Quando a gente menciona a época do Renascimento nas artes, é
natural que todo mundo pense imediatamente no fenômeno que ocorreu no século
XVI em Florença, cujos maiores representantes são Leonardo da Vinci e
Michelangelo. O que muita gente não sabe é que ocorreu um Renascimento
artístico também no norte da Itália, no mesmo século XVI. O polo irradiador foi
Veneza que, já naquela época, era uma próspera e cosmopolita metrópole que
chegou a abrigar 800 mil habitantes devido a seu intenso comércio
com o Oriente. Foi nesse contexto que nasceu Tiziano Vecellio (c.1490-1576), o "mestre da cor" e, possivelmente, maior representante do Renascimento no Norte da Itália.
Esse grande mestre foi tema de mais uma aula lotada do prof.
Renato Brolezzi no Grande Auditório do MASP, que teve como ponto de partida a pintura
Retrato
do Cardeal Cristoforo Madruzzo, de 1552. A obra faz parte do acervo do
MASP, assim como todas as demais abordadas nos cursos ministrados pelo prof.
Brolezzi no museu, e em 1992 teria sido restaurada pela Fundação Getty de Los
Angeles.
Ticiano - Retrato do Cardeal Cristoforo Madruzzo (1552) - MASP |
Mas vamos a Ticiano. Celebrado como o maior “pintor da terra” do
século XVI, nasceu numa cidade próxima a Veneza e se mudou para lá quando tinha
entre 10 e 12 anos de idade. Em Veneza teve aulas com alguns mestres, dos quais
se destacam Giovanni Bellini (1429-1507) e Giorgione (c.1477-1510), que também frequentava o
ateliê de Bellini e com quem trabalhou em conjunto nos seus primeiros anos.
Posteriormente, Ticiano tornou-se amigo de intelectuais e poetas, como Ludovico
Ariosto, de quem pintou um retrato. Grande retratista, o mestre veneziano tornou-se muito requisitado pelos aristocratas, pintando reis, rainhas, nobres e outros "figurões", como o cardeal que aparece na
pintura-tema de nossa aula. Devido a seu enorme talento e conexões, ao contrário de tantos grandes artistas que morreram
na miséria, Ticiano havia acumulado grande riqueza ao fim da vida.
Agora vamos ao retratado. Notório advogado, diplomata e intelectual, o cardeal Cristoforo
Madruzzo pertencia a uma poderosa família da cidade de Trento. Político extremamente
hábil e bem relacionado, foi nomeado pelo Papa Paulo III Farnese dignatário do
famoso Concílio de Trento, entre 1545 e 1563. Para quem não lembra, o Concílio
de Trento foi uma tentativa de conciliação dos católicos com os luteranos do
Norte.
O mais extraordinário nessa pintura, assim como em outras de Ticiano, é que estudos e fotos de
raio-X do quadro constataram que não há linhas sob as cores, mas apenas tinta pura! É
isso mesmo: Ticiano modelava suas imagens sem desenho, apenas pela aplicação de
cor. Jogava com os pigmentos e manipulava as figuras somente com manchas
cromáticas, uma inovação que lhe valeu a alcunha de "grande alquimista da
matéria", por se apropriar dela e lhe infundir transcendência. É impressionante como Ticiano consegue reproduzir, com grande riqueza e perfeição, as texturas de diferentes tecidos, peles e superfícies, apenas manejando o empastamento de cores. Essa habilidade foi reconhecida e mencionada pelo próprio Giorgio
Vasari, artista seiscentista que se notabilizou pela biografia de
grandes artistas e é considerado o primeiro historiador de arte. Aliás, vale ressaltar que, enquanto Florença
privilegiava a linha, o Norte da Itália destacou-se pela maestria de seus artistas
no manejo de diferentes pigmentos coloridos.
Quem tiver o privilégio de contemplar a obra ao vivo, no
MASP, notará que o negro da capa do cardeal não era "totalmente" negro: existem
muitas cores ocultas ali, tais como azuis, vermelhos e verdes, o que fazia
parte da estratégia cromática de Ticiano.
O quadro é extremamente sintético e constituído de apenas quatro
elementos: o cardeal, a cortina, o relógio e o feixe de cartas nas mãos do cardeal.
