Um homem atormentado. Estudioso. Cuidadoso. Detalhista ao
extremo. Assim era o pintor francês Nicolas
Poussin (Les Andelys, 1594 - Roma, 1665) em relação a seu processo de
criação. Isso, entre outras coisas, é o que descobri em mais uma excelente aula
ministrada pelo Prof. Renato Brolezzi
no MASP. Não é a primeira vez, aliás, que menciono neste blog as aulas desse mestre que consegue aliar uma erudição incrível a uma leveza
e um bom humor impressionantes. E não é por acaso que todas as suas aulas no
Grande Auditório do MASP fiquem completamente lotadas e, não raro, faltem
lugares para sentar.
Desta vez, a obra analisada foi 'Hymenaeus travestido durante um
sacrifício a Príapo' ou 'Himeneu assistindo a uma dança floral em
homenagem a Príapo', um imenso óleo sobre tela de Poussin que pertence ao MASP, mede 1,67 m X 3,76 m e foi pintado, provavelmente,
entre 1634 e 1638.
Poussin - 'Himeneu travestido durante um sacrifício a Príapo' (c. 1634-1638) - acervo do MASP. |
Mas antes de analisarmos a pintura, vamos falar um
pouco de quem a pintou: Nicolas Poussin.
Embora tenha nascido na França, Poussin não gostava de Paris: era apaixonado
por Roma, cidade rica e culta que adotou para viver a maior parte da vida. Sabe-se
que, em 1623, o artista já estava na cidade. Ao chegar lá, enfrentou inúmeras
dificuldades, mas conseguiu travar relacionamento com homens importantes. Um
deles foi o poeta Giambattista Marino, que o apresentou a grandes aristocratas
romanos que passaram a encomendar suas pinturas. Sabe-se que Poussin conheceu o
grande escultor Lorenzo Bernini e pertenceu à Academia de San Lucas. Dois
teóricos da época são grandes fontes de informação sobre seu trabalho: André
Philibien e Gian Pietro Bellori, este último também pintor e seu amigo. Apesar
de toda a glória, contudo, o prof. Brolezzi contou-nos que o artista sofreu
muito, teve muitas perdas, doenças e infelicidades.
Dois nobres, em especial, foram grandes compradores de Poussin
em Roma: Cassiano dal Pozzo e Francesco Barberini, este último sobrinho e braço
direito do papa Urbano VIII (pró-francês), que sucedeu Inocêncio X (pró-espanhol).
A título de curiosidade, vale dizer que vários palácios do séc. XVII têm
abelhas em seus ornamentos decorativos, pois os insetos faziam parte do emblema
da poderosa família Barberini.
O cardeal Richelieu também requisitou muito os serviços do
artista em Paris. Quando Luís XIV e seu primeiro-ministro Colbert criaram a
Academia Real de Belas Artes, em 1652, Poussin foi convidado a ser seu primeiro
presidente, mas recusou o convite por não querer abandonar Roma. Sim, Poussin é
a primeira criatura de que tenho conhecimento que não gostava de Paris!
Agora vamos ao quadro. Quem não conhece mitologia pode até achar
'Hymenaeus
travestido durante um sacrifício a Príapo' bonito ao contemplá-lo, mas
certamente não irá entendê-lo. Por isso, faz-se necessário – e isso o Prof.
Brolezzi faz muito bem – "traduzirmos" a pintura.
Príapo, na mitologia greco-romana, era filho de Vênus e Baco (ou
Afrodite e Dionísio, como também são conhecidos). Feio, barbudo e com um enorme
falo, era considerado o 'Deus da Fertilidade'. Segundo consta, na Grécia
antiga, as jovens prestes a se casar costumavam dançar em torno de uma herma
(estátua de meio-corpo) com a imagem do deus, a fim de atrair uma boa vida sexual e
muitos filhos. É uma dessas cenas que retrata a pintura.
Detalhe: na extrema direita do quadro, há um jovem travestido
chamado Himeneu. Note que é a única figura a calçar sandálias. Himeneu era
apaixonado por uma das dançarinas e se travestiu de mulher para poder assistir
à dança, porque o deus Príapo não permitia homens em sua presença, infligindo
castigos terríveis àqueles que o desobedecessem. Enquanto Príapo assistia disfarçado
a sua amada dançar, surgiu um bando de salteadores que queriam raptar e
estuprar as jovens. Himeneu, que trazia uma espada escondida sob as vestes, puxou-a
imediatamente, e os ladrões, achando que haveria mais soldados travestidos e
camuflados entre as moças, fugiram assustados. Neste caso, ao invés de castigá-lo,
Príapo encheu o jovem de honrarias. Daí o surgimento da palavra "hímen", quem
diria... o "protetor das donzelas"! Você sabia disso? Eu não!
Note que, à esquerda do quadro, há algumas jovens tocando
instrumentos musicais da Grécia Antiga. Esses instrumentos foram cuidadosamente
estudados por Poussin em coleções particulares de aristocratas de seu tempo. Vale
repetir que tudo em Poussin era estudado, analítico e seu processo de criação
era bem demorado. Basta dizer que, antes de pintar suas figuras, ele costumava
criar pequenas esculturas em terracota e só depois transferia as imagens para a
tela.
