Maria Martins na década de 40 |
Nas poucas vezes que li ou tive contato com alguma informação
sobre a artista plástica Maria Martins (1894-1973), sempre soube que ela era
escultora. E escultura é mesmo a forma de expressão que se destaca na produção
dessa artista que o Brasil desconhece, mas que conquistou merecido
êxito no exterior. Basta dizer que Maria, como gostava de assinar suas
obras, expôs em Nova York ao lado de Mondrian e tornou-se próxima de figuras
como André Breton, Fernand Léger, Yves Tanguy, Max Ernst e Marcel Duchamp,
entre muitos, sendo que com Duchamp manteve um tórrido romance extraconjugal.
Interessou?
Então você não pode perder a exposição 'Maria Martins: metamorfoses', no MAM-SP, que exibe mais de 80 peças e tem curadoria de Veronica Stigger, uma estudiosa da artista. Das obras expostas, mais de trinta são esculturas, a maioria em bronze, as quais Verônica classificou em cinco módulos: Trópicos, Lianas, Deusas e Monstros, Cantos e Esqueletos. Esses módulos não seguem uma ordem cronológica, mas reúnem trabalhos que possuem compatibilidade formal. Além das esculturas, a mostra exibe pinturas, gravuras, livros, artigos, cerâmicas e escritos de Maria, além de artigos na mídia e até uma joia criada por ela. É inegável, contudo, que são suas esculturas que possuem a maior força expressiva e apelo visual.
'O Canto do Mar' (1952) - bronze polido - Foto: Simone Catto |
O fato é que o prestígio de Maria Martins no exterior só vem crescendo
e ela ocupa,
hoje, um importante espaço na história da arte moderna. Basta citar que,
no ano passado, ganhou uma sala
especial na Documenta de Kassel,
principal mostra de arte contemporânea do mundo, realizada a cada cinco anos na
Alemanha. Essa sala exibia uma das versões de 'O Impossível' (1944), a mais célebre obra da autora - uma das
versões foi adquirida pelo Museu de Arte Moderna de Nova York – MoMA em 1946 e outra
pode ser apreciada agora, no MAM. O título dessa belíssima obra refere-se ao
encontro de dois seres híbridos, um
homem e uma mulher com formas de animais ancestrais e cabeças pontiagudas, que
estão frente a frente sugerindo a existência de um desejo profundo, mas também
de uma dose de agressividade que impede sua união.
'Impossível' (1946) - bronze - Foto: Simone Catto |
Chegou a hora de conhecermos um pouco essa mulher interessante que, além de artista plástica, foi embaixatriz,
poeta, jornalista e escritora. Em primeiro lugar, Maria Martins não se enquadra
em nenhum movimento de arte, embora possua
forte viés surrealista. Com uma obra que se destaca mais pela qualidade do que
pela quantidade, a artista criou esculturas de formas sinuosas inspiradas em
mitos ancestrais, que remetem tanto à cultura da Amazônia
quanto aos conflitos humanos. Com forte impacto visual, suas formas estão carregadas
de erotismo e violência mesclados a elementos imagéticos de docilidade e
lirismo.
Maria Martins em seu ateliê de Paris cercada das obras 'O Impossível' (esq.) e 'Saudade'. |
Nascida
Maria de Lourdes Alves na cidade de Campanha, MG, a artista era filha de um senador e recebeu uma educação de elite: foi
alfabetizada em francês no Colégio Sion e estudou música e pintura na
juventude. Aos 21 anos, casou-se no Rio de
Janeiro. Mulher bem à frente de seu
tempo, Maria mandou às favas o preconceito com as mulheres desquitadas e, dez
anos depois, separou-se do marido e se mandou para Paris. Lá frequentou
círculos intelectuais e, em 1926, casou-se com o diplomata Carlos Martins
Pereira e Souza. Nesse mesmo ano, iniciou-se na escultura e passou a
desenvolver uma carreira no exterior. Em 1936, aperfeiçoou-se na Bélgica com o
escultor Oscar Jespers (1887-1970). Três anos depois, em 1939, Maria mudou-se
com o marido para Washington D.C. e foi nos Estados Unidos que realizou a maior
parte de sua produção artística, conquistando os círculos de
vanguarda da época.