Ele abre a cortina como se quisesse nos revelar algo, no caso uma mesinha de
trabalho, dando-nos a entender, de alguma maneira, que estamos diante de um
homem muito importante. É interessante que, embora o cardeal fosse extremamente poderoso, ele não parece arrogante na pintura. Vale destacar que o relógio é um elemento muito frequente nas obras de Ticiamo, como se
ele quisesse nos lembrar, permanentemente, do caráter fugaz do tempo.
Vamos, agora, analisar outras obras do mestre. Abaixo está o Retrato do Papa Paulo III com Alexandre e Otavio Farnese (1546). Os
rapazes eram sobrinhos do pontífice e tinham a incumbência de
administrar as finanças da Santa Fé. Uma curiosidade: a palavra "sobrinho", em
italiano, é "nipote". Daí a origem da expressão "nepotismo" para designar o favoritismo
para com parentes, especialmente pelo poder público. Sim, história da arte é cultura,
sempre!
Ticiano - Retrato do Papa Paulo III com Alexandre e Otavio Farnese (1546) |
A seguir está a Ascensão
da Virgem (1516-1518), primeira grande obra de Ticiano para a igreja Santa
Maria Gloriosa dei Frari, reduto da família Frare em Veneza e local onde o mestre
está sepultado. Temos um esquema retangular na parte inferior, onde estão
dispostos os apóstolos, e outro circular na porção superior, onde estão a
Virgem com os querubins em um espécie de ciranda e a figura de Deus Pai mais
acima. Note que a Virgem está no vértice de um triângulo imaginário que tem
como base os dois apóstolos de vermelho.
Ticiano - A Ascensão da Virgem (1516-18) |
É na igreja Santa Maria Gloriosa dei Frare que também está uma
das mais célebres obras de Ticiano, a Madona
de Pesaro (iniciada em 1519 concluída em 1528), encomendada pelo nobre Jacopo Pesaro como agradecimento aos céus pela grande vitória dos cristãos contra o Império
Otomano na batalha da Ilha de Maura, Grécia, em 1502. No quadro vemos um alferes porta-bandeira arrastando um prisioneiro turco, o personagem de turbante.
Ticiano - Madona de Pesaro (1519-1528) |
O aspecto mais inovador dessa pintura é que Ticiano subverteu
totalmente a perspectiva central da Renascença, deslocando a Virgem e o Menino
Jesus para a lateral, em uma radical mudança de ponto de vista. Em primeiro
plano, estão Jacopo Pesaro e seu irmão, ajoelhados. Atrás do nobre de vermelho
está o resto da família Pesaro. Vemos também São Pedro, com o livro aberto, bem
como São Francisco e Santo Antônio à direita da Virgem.
A seguir está o Retrato de Federico II de
Gonzaga (1529), príncipe de Mantova. A imagem do cãozinho dando a pata pode
ser interpretada como um símbolo da domesticação da natureza pela razão.
Ticiano - Retrato de Federico II de Gonzaga (1529) - Museu do Prado |
Abaixo está o Retrato de
Eleanora Gonzaga della Rovere (1536-1538), filha de Federico II. Novamente aparece o relógio, ícone
recorrente na pintura de Ticiano.
Ticiano - Retrato de Eleonora Gonzaga della Rovere (1536-1538) |
O Autorretrato de Ticiano,
a seguir, foi pintado em 1568 e revela grandes manchas cromáticas típicas do
final de sua vida, quando houve um "quase derretimento da forma", segundo as palavras do prof. Renato Brolezzi.
Ticiano - Autorretrato (1568) |
Abaixo está Carlos
V na Batalha de Mühlberg (1548). Rei
da Germânia e Itália e pai de Felipe II, rei da Espanha, Carlos V era um homem extremamente poderoso que governou por quase quarenta anos e tinha, sob seu comando, a área que
hoje equivale à Alemanha. Renunciou ao poder pouco antes de morrer, em um
convento. O cavalo, aqui, possui uma simbologia própria, mostrando que o rei
conduz a natureza lado a lado, em igualdade de forças, ao invés de
domesticá-la. Note as cores da pintura, realmente deslumbrantes!
