Em se tratando de cinema, temos mesmo
de tirar o chapéu para nossos hermanos argentinos: não é de agora que eles estão
arrasando com filmes que, se comparados à média da produção brasileira, ganham
disparado em sofisticação e inteligência. São filmes profundos, muito bem
realizados, com temáticas complexas e grandes elencos. Que cinéfilo não se lembra
do magnífico 'O Segredo de seus Olhos',
produção de 2009 de Juan José Campanella com o não menos magnífico Ricardo Darín?
'Relatos Selvagens' (Relatos Salvajes), de Damián Szifron, também tem Darín no elenco e está
dando um show nas salas de São Paulo após abrir nossa Mostra Internacional de
Cinema com grande sucesso. O filme foi a única produção latino-americana a
entrar para a competição oficial do Festival de Cannes, sendo fortemente
aplaudido e, além disso, concorre ao Oscar de melhor filme estrangeiro. A
produção é de ninguém mais, ninguém menos que Pedro Almodóvar e seu irmão
Augustín, que aparecem nos créditos. O elenco é excelente. Diante de tudo
isso e principalmente do que vi na telona, dá para entender por que 'Relatos
Selvagens' foi o longa mais visto na Argentina em 2014.
O filme pode ser classificado como
uma mistura de drama e humor negro, destilados com sofisticação em seis
histórias que têm, em comum, protagonistas que perdem a cabeça e decidem fazer
a justiça com as próprias mãos diante de situações extremas e/ou surreais,
porém não necessariamente inverossímeis, dado o grau de desequilíbrio de boa
parte da humanidade hoje em dia.
Detalhe importante: lá não há histórias
mais ou menos boas – todas mantêm o mesmo altíssimo padrão de qualidade, o que
é raro ocorrer nos filmes ditos de 'antologia', isto é, constituídos por vários episódios. No primeiro, genial e o
mais fantasioso de todos, um músico frustrado e traumatizado que sofreu bullying consegue reunir seus antigos desafetos
em um voo de avião para realizar sua vingança. Depois há a garçonete que topa,
no restaurante onde trabalha, com o mafioso que arruinou sua família, e surge
também uma oportunidade de revanche. Há a história de uma briga de trânsito em uma estrada no meio do nada, entre um playboy de Audi e um motorista remediado, que descamba para
uma violência descomunal.
Leonardo Sbaraglia e Dario Grandinetti interpretam os personagens da briga de trânsito que descamba em tragédia. |
O episódio protagonizado por Ricardo
Darín mostra uma situação que poderia muito bem ter se passado no Brasil: o
cidadão tem o carro guinchado e é multado injustamente por estacionar em um
local que não tem sinalização de proibido. Só que Darín, no papel de um
engenheiro bem-sucedido que está a caminho de casa com o bolo de aniversário da
filha pequena, chega a seu limite diante da injustiça da situação, da
burocracia infernal e da displicência dos funcionários que o atendem (não, o
filme não é brasileiro... ) Não bastasse ter que arcar com uma multa por uma
falta que não cometeu, o homem chega atrasado para a festa de aniversário da
filha, o que desencadeia uma sucessão de tragédias em sua vida.
Darín, como o pobre engenheiro que não consegue chegar a tempo para o aniversário da filha devido à burocracia insana. |
Uma das histórias mostra o drama de um
milionário que deve comprar meio mundo – policiais, peritos, advogados e até o
jardineiro, para tentar livrar da cadeia o filho que atropelou uma mulher
grávida e fugiu. Também aqui, aliás, qualquer semelhança com a "pátria-amada-idolatrada-salve-salve" não é mera coincidência. Por fim, temos a história de uma noiva judia que surta ao descobrir a traição do marido em plena festa de casamento - uma celebração digna
de 'Facebook', feérica e dispendiosa, onde todos parecem artificialmente
alegres, legais, radiantes e muuuito felizes por compartilhar da felicidade da
noiva.
Erica Rivas está excepcional como a noiva que descobre ser traída no dia de seu casamento e enlouquece. |
O tom tragicômico adotado no filme
foi um grande acerto do diretor que, além de Darín, selecionou um elenco de
primeira. Apesar de divertir pelo absurdo de algumas situações aparentemente
inverossímeis, o filme suscita reflexões ao nos darmos conta de que muitas delas
não são absolutamente implausíveis e poderiam perfeitamente se passar diante de
nosso nariz. Sem exagero, esse é um dos melhores filmes que já vi nos últimos
tempos. Simplesmente imperdível!
Ficha técnica parcial
Direção: Damián Szifron
Elenco: Ricardo Darín, Darío Grandinetti, Oscar Martínez,
Diego Gentille, Julieta Zylberberg, Leonardo Sbaraglia, Rita
Cortese, Erica Rivas e
outros.
Concordo com você, Yadira! Aquele episódio de fúria na estrada é impagável, Leonardo Sbaraglia é realmente um grande ator.
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