Fazia tempo que eu não caminhava pelo Centro de São Paulo, o
dito "Centrão", mesmo, nas imediações da Praça da Sé e do Pátio do Colégio. Pude
fazer isso no final de semana, em mais um tour histórico promovido pelo site São Paulo Antiga. Desta vez, o roteiro foi todo baseado na trajetória de
Domitila de Castro Canto e Melo, a Marquesa de Santos
(1797-1867), culminando com uma visita ao palacete onde ela morou por mais
de 30 anos (de 1834 a 1867) e que abriga atualmente o Museu da Cidade de São Paulo, coladinho ao Pátio do Colégio.
Fachada do Solar da Marquesa de Santos - Foto: Simone Catto |
Foto: Simone Catto |
De cara, senti uma profunda tristeza com o descaso e a
quantidade de sem-tetos, drogados e tipos – digamos – pouco confiáveis que
circulam por ali. Talvez nosso Centro não estivesse nessa situação deplorável
se nosso digníssimo prefeito, ao invés de criar "soluções inteligentes" que
transformaram o trânsito num caos que só não deve ser maior que sua incapacidade
de governar, cuidasse das questões que realmente importam para a cidade.
Mas vamos lá. Apesar da descaracterização arquitetônica – e
humana, por assim dizer – da região, não pude deixar de reparar, contudo, em prédios
e construções muito bonitos, remanescentes de uma época em que a cidade era mais
gentil, mais poética, enfim... mais cidade!
O roteiro, denominado 'A
antiga São Paulo da Marquesa de Santos', teve início na Praça do Patriarca,
passando pelo Largo São Francisco, Praça Clóvis Bevilacqua, Praça João Mendes e
Pátio do Colégio, até chegarmos ao solar da Marquesa de Santos. Todos os pontos
do roteiro estavam relacionados, de alguma forma, à vida da Marquesa.
Quando estávamos na Praça João Mendes, fizemos uma parada
estratégica na padaria Santa Tereza para
recarregar as baterias. Dizem que a padaria, inaugurada em 1872, é a mais
antiga de São Paulo. Veja fotos aqui.
Nosso tour foi especial por muitas razões. Além da presença de Douglas
Nascimento e da guia Kátia, do site São Paulo Antiga, tivemos o privilégio de
ser guiados também pelo historiador e escritor Paulo Rezzutti, um verdadeiro especialista na vida da Marquesa de
Santos e em seu affair com D. Pedro I.
Rezzutti já publicou dois livros sobre o assunto, sendo o primeiro uma coletânea
da correspondência trocada entre os amantes, e o segundo uma biografia da
Marquesa denominado 'Domitila – A verdadeira história da Marquesa de Santos',
que acaba de sair do forno.
Domitila de Castro Canto e Melo, a Marquesa de Santos, em retrato pintado por Francisco Pedro do Amaral. |
Sabemos que Domitila nasceu em São Paulo, era filha de militar e
casou-se aos 15 anos com um alferes mineiro muito mais rico que ela. Como São
Paulo era um celeiro de militares e as mulheres estavam habituadas a ver seus
maridos partirem para batalhas, muitas vezes precisavam cuidar sozinhas do lar
e dos filhos, tornando-se mais autossuficientes e independentes que as outras
mulheres brasileiras. O marido de Domitila, extremamente conservador, não deve
ter gostado nada do jeito mais liberal da mulher e, como era um tipo ignorante
e troglodita, costumava maltratá-la e espancá-la.
Cansada daquela vida, a pobre Domitila separou-se do marido,
voltou para a casa dos pais em São Paulo e, pouco depois, em 1824, tornou-se
amante de D. Pedro I, à época casado com a infeliz imperatriz Leopoldina. A
ligação entre os dois durou sete anos, foi repleta de detalhes picantes e deu o que falar na época. Nas cartas iniciais, no auge da paixão,
Domitila tratava o imperador por 'Demonão' e este a chamava carinhosamente de 'Titília'. Quando a relação esfriou, D. Pedro, já viúvo da Imperatriz, casou-se
novamente, com Amélia de Leuchtenberg. Domitila também se casaria, desta vez com
o governador do Estado de São Paulo, o brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar.
Detalhe do solar de Domitila - Foto: Simone Catto |
Conhecida por ter sido a amante mais duradoura do imperador e
quase comparada, injustamente, a uma prostituta de luxo, Domitila foi muito
mais do que isso. Ao tornar-se rica e independente devido a sua ligação com D.
Pedro, tornou-se uma mulher cada vez mais cultivada, dando muitos saraus, festas
e recepções que reuniam, em seu solar, grandes
poetas, políticos e a elite cultural da época. Com uma personalidade marcante, a
Marquesa conseguiu impor-se para a sociedade e, extremamente generosa, apadrinhou
financeiramente muitos estudantes e faculdades, além de ajudar famílias pobres
e a igreja católica. Sabe-se, inclusive, que deu dinheiro do próprio bolso aos
soldados paulistas que foram lutar na Guerra do Paraguai.