No
ano de 1941 Maria Martins fez sua primeira exposição individual, na Corcoran
Art Gallery, em Nova York. Embora fosse conhecida como uma das principais
escultoras ligadas ao Surrealismo, nessa exposição a artista exibiu esculturas
figurativas realistas com temas tirados de mitos e tradições brasileiras,
criadas com materiais como gesso, madeira, terracota e bronze. Nesse mesmo ano,
monta um ateliê em Nova York e estuda com Jacques Lipchitz (1891-1973) e Stanley
Willaim Hayter (1901-1988), realizando obras em bronze.
'Le Couple' (O Casal) (1944) - bronze - Simone Catto |
Vale
ressaltar que, naquele período, a cidade de Nova York estava em plena
efervescência cultural por acolher vários artistas europeus que fugiam da
Segunda Guerra Mundial. Foi nesse clima de ebulição artística, portanto, que
Maria conheceu Piet Mondrian (1872-1944) e André Breton
(1896-1966), escritor francês autor do Manifesto Surrealista de 1924. Breton a apresentou a artistas europeus ligados ao Surrealismo e ao Dadaísmo, tais como
Michel Tapiè (1909-1987), André Masson (1896-1987), Yves Tanguy (1900-1955),
Max Ernst (1891-1976) e Marcel Duchamp (1887-1968). Este último, seu parceiro
no famoso affair, utilizou o seio de
Maria Martins como modelo para criar a capa do catálogo 'Surréalisme' (1947), em
colaboração com Enrico Donati.
O seio de Maria Martins na capa do catálogo de Marcel Duchamp - foto: Simone Catto |
A convivência com esses artistas revelou-se uma rica e produtiva
via de mão dupla: ao mesmo tempo em que atraía os vanguardistas com suas
esculturas expressivas de formas orgânicas, materializando forças naturais e lendas da Amazônia, Maria Martins
absorveu novos conteúdos, incorporando elementos surrealistas às suas obras.
Essa influência ficou evidente em sua segunda
exposição individual, em 1942, na Galeria Valentine, em Nova York, na qual apresentou formas oníricas de inspiração surreal realizadas em
bronze.
No ano seguinte, Maria fez outra
exposição nessa galeria, considerada um marco em sua trajetória. Mas não expôs
sozinha: daquela vez, dividiu espaço com ninguém mais, ninguém menos que seu
amigo Piet Mondrian. Detalhe curioso: enquanto a artista até hoje desconhecida
no Brasil conseguiu vender quase todas as obras, a exposição de Mondrian – um
mestre hoje reconhecido no mundo todo - foi um fracasso. Ao fim da mostra,
Maria ainda comprou uma obra do amigo, a tela 'Broadway Boogie-Woogie', e doou-a ao MoMA de Nova York. Prova de
que está na hora de valorizarmos nossos verdadeiros artistas, ao invés de
idolatrar gente cujo único talento é faturar milhões com os incautos.
Nessa
célebre mostra de 1943, Maria representou a Amazônia em oito obras alusivas a
personagens-mitos, batizados de 'Amazônia', 'Cobra Grande', 'Boiuna', 'Yara', 'Yemanjá', 'Aiokâ', 'Iacy' e 'Boto'. Alguns exemplares dessa
série, como 'Amazônia' e 'Boiuna', podem ser vistos na exposição
do MAM.
'Amazônia' (1942) - bronze - Foto: Simone Catto |
'However!!' (1947) - bronze - Foto: Simone Catto |
Na
obra 'However!!' (1944), a serpente do
desejo comprime e aprisiona o corpo de uma mulher. No caso de 'A Mulher perdeu sua sombra' (1946),
duas serpentes saem da cabeça de um corpo feminino, talvez como referência a
pensamentos libidinosos. André Breton, admirador da artista, escreveu a
apresentação de sua mostra individual de 1947, na Jean Lévy Gallery, em Nova
Iorque, e a convidou para importantes exposições surrealistas no pós-guerra em
Paris. Com
bronze, Maria passou a criar formas orgânicas cada vez mais livres de
figurações realistas. As referências à natureza simbolizam a força do desejo e
dos selvagens instintos do inconsciente, contrapondo-se à domesticação da
civilização ocidental. Os títulos das obras, sugestivos, são característicos do
movimento surrealista: 'Não te esqueças
nunca que eu venho dos trópicos' (1942), 'Sem Eco' (1943).
