aberta ao público. Apenas uma seleta nata de cientistas, arqueólogos e espeleologistas tem permissão para entrar em Chauvet exclusivamente para fins de estudo, porque se descobriu que a respiração das pessoas cria, com o tempo, certos fungos que podem comprometer as pinturas. Isso já estava acontecendo com a gruta de Lascaux, o que motivou seu fechamento anos atrás e a construção de uma réplica exata para visitação dos turistas. Compreensivelmente, o grupo de cientistas autorizados a entrar em Chauvet não pode sequer tocar em nada dentro da caverna.

O que sobrou da entrada da caverna, soterrada 
há 20 mil anos e acessível apenas aos cientistas.
Foto: site oficial da caverna (rodapé) 
Em determinado momento do filme, são mencionadas marcas dos pés de uma criança de oito anos, ao lado das pegadas de um lobo, como se eles tivessem estado ali há pouco tempo. Isso se deve ao excelente estado de preservação da caverna, o que mais do que justifica as rígidas restrições de acesso. Teria o lobo protegido ou aprisionado a criança na caverna para devorá-la depois? Esse questionamento não foi só meu, mas suspeito que nunca saberemos a resposta!
 
A equipe de filmagem de Werner Herzog, por sua vez, só obteve autorização para filmar na caverna após longas negociações com o governo francês. Mesmo assim, a equipe só pôde incluir mais três técnicos, além do diretor, e teve permissão para filmar somente durante seis dias, no máximo quatro horas por dia. Todos, tanto a exígua equipe de filmagem quanto os poucos cientistas que a guiaram, podiam se locomover apenas sobre uma estreita passarela metálica de 60 centímetros de largura.

Apesar de tantas restrições, o talento do diretor e da equipe, aliados aos efeitos 3D, à magnitude do local e ao tema ao mesmo tempo atraente e intrigante, contribuíram para criar um filme verdadeiramente fascinante. Aliás, devo acrescentar que a linguagem 3D se presta maravilhosamente a um documentário como esse, por trazer até nós, com uma nitidez e veracidade impressionantes, toda a riqueza da topografia e dos detalhes das pinturas da caverna.  

Aqui vemos a estreita passarela sobre a qual a equipe de filmagem foi obrigada a circular - Foto: © Valérie Feruglio

O site da Globo.com tem uma entrevista muito interessante com o diretor Werner Herzog, vale a pena conferir! E se você quiser saber mais, acesse aqui o site oficial da caverna.

Mas nem é preciso dizer que o melhor, mesmo, é assistir ao filme em 3D no CineSesc! Afinal, trata-se de uma oportunidade única para conhecer a caverna de Chauvet por dentro, já que ela nunca será aberta ao público. Mas corra, porque atualmente o documentário tem sessões apenas às 15h e 19h10. O CineSesc fica à Rua Augusta, 2075. Tel.: 3087-0500. Não perca!