Admirador de Rafael, primeiro pintor a criar tipologias
teatrais, Poussin também apresentava um estilo pictórico teatral, geometrizado,
com poses estudadas. As cores primárias, vermelho, amarelo e azul, ganhavam
destaque especial em suas pinturas. Veja também que, no quadro que estamos
analisando, não há profundidade e nem perspectiva: ele foi concebido como se
fosse uma frisa, um relevo. E as figuras, com suas poses coreografadas, parecem
estátuas.
Uma curiosidade: o título da obra foi alterado em 2009, o 'Ano
da França no Brasil', quando a pintura foi restaurada pela equipe do Palácio de
Versalhes. Em virtude da precariedade do quadro à época, ele não pôde ser
despachado para a França: os restauradores franceses é que vieram para cá
executar o trabalho, em uma missão que durou mais de cinco meses. Depois da
restauração, foi revelado o desenho do enorme falo de Príapo, que estava pudicamente
oculto por camadas de tinta. O deus deve ter ficado feliz com a revelação de
seu avantajado dote natural! (rs).
Aqui, o detalhe do falo que foi revelado após a restauração pela equipe francesa. |
A pintura da dança em torno de Príapo foi provavelmente adquirida
junto de outro quadro do artista, denominado 'A Caça de Atalanta e Meleagro',
atualmente no Museu do Prado, em Madri. Essa pintura retrata uma cena da
mitologia grega citada nas 'Metamorfoses', de Ovídio: a vingança da deusa da Caça Diana (Ártemis) contra o cavaleiro Meleagro. As duas obras foram criadas sob
encomenda de Francesco Barberini para que a França as presenteasse ao rei Filipe
IV da Espanha, como um gesto de diplomacia, já que pairava uma certa rivalidade
entre as duas nações ricas, porém culturalmente opostas.
Poussin - 'A Caça de Atalanta e Meleagro' (1634-1639) - Museu do Prado, Madri. |
Ao longo da vida, Poussin fez muitas imagens de bacanais e danças
em homenagem a deusas. Por vezes, misturava os personagens e mitos numa mesma
obra.
Poussin - 'Bacanal com tocadora de alaúde' (c. 1626-1628) - Museu do Louvre, Paris. |
Poussin - 'O Triunfo de Flora' (c. 1627-1628) - Museu do Louvre, Paris Obs.: Flora era a 'Mãe das Plantas', na mitologia grega. |
A tela abaixo, 'O Triunfo de Anfitrite', faz parte
de quatro pinturas com temas náuticos que Poussin pintou sob encomenda do
cardeal Richelieu. Na mitologia grega, Anfitrite era uma das filhas de Netuno,
o deus dos Mares.
Poussin - 'O Triunfo de Netuno e Amphitrite' (c. 1637) |
Poussin também retratou temas bíblicos, como na impressionante pintura
'O
Martírio de Santo Erasmo'. Nessa terrível cena, os intestinos do santo são
arrancados e amarrados a um carretel. Daí São Erasmo tornar-se o protetor dos
alfaiates e marinheiros. No alto do quadro, à direita, vemos uma figurinha em forma de
estátua que destoa das demais: era Hércules, símbolo da força física e moral,
como se estivesse lá para encorajar o santo.
Poussin - 'O Martírio de Santo Erasmo' (1629) |
A obra abaixo, 'O Massacre dos Inocentes', mostra
um soldado romano prestes a assassinar uma criança a mando do rei Herodes. Trata-se
de uma cena teatral de grande sofrimento, com altíssima carga dramática.
Poussin - 'O Massacre dos Inocentes' (c. 1625-1629) Condé Musée, Chantilly, França. |
A próxima pintura, 'A Morte de Germanicus', foi
encomendada por Barberini. Germanicus foi um general da antiga Roma, aliado do imperador
Claudio, que venceu os bárbaros alemães. Quando seria nomeado sucessor de Claudio, foi envenenado por Nero, que tomou seu lugar. Do lado direto da tela,
vemos a esposa e os filhos do herói agonizante.
Poussin - 'A Morte de Germanicus' (1627) |
Perto da morte, Poussin pintou muitas paisagens alegóricas. Em 'Orfeu
e Eurídice', vemos o momento em que, de acordo com a mitologia, uma
cobra pica Eurídice quando ela está prestes a se casar com Orfeu. Eurídice morre
e vai para o Hades. O apaixonado Orfeu, contudo, consegue permissão da deusa do
Hades para buscar sua amada, mas com uma condição: não poderia olhar para trás
sob hipótese alguma. Orfeu não resiste, dá uma olhadinha em Eurídice, e o pior
acontece: Eurídice desaparece e Orfeu ainda é atacado e estraçalhado por um
grupo de jovens que passam por ali em uma bacanal. A fumaça no famoso castelo
romano de Sant'Angelo, ao fundo do quadro, é um sinal de mau presságio.
Poussin - 'Orfeu e Eurídice' (c. 1650-1653) - Museu do Louvre, Paris |
A próxima pintura, 'Dança das Horas', é uma alegoria sobre
a impermanência do ser. As quatro figuras que dançam de mãos dadas representam as 4 estações do ano. À esquerda, vemos uma herma em que a cabeça de um jovem está de costas para a cabeça de um velho. O bebê com as bolas de sabão, abaixo, simboliza a fragilidade do tempo.
Poussin - 'A Dança das Horas' (1634-1636) - Wallace Collection - Londres |
Se você também fica fascinado(a) com a simbologia existente por trás das pinturas, o próximo curso do prof. Renato Brolezzi será dia 14 de
setembro, das 11h às 13h, no Grande Auditório do MASP. Vale a pena assistir!
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