quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Nos passos da amante mais famosa do Brasil.

Fazia tempo que eu não caminhava pelo Centro de São Paulo, o dito "Centrão", mesmo, nas imediações da Praça da Sé e do Pátio do Colégio. Pude fazer isso no final de semana, em mais um tour histórico promovido pelo site São Paulo Antiga. Desta vez, o roteiro foi todo baseado na trajetória de Domitila de Castro Canto e Melo, a Marquesa de Santos (1797-1867), culminando com uma visita ao palacete onde ela morou por mais de 30 anos (de 1834 a 1867) e que abriga atualmente o Museu da Cidade de São Paulo, coladinho ao Pátio do Colégio.

Fachada do Solar da Marquesa de Santos - Foto: Simone Catto

Foto: Simone Catto

De cara, senti uma profunda tristeza com o descaso e a quantidade de sem-tetos, drogados e tipos – digamos – pouco confiáveis que circulam por ali. Talvez nosso Centro não estivesse nessa situação deplorável se nosso digníssimo prefeito, ao invés de criar "soluções inteligentes" que transformaram o trânsito num caos que só não deve ser maior que sua incapacidade de governar, cuidasse das questões que realmente importam para a cidade.

Mas vamos lá. Apesar da descaracterização arquitetônica – e humana, por assim dizer – da região, não pude deixar de reparar, contudo, em prédios e construções muito bonitos, remanescentes de uma época em que a cidade era mais gentil, mais poética, enfim... mais cidade!

Este lindo prédio do Pátio do Colégio foi projetado pelo escritório técnico de Ramos 
de Azevedo, Severo & Villares. Inaugurado em 1930 para sediar a Bolsa de Valores, 
pertence atualmente ao Poder Judiciário - Foto: Simone Catto

O roteiro, denominado 'A antiga São Paulo da Marquesa de Santos', teve início na Praça do Patriarca, passando pelo Largo São Francisco, Praça Clóvis Bevilacqua, Praça João Mendes e Pátio do Colégio, até chegarmos ao solar da Marquesa de Santos. Todos os pontos do roteiro estavam relacionados, de alguma forma, à vida da Marquesa.

Quando estávamos na Praça João Mendes, fizemos uma parada estratégica na padaria Santa Tereza para recarregar as baterias. Dizem que a padaria, inaugurada em 1872, é a mais antiga de São Paulo. Veja fotos aqui.  

Nosso tour foi especial por muitas razões. Além da presença de Douglas Nascimento e da guia Kátia, do site São Paulo Antiga, tivemos o privilégio de ser guiados também pelo historiador e escritor Paulo Rezzutti, um verdadeiro especialista na vida da Marquesa de Santos e em seu affair com D. Pedro I. Rezzutti já publicou dois livros sobre o assunto, sendo o primeiro uma coletânea da correspondência trocada entre os amantes, e o segundo uma biografia da Marquesa denominado 'Domitila – A verdadeira história da Marquesa de Santos', que acaba de sair do forno.

Domitila de Castro Canto e Melo, a Marquesa de Santos,
em retrato pintado por Francisco Pedro do Amaral.
Sabemos que Domitila nasceu em São Paulo, era filha de militar e casou-se aos 15 anos com um alferes mineiro muito mais rico que ela. Como São Paulo era um celeiro de militares e as mulheres estavam habituadas a ver seus maridos partirem para batalhas, muitas vezes precisavam cuidar sozinhas do lar e dos filhos, tornando-se mais autossuficientes e independentes que as outras mulheres brasileiras. O marido de Domitila, extremamente conservador, não deve ter gostado nada do jeito mais liberal da mulher e, como era um tipo ignorante e troglodita, costumava maltratá-la e espancá-la.

Cansada daquela vida, a pobre Domitila separou-se do marido, voltou para a casa dos pais em São Paulo e, pouco depois, em 1824, tornou-se amante de D. Pedro I, à época casado com a infeliz imperatriz Leopoldina. A ligação entre os dois durou sete anos, foi repleta de detalhes picantes e deu o que falar na época. Nas cartas iniciais, no auge da paixão, Domitila tratava o imperador por 'Demonão' e este a chamava carinhosamente de 'Titília'. Quando a relação esfriou, D. Pedro, já viúvo da Imperatriz, casou-se novamente, com Amélia de Leuchtenberg. Domitila também se casaria, desta vez com o governador do Estado de São Paulo, o brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar.

Detalhe do solar de Domitila - Foto: Simone Catto

Conhecida por ter sido a amante mais duradoura do imperador e quase comparada, injustamente, a uma prostituta de luxo, Domitila foi muito mais do que isso. Ao tornar-se rica e independente devido a sua ligação com D. Pedro, tornou-se uma mulher cada vez mais cultivada, dando muitos saraus, festas e recepções que reuniam, em seu solar, grandes poetas, políticos e a elite cultural da época. Com uma personalidade marcante, a Marquesa conseguiu impor-se para a sociedade e, extremamente generosa, apadrinhou financeiramente muitos estudantes e faculdades, além de ajudar famílias pobres e a igreja católica. Sabe-se, inclusive, que deu dinheiro do próprio bolso aos soldados paulistas que foram lutar na Guerra do Paraguai.

