domingo, 28 de setembro de 2014

Renato Brolezzi revela Ticiano, o mago da cor do século XVI.

Quando a gente menciona a época do Renascimento nas artes, é natural que todo mundo pense imediatamente no fenômeno que ocorreu no século XVI em Florença, cujos maiores representantes são Leonardo da Vinci e Michelangelo. O que muita gente não sabe é que ocorreu um Renascimento artístico também no norte da Itália, no mesmo século XVI. O polo irradiador foi Veneza que, já naquela época, era uma próspera e cosmopolita metrópole que chegou a abrigar 800 mil habitantes devido a seu intenso comércio com o Oriente. Foi nesse contexto que nasceu Tiziano Vecellio (c.1490-1576), o "mestre da cor" e, possivelmente, maior representante do Renascimento no Norte da Itália.

Esse grande mestre foi tema de mais uma aula lotada do prof. Renato Brolezzi no Grande Auditório do MASP, que teve como ponto de partida a pintura Retrato do Cardeal Cristoforo Madruzzo, de 1552. A obra faz parte do acervo do MASP, assim como todas as demais abordadas nos cursos ministrados pelo prof. Brolezzi no museu, e em 1992 teria sido restaurada pela Fundação Getty de Los Angeles.

Ticiano - Retrato do Cardeal Cristoforo Madruzzo (1552) - MASP
Mas vamos a Ticiano. Celebrado como o maior “pintor da terra” do século XVI, nasceu numa cidade próxima a Veneza e se mudou para lá quando tinha entre 10 e 12 anos de idade. Em Veneza teve aulas com alguns mestres, dos quais se destacam Giovanni Bellini (1429-1507) e Giorgione (c.1477-1510), que também frequentava o ateliê de Bellini e com quem trabalhou em conjunto nos seus primeiros anos. Posteriormente, Ticiano tornou-se amigo de intelectuais e poetas, como Ludovico Ariosto, de quem pintou um retrato. Grande retratista, o mestre veneziano tornou-se muito requisitado pelos aristocratas, pintando reis, rainhas, nobres e outros "figurões", como o cardeal que aparece na pintura-tema de nossa aula. Devido a seu enorme talento e conexões, ao contrário de tantos grandes artistas que morreram na miséria, Ticiano havia acumulado grande riqueza ao fim da vida.

Agora vamos ao retratado. Notório advogado, diplomata e intelectual, o cardeal Cristoforo Madruzzo pertencia a uma poderosa família da cidade de Trento. Político extremamente hábil e bem relacionado, foi nomeado pelo Papa Paulo III Farnese dignatário do famoso Concílio de Trento, entre 1545 e 1563. Para quem não lembra, o Concílio de Trento foi uma tentativa de conciliação dos católicos com os luteranos do Norte.

O mais extraordinário nessa pintura, assim como em outras de Ticiano, é que estudos e fotos de raio-X do quadro constataram que não há linhas sob as cores, mas apenas tinta pura! É isso mesmo: Ticiano modelava suas imagens sem desenho, apenas pela aplicação de cor. Jogava com os pigmentos e manipulava as figuras somente com manchas cromáticas, uma inovação que lhe valeu a alcunha de "grande alquimista da matéria", por se apropriar dela e lhe infundir transcendência. É impressionante como Ticiano consegue reproduzir, com grande riqueza e perfeição, as texturas de diferentes tecidos, peles e superfícies, apenas manejando o empastamento de cores. Essa habilidade foi reconhecida e mencionada pelo próprio Giorgio Vasari, artista seiscentista que se notabilizou pela biografia de grandes artistas e é considerado o primeiro historiador de arte. Aliás, vale ressaltar que, enquanto Florença privilegiava a linha, o Norte da Itália destacou-se pela maestria de seus artistas no manejo de diferentes pigmentos coloridos.

Quem tiver o privilégio de contemplar a obra ao vivo, no MASP, notará que o negro da capa do cardeal não era "totalmente" negro: existem muitas cores ocultas ali, tais como azuis, vermelhos e verdes, o que fazia parte da estratégia cromática de Ticiano.

