Faz mais de dez anos que li um livro intitulado 'Flores
Raras e Banalíssimas' e que muito me marcou então. De autoria de Carmen
L. Oliveira, ele narra uma história de amor transgressora situada em um período
nostálgico da história do Brasil: as décadas de 50 e 60, tendo como pano de
fundo a concepção e construção do parque do Flamengo, no Rio de Janeiro, a
bossa-nova, a queda do governador do então Estado da Guanabara, Carlos Lacerda,
e o advento do Golpe Militar. As protagonistas dessa louca história de amor são
Lota de Macedo Soares, rica, visionária, arrojada e realizadora, e Elizabeth
Bishop, poetisa norte-americana que figura no panteão dos melhores da língua
inglesa.
Há muito não ouvia falar dessas duas mulheres extraordinárias
até saber da estreia do filme ‘Flores
Raras’, de Bruno Barreto, ao qual tive a oportunidade de assistir em um fim
de semana no excelente Cine Livraria Cultura.
Miranda Otto e Glória Pires, soberbas como Elizabeth Bishop e Lota de Macedo Soares. |
Baseado no livro mas não totalmente fiel a ele, o filme mostra como Lota, mulher culta, determinada,
frequentadora das altas rodas e espécie de arquiteta autodidata, recebe em sua
casa encravada na mata de Samambaia, em Petrópolis - RJ, a tímida forasteira Bishop (a bela Miranda
Otto), que estava meio perdida na vida e no alcoolismo, em busca de outros ares
para recobrar a inspiração de escrever. Lota, interpretada pela excelente
Glória Pires, tem uma relação homossexual estável com outra americana, Mary
(Tracy Middendorf), mas acaba se apaixonando por Bishop, é correspondida, e aquela
que deveria permanecer no Brasil apenas dois dias acaba ficando 16 anos.
Mary (Tracy Middendorf), a ex-amante, e Lota. |
Elizabeth chega trazendo sua timidez na bagagem, mas a perdeu rapidinho. |
Durante alguns anos, o casal vive um relacionamento idílico numa paisagem de sonho: a exuberante casa de Lota na mata de Samambaia, em Petrópolis. |
As duas vivem felizes durante algum tempo e Bishop produz alguns
de seus melhores poemas durante esse interlúdio idílico. Porém, a avidez de
Lota em concretizar seu ambicioso projeto arquitetônico para o parque à
beira-mar do Aterro do Flamengo acaba consumindo todo seu tempo e energia,
relegando Bishop a um segundo plano. A escritora recai então no alcoolismo, e
as duas começam a se afastar até Elizabeth aceitar uma oferta para dar aulas em
uma universidade americana. A partir daí, Lota mergulha em uma espiral
decrescente até o desfecho trágico.
Um dos aspectos que chamam atenção, no filme, é o clima liberal que reina
no lar do casal. Bem relacionada, Lota recebe amigos para jantar, frequenta
recepções ao lado de Elizabeth e a relação homoafetiva das duas parece ser
encarada com naturalidade em uma época supostamente muito mais moralista e
intolerante. Detalhe: a casa onde as duas vivem no filme não é a residência onde o casal realmente viveu na mata de Samambaia, mas uma casa projetada por Oscar Niemeyer que fica no Rio Grande do Sul.
É curioso como, em determinado momento no início do filme, para apaziguar Mary, a parceira traída, Lota lhe propõe adotar uma criança, sonho há muito acalentado pela outra. E assim se faz. As três mulheres, mais a criança, passam eventualmente a conviver sob o mesmo teto, apesar do ciúme de uma ou de outra – principalmente de Mary em relação à americana. É crível imaginar que a aceitação desse casal heterodoxo tenha se dado, à época, graças ao prestígio social e dinheiro de suas protagonistas.
É curioso como, em determinado momento no início do filme, para apaziguar Mary, a parceira traída, Lota lhe propõe adotar uma criança, sonho há muito acalentado pela outra. E assim se faz. As três mulheres, mais a criança, passam eventualmente a conviver sob o mesmo teto, apesar do ciúme de uma ou de outra – principalmente de Mary em relação à americana. É crível imaginar que a aceitação desse casal heterodoxo tenha se dado, à época, graças ao prestígio social e dinheiro de suas protagonistas.
Lota e Elizabeth recebem em Samambaia diversas personalidades, entre as quais o governador
da Guanabara, Carlos Lacerda, interpretado por Marcelo Airoldi.
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Aqui vemos a criança adotada por Mary, uma menininha cercada de carinho pelas mulheres. |
Só sei que saí do cinema com uma sensação extremamente prazerosa por, passada
mais de uma década, compartilhar novamente
da intimidade, das realizações e também dos percalços daquele casal tão
improvável quanto fascinante. Enfim, trata-se de um belo filme que merece ser
visto por retratar uma época interessante de nosso país e, principalmente, por resgatar
e desvelar o relacionamento amoroso entre duas personagens tão excepcionais. Veja
o filme, mas, sobretudo, não deixe de ler o livro. É daqueles que a gente começa e
não consegue largar mais!
FLORES
RARAS não está mais em cartaz no Cine Livraria Cultura, mas está em outras boas
salas, como Reserva Cultural e Espaço Itaú de Cinema – Frei Caneca e Augusta.
Vale a pena assistir!
Ficha
técnica parcial:
Diretor: Bruno Barreto
Elenco: Glória Pires, Miranda Otto, Tracy Middendorf, Marcelo Airoldi e outros
Direção de Produção: Claudia Novaes
Direção de Arte: José Joaquim Salles
Diretor de Fotografia: Mauro Pinheiro
Figurino: Marcelo
Pies
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