Ao falecer, prestes a completar 70 anos, Domitila já era uma senhora respeitável. Após ser velada por um tempo em seu palacete, seguiu com toda a pompa e o acompanhamento de uma guarda de honra para a Igreja da Ordem Terceira do Carmo, à Av. Rangel Pestana, onde foi rezada uma missa de corpo presente. Milhares de amigos, parentes, admiradores e curiosos acompanharam o cortejo fúnebre até o Cemitério da Consolação, onde a Marquesa foi sepultada.

A Igreja da Ordem Terceira do Carmo, templo onde Domitila professava
sua fé e que recebeu vultosas doações da Marquesa - Foto: Simone Catto

Domitila teve 14 filhos, embora só oito tivessem chegado à idade adulta. Sim, a mulher devia gozar de boa saúde e foi uma grande "parideira", por assim dizer! Teve três filhos com o primeiro marido, cinco com D. Pedro I e seis com Tobias de Aguiar. Segundo Paulo Rezzutti, mal ela foi sepultada, seus descendentes começaram a se engalfinhar pela fabulosa herança em uma briga que durou cerca de 20 anos.

O solar, restaurado e reinaugurado há menos de dois anos, é a única casa de taipa de pilão que restou na cidade de São Paulo e também último exemplar residencial urbano do século XVIII. De original, atualmente, restam somente as paredes de taipa de pilão e pau-a-pique, parte da fachada e três salões do andar superior, um contíguo ao outro. O primeiro era um salão de retratos, no segundo Domitila promovia seus saraus, e o terceiro era uma espécie de sala íntima onde recebia as pessoas mais próximas.

Parte da parede de taipa original, preservada e exposta para os visitantes - Foto: Simone Catto

A restauração reconstituiu um belo pedaço de pintura decorativa que deve ter adornado a parede da casa 
à época da Marquesa - Foto: Simone Catto.
 
Outro pedaço da parede original à mostra.
Foto: Simone Catto
Após a morte de Felício, filho mais velho de Domitila que herdou o imóvel, o solar foi leiloado e adquirido pela Cúria Metropolitana, tornando-se residência do bispo de São Paulo de 1880 a 1909. Em seguida, foi sede da The San Paulo Gas Company Ltda., atual Comgás, passando depois para a Secretaria de Cultura do Município de São Paulo.

O solar é amplo, arejado e com pé direito alto, mas confesso, contudo, que fiquei decepcionada com a pequena quantidade de objetos pessoais de Domitila que vi por ali. Já visitei várias casas de personalidades, como o Musée de la Vie Romantique, com objetos de George Sand, e a Maison de Victor Hugo, ambos em Paris, e fiquei encantada com a riqueza de suas coleções. Sem falar, é claro, da maravilhosa casa de Monet em Giverny e a de Renoir em Cagnes-sur-Mer, entre tantas outras.






Cama que pertenceu à Marquesa de Santos e que deve ter sido palco de muitas noites calientes 
de 'Titília' com seu 'Demonão'!

Este belo prato com uma cena galante teria pertencido à Marquesa, mas a xícara e o açucareiro,
mais acima, pertenceram a outra dama da sociedade - Foto: Simone Catto

Outro belíssimo prato que supostamente teria pertencido a Domitila, ao contrário
das delicadas xícaras - Foto: Simone Catto

Sei que meus parâmetros estão um pouco altos para um país de terceiro mundo, mas, mesmo assim, esperava encontrar mais itens pessoais da Marquesa no solar, já que ele foi bem restaurado - guardadas as limitações impostas pela descaracterização que sofreu em sucessivas reformas.

Na parte de baixo está um salão com painéis que contam a história da Marquesa e da cidade em ordem cronológica e um dos ambientes contém reproduções das cartas que ela trocou com  D. Pedro I. Acho importante um museu possuir textos para explicar seu acervo, mas, quando a quantidade de texto é maior que o próprio acervo, é inevitável notar que há uma lacuna. Entre os poucos objetos expostos estão algumas louças e caixas de porcelana, no andar de cima, além de móveis e utensílios da época. Nem tudo pertenceu à marquesa, mas a outras famílias daquele tempo.

Achei esta caixa de porcelana encantadora! - Foto: Simone Catto

Esta outra, então, é um verdadeiro primor! Babei... - Foto: Simone Catto

Era em cadeiras como essa que as famílias ricas da época faziam suas necessidades.
Depois, os escravos recolhiam o recipiente de baixo e o limpavam - Foto: Simone Catto 

Apesar das lacunas, o 'SOLAR DA MARQUESA DE SANTOS' – ou MUSEU DA CIDADE DE SÃO PAULO - está num recanto muito bonito da cidade e merece sua visita, nem que seja a título de curiosidade. Fica na Rua Roberto Simonsen, 136 – Sé. Tel.: 3105-6118 - www.museudacidade.sp.gov.br. Abre de terça a domingo, das 9h às 17h, com entrada franca.

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