O quadro é extremamente sintético e constituído de apenas quatro elementos: o cardeal, a cortina, o relógio e o feixe de cartas nas mãos do cardeal. Ele abre a cortina como se quisesse nos revelar algo, no caso uma mesinha de trabalho, dando-nos a entender, de alguma maneira, que estamos diante de um homem muito importante. É interessante que, embora o cardeal fosse extremamente poderoso, ele não parece arrogante na pintura. Vale destacar que o relógio é um elemento muito frequente nas obras de Ticiamo, como se ele quisesse nos lembrar, permanentemente, do caráter fugaz do tempo.

Vamos, agora, analisar outras obras do mestre. Abaixo está o Retrato do Papa Paulo III com Alexandre e Otavio Farnese (1546). Os rapazes eram sobrinhos do pontífice e tinham a incumbência de administrar as finanças da Santa Fé. Uma curiosidade: a palavra "sobrinho", em italiano, é "nipote". Daí a origem da expressão "nepotismo" para designar o favoritismo para com parentes, especialmente pelo poder público. Sim, história da arte é cultura, sempre!

Ticiano - Retrato do Papa Paulo III com Alexandre e Otavio Farnese (1546)

A seguir está a Ascensão da Virgem (1516-1518), primeira grande obra de Ticiano para a igreja Santa Maria Gloriosa dei Frari, reduto da família Frare em Veneza e local onde o mestre está sepultado. Temos um esquema retangular na parte inferior, onde estão dispostos os apóstolos, e outro circular na porção superior, onde estão a Virgem com os querubins em um espécie de ciranda e a figura de Deus Pai mais acima. Note que a Virgem está no vértice de um triângulo imaginário que tem como base os dois apóstolos de vermelho.

Ticiano - A Ascensão da Virgem (1516-18)

É na igreja Santa Maria Gloriosa dei Frare que também está uma das mais célebres obras de Ticiano, a Madona de Pesaro (iniciada em 1519 concluída em 1528), encomendada pelo nobre Jacopo Pesaro como agradecimento aos céus pela grande vitória dos cristãos contra o Império Otomano na batalha da Ilha de Maura, Grécia, em 1502. No quadro vemos um alferes porta-bandeira arrastando um prisioneiro turco, o personagem de turbante.

Ticiano - Madona de Pesaro (1519-1528)

O aspecto mais inovador dessa pintura é que Ticiano subverteu totalmente a perspectiva central da Renascença, deslocando a Virgem e o Menino Jesus para a lateral, em uma radical mudança de ponto de vista. Em primeiro plano, estão Jacopo Pesaro e seu irmão, ajoelhados. Atrás do nobre de vermelho está o resto da família Pesaro. Vemos também São Pedro, com o livro aberto, bem como São Francisco e Santo Antônio à direita da Virgem.

A seguir está o Retrato de Federico II de Gonzaga (1529), príncipe de Mantova. A imagem do cãozinho dando a pata pode ser interpretada como um símbolo da domesticação da natureza pela razão.

Ticiano - Retrato de Federico II de Gonzaga (1529) - Museu do Prado

Abaixo está o Retrato de Eleanora Gonzaga della Rovere (1536-1538), filha de Federico II. Novamente aparece o relógio, ícone recorrente na pintura de Ticiano.

Ticiano - Retrato de Eleonora Gonzaga della Rovere (1536-1538)

O Autorretrato de Ticiano, a seguir, foi pintado em 1568 e revela grandes manchas cromáticas típicas do final de sua vida, quando houve um "quase derretimento da forma", segundo as palavras do prof. Renato Brolezzi.

Ticiano - Autorretrato (1568)

Abaixo está Carlos V na Batalha de Mühlberg (1548). Rei da Germânia e Itália e pai de Felipe II, rei da Espanha, Carlos V era um homem extremamente poderoso que governou por quase quarenta anos e tinha, sob seu comando, a área que hoje equivale à Alemanha. Renunciou ao poder pouco antes de morrer, em um convento. O cavalo, aqui, possui uma simbologia própria, mostrando que o rei conduz a natureza lado a lado, em igualdade de forças, ao invés de domesticá-la. Note as cores da pintura, realmente deslumbrantes!