Até
que Maria, rendendo-se aos encantos da 'Cidade-Luz', muda para Paris em 1948.
Seu ateliê na cidade virou, então, ponto de encontro de intelectuais e artistas
como Constantin Brancusi (1876-1957), Benjamin Péret (1899-1959) e Amédée
Ozenfant (1866-1966), entre outros.
Maria Martins voltou definitivamente para o Brasil em 1950. Amiga do casal Matarazzo, contribuiu ativamente para viabilizar as primeiras edições da nossa Bienal de Arte. Foi ela, inclusive, que transmitiu ao conde Ciccillo Matarazzo a boa notícia de que Picasso participaria da segunda edição. A própria Maria Martins expôs em várias Bienais e, na de 1955, inclusive recebeu o Grande Prêmio de Escultura Nacional com a obra 'A Soma dos Nossos Dias'. Apesar de tudo, os críticos brasileiros da época foram hostis: por aqui, eram o construtivismo e a linguagem abstrata que começavam a ganhar força total, e o Surrealismo não era valorizado. Injustiça.
Maria Martins voltou definitivamente para o Brasil em 1950. Amiga do casal Matarazzo, contribuiu ativamente para viabilizar as primeiras edições da nossa Bienal de Arte. Foi ela, inclusive, que transmitiu ao conde Ciccillo Matarazzo a boa notícia de que Picasso participaria da segunda edição. A própria Maria Martins expôs em várias Bienais e, na de 1955, inclusive recebeu o Grande Prêmio de Escultura Nacional com a obra 'A Soma dos Nossos Dias'. Apesar de tudo, os críticos brasileiros da época foram hostis: por aqui, eram o construtivismo e a linguagem abstrata que começavam a ganhar força total, e o Surrealismo não era valorizado. Injustiça.
'Não te esqueças que venho dos trópicos' (1945) - bronze - Foto: Simone Catto |
'Sombras/Anunciação' (1952) - gesso - Foto: Simone Catto |
Maria ainda ajudou a criar e
consolidar os Museus de Arte Moderna de São Paulo e Rio de Janeiro, sendo que este
último abrigou sua última exposição individual, em 1956. Na exposição do MAM-SP, em cada extremidade do salão há uma foto que mostra a exposição da
artista no mesmo museu em 1948, quando a sede ainda ficava à rua 7 de Abril, no
Centro de São Paulo.
Na década de 50, a artista criou
esculturas mais abstratas, porém sem abandonar os títulos sugestivos em obras
como 'O Canto do Mar' (1952) e 'A Soma dos Nossos Dias' (1954-1955). Na segunda metade da década, no entanto, Maria substitui a escultura pela literatura, publicando vários livros como
jornalista e escritora.
'Calendário da Eternidade' (1952-1953) - bronze - Foto: Simone Catto |
Com este longo post, espero contribuir para compensar, nem que seja um pouquinho, a falta de informações sobre Maria
Martins na nossa mídia ao longo da história. Vale a pena descobrir a obra dessa excelente artista, resgatá-la do esquecimento e
reparar a injustiça que o Brasil cometeu contra seu imenso talento.
A
exposição 'MARIA MARTINS: METAMORFOSES' está no MAM-SP (Sala Paulo Figueiredo)
- Parque do Ibirapuera - Av. Pedro Álvares Cabral, s/nº –
Portão 3. Tel.: 5085-1300. Horário: de terça a domingo, das 10h às 17h30. O ingresso custa R$ 6,00, com
entrada franca aos domingos. Até 15/9. Não perca!
Adorei! Muito útil. Grata. Vou postar no meu Blog: www.alegriaeabundancia.blogspot.com
ResponderExcluirVeroVerô Böhme, física escritora poeta ações reais no social eeio ambiente.
Obrigada, Verônica! Fico feliz que tenha apreciado o post.
ExcluirBoa Noite, estou fazendo um trabalho para o Senac, e me gostaria muito saber que livro você me recomenda de esta artista tão maravilhosa.
ResponderExcluirObrigada, até mais.
Olá, Daiana! No site do MAM você pode fazer o download do catálogo da exposição "Metamosrfoses", em PDF, e de outras publicações sobre a artista.
Excluir(Link: http://mam.org.br/?s=maria+martins). Boa sorte!