Ao falecer, prestes a completar 70 anos, Domitila já era uma
senhora respeitável. Após ser velada por um tempo em seu palacete, seguiu com
toda a pompa e o acompanhamento de uma guarda de honra para a Igreja da Ordem
Terceira do Carmo, à Av. Rangel Pestana, onde foi rezada uma missa de corpo presente. Milhares de
amigos, parentes, admiradores e curiosos acompanharam o cortejo fúnebre até o
Cemitério da Consolação, onde a Marquesa foi sepultada.
A Igreja da Ordem Terceira do Carmo, templo onde Domitila professava sua fé e que recebeu vultosas doações da Marquesa - Foto: Simone Catto |
Domitila teve 14 filhos, embora só oito tivessem chegado à idade adulta. Sim, a mulher devia gozar de boa saúde e foi uma grande "parideira", por assim dizer! Teve três filhos com o primeiro marido, cinco com
D. Pedro I e seis com Tobias de Aguiar. Segundo Paulo Rezzutti, mal ela foi
sepultada, seus descendentes começaram a se engalfinhar pela fabulosa herança em uma briga que durou cerca de 20 anos.
O solar, restaurado e reinaugurado há menos de dois anos, é a
única casa de taipa de pilão que restou na cidade de São Paulo e também último
exemplar residencial urbano do século XVIII. De original, atualmente, restam
somente as paredes de taipa de pilão e pau-a-pique, parte da fachada e três
salões do andar superior, um contíguo ao outro. O primeiro era um salão de
retratos, no segundo Domitila promovia seus saraus, e o terceiro era uma
espécie de sala íntima onde recebia as pessoas mais próximas.
Parte da parede de taipa original, preservada e exposta para os visitantes - Foto: Simone Catto |
A restauração reconstituiu um belo pedaço de pintura decorativa que deve ter adornado a parede da casa à época da Marquesa - Foto: Simone Catto. |
Outro pedaço da parede original à mostra. Foto: Simone Catto |
Após a morte de Felício, filho mais velho de Domitila que herdou o imóvel, o solar foi leiloado e adquirido pela Cúria Metropolitana, tornando-se residência do bispo de São Paulo de 1880 a 1909. Em seguida, foi sede da The San Paulo Gas Company Ltda., atual Comgás, passando depois para a Secretaria de Cultura do Município de São Paulo.
O
solar é amplo, arejado e com pé direito alto, mas confesso, contudo, que fiquei
decepcionada com a pequena quantidade de objetos pessoais de Domitila que vi
por ali. Já visitei várias casas de personalidades, como o Musée de la Vie
Romantique, com objetos de George Sand, e a Maison de Victor Hugo, ambos em
Paris, e fiquei encantada com a riqueza de suas coleções. Sem falar, é claro,
da maravilhosa casa de Monet em Giverny e a de Renoir em Cagnes-sur-Mer, entre
tantas outras.
Cama que pertenceu à Marquesa de Santos e que deve ter sido palco de muitas noites calientes de 'Titília' com seu 'Demonão'! |
Este belo prato com uma cena galante teria pertencido à Marquesa, mas a xícara e o açucareiro, mais acima, pertenceram a outra dama da sociedade - Foto: Simone Catto |
Outro belíssimo prato que supostamente teria pertencido a Domitila, ao contrário das delicadas xícaras - Foto: Simone Catto |
Sei
que meus parâmetros estão um pouco altos para um país de terceiro mundo, mas,
mesmo assim, esperava encontrar mais itens pessoais da Marquesa no solar, já
que ele foi bem restaurado - guardadas as limitações impostas pela descaracterização
que sofreu em sucessivas reformas.
Na parte de baixo está um salão com painéis que contam a história da Marquesa e da cidade em ordem cronológica e um dos ambientes contém reproduções das cartas que ela trocou com D. Pedro I. Acho importante um museu possuir textos para explicar seu acervo, mas, quando a quantidade de texto é maior que o próprio acervo, é inevitável notar que há uma lacuna. Entre os poucos objetos expostos estão algumas louças e caixas de porcelana, no andar de cima, além de móveis e utensílios da época. Nem tudo pertenceu à marquesa, mas a outras famílias daquele tempo.
Achei esta caixa de porcelana encantadora! - Foto: Simone Catto |
Era em cadeiras como essa que as famílias ricas da época faziam suas necessidades. Depois, os escravos recolhiam o recipiente de baixo e o limpavam - Foto: Simone Catto |
Apesar das lacunas, o 'SOLAR
DA MARQUESA DE SANTOS' – ou MUSEU DA CIDADE DE SÃO PAULO - está num recanto
muito bonito da cidade e merece sua visita, nem que seja a título de
curiosidade. Fica na Rua Roberto Simonsen, 136 – Sé. Tel.: 3105-6118 -
www.museudacidade.sp.gov.br. Abre de terça a domingo, das 9h às 17h, com
entrada franca.
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