Ticiano - Carlos V na Batalha de Mühlberg (1548) - Museu do Prado

Grande pintor também de temas mitológicos, Ticiano criou obras como O Bacanal (1523-1526), uma de suas primeiras pinturas, na qual já podemos notar grande riqueza cromática. Dá para perceber, também a semelhança com a obra 'Festim dos Deuses' (1514-1529), de seu professor Giovanni Bellini.

Ticiano - O Bacanal (1523-1526) - Museu do Prado

Giovanni Bellini, mestre de Ticiano - O Festim dos Deuses (1514-1529)

Na próxima pintura, Baco e Ariadne (1520-23), as poses das figuras estão um tanto teatrais. Baco chega numa ilha em uma carruagem de ouro puxada por panteras, ao lado das bacantes e dos faunos. Lá encontra Ariadne e se apaixona, mas ela ainda sofre por ter sido abandonada por Teseu, filho de Zeus e Danae.

Ticiano - Baco e Ariadne (1520-1523) - National Gallery, Londres

A próxima obra de temática mitológica, Danae recebendo a Chuva de Ouro (1553), narra a história da mãe de Teseu, o jovem que partiu o coração da pobre Ariadne da obra anterior. Esta é uma pintura extremamente sensual - diz-se, mesmo, que Ticiano criou a poesia erótica pictórica, a qual ele mesmo denominava "poesia pintada". Aqui, vemos a jovem Danae trancafiada no porão por seu pai Acrísio, porque ele havia ouvido uma profecia de que seria morto por um neto e, mantendo a filha longe dos homens, ela não teria como conceber uma criança. Danae era guardada por uma escrava, mas Zeus a avistou dos céus e se apaixonou. Como não era bobo nem nada, Zeus então provocou uma chuva de moedas de ouro para atrair a escrava para fora, ela saiu deixando uma fresta da porta aberta e Zeus entrou no porão disfarçado em névoa. Lá dentro, se metamorfoseou num belo jovem e o resto da história dá para imaginar... Danae engravidou e então nasceu Teseu. Anos mais tarde, o avô Acrísio e o neto se reencontraram numa festa e, ao arremessar um disco, o neto sem querer atingiu o avô, que morreu, concretizando a profecia. Os deuses não perdoavam nada!

Ticiano - Baco e Ariadne recebendo a Chuva de Ouro (1553)

O políptico Ressurreição de Cristo, um óleo sobre madeira de 1522, é um dos primeiros noturnos da história da arte. Do lado esquerdo, ajoelhado, está Altobello Alveroldi, o nobre que encomendou o quadro em 1520. E do direito, estão a Virgem e São Sebastião em seu martírio. Nesta imagem não dá para visualizarmos, mas a data de 1522 está do lado direito, junto da representação de São Sebastião.

Ticiano - Ressurreição de Cristo (1522)

Na pintura Não me toque (c.1514), Cristo aparece para Maria Madalena após sua Ressurreição, antes de ascender aos céus. Ela tenta tocá-lo, maravilhada, mas ele lhe diz: "Não me toque, não pertenço a este mundo!". É essa cena mágica que Ticiano retrata abaixo.

Ticiano - Não me Toque! - (c.1514) - National Gallery, Londres

A seguir está Maria Madalena arrependida no deserto (década de 1560), quadro que tem uma luz extraordinária!

Ticiano - Madalena Arrependida (década de 1560)

Na obra Anunciação (1563-1565), uma das últimas pinturas de Ticiano, o anjo Gabriel está à esquerda e, acima, a radiosa luz do Espírito Santo, em formato de pombo, fecunda a virgem vestida de vermelho e azul. O vermelho simboliza a Terra e o azul o céu.

Ticiano - Anunciação (1563-1565)

As imagens dão uma ideia da maestria de Ticiano no manejo da cor, mas nada como apreciar as obras ao vivo, nos museus do mundo! Se a Itália, Londres ou a Espanha forem muito longe, um pulinho ao nosso MASP já resolve o problema! 

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