Ticiano - Carlos V na Batalha de Mühlberg (1548) - Museu do Prado |
Grande pintor também de temas mitológicos, Ticiano criou obras
como O Bacanal (1523-1526), uma de
suas primeiras pinturas, na qual já podemos notar grande riqueza cromática. Dá
para perceber, também a semelhança com a obra 'Festim dos Deuses' (1514-1529), de seu professor
Giovanni Bellini.
Ticiano - O Bacanal (1523-1526) - Museu do Prado |
Giovanni Bellini, mestre de Ticiano - O Festim dos Deuses (1514-1529) |
Na próxima pintura, Baco
e Ariadne (1520-23), as poses das figuras estão um tanto teatrais. Baco chega numa
ilha em uma carruagem de ouro puxada por panteras, ao lado das bacantes e dos
faunos. Lá encontra Ariadne e se apaixona, mas ela ainda sofre por ter sido
abandonada por Teseu, filho de Zeus e Danae.
Ticiano - Baco e Ariadne (1520-1523) - National Gallery, Londres |
A próxima obra de temática mitológica, Danae recebendo a Chuva de Ouro (1553), narra a história da mãe de
Teseu, o jovem que partiu o coração da pobre Ariadne da obra anterior. Esta é uma pintura extremamente
sensual - diz-se, mesmo, que Ticiano criou a poesia erótica pictórica, a qual
ele mesmo denominava "poesia pintada". Aqui, vemos a jovem Danae trancafiada no
porão por seu pai Acrísio, porque ele havia ouvido uma profecia de que seria
morto por um neto e, mantendo a filha longe dos homens, ela não teria como
conceber uma criança. Danae era guardada por uma escrava, mas Zeus a avistou dos céus e se apaixonou. Como não era bobo nem nada, Zeus então provocou uma chuva de moedas de ouro para atrair a
escrava para fora, ela saiu deixando uma fresta da porta aberta e Zeus entrou no porão disfarçado
em névoa. Lá dentro, se metamorfoseou num belo jovem e o resto da história dá para imaginar... Danae engravidou e então nasceu
Teseu. Anos mais tarde, o avô Acrísio e o neto se reencontraram numa festa e, ao arremessar
um disco, o neto sem querer atingiu o avô, que morreu, concretizando a
profecia. Os deuses não perdoavam nada!
Ticiano - Baco e Ariadne recebendo a Chuva de Ouro (1553) |
O políptico Ressurreição
de Cristo, um óleo sobre madeira
de 1522, é um dos primeiros noturnos da história da arte. Do lado esquerdo,
ajoelhado, está Altobello Alveroldi, o nobre que encomendou o quadro em 1520. E
do direito, estão a Virgem e São Sebastião em seu martírio. Nesta imagem não dá
para visualizarmos, mas a data de 1522 está do lado direito, junto da representação
de São Sebastião.
Ticiano - Ressurreição de Cristo (1522) |
Na pintura Não me toque
(c.1514), Cristo aparece para Maria Madalena após sua Ressurreição, antes de
ascender aos céus. Ela tenta tocá-lo, maravilhada, mas ele lhe diz: "Não me
toque, não pertenço a este mundo!". É essa cena mágica que Ticiano retrata abaixo.
Ticiano - Não me Toque! - (c.1514) - National Gallery, Londres |
A seguir está Maria Madalena
arrependida no deserto (década de 1560), quadro que tem uma luz
extraordinária!
Ticiano - Madalena Arrependida (década de 1560) |
Na obra Anunciação (1563-1565),
uma das últimas pinturas de Ticiano, o anjo Gabriel está à esquerda e, acima, a
radiosa luz do Espírito Santo, em formato de pombo, fecunda a virgem vestida de vermelho
e azul. O vermelho simboliza a Terra e o azul o céu.
Ticiano - Anunciação (1563-1565) |
As imagens dão uma ideia da maestria de Ticiano no manejo da cor, mas nada como apreciar as obras ao vivo, nos museus do mundo! Se a Itália, Londres ou a Espanha forem muito longe, um pulinho ao nosso MASP já resolve o problema!
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