quinta-feira, 29 de maio de 2014

'Pierre-Auguste Renoir, meu pai'. Um olhar atento e amoroso sobre o mestre.

“Renoir era uma máquina maravilhosa de absorver a vida. Via tudo, compreendia tudo, e se apropriava”. – Jean Renoir

Um homem que amava a humanidade, os seres vivos e a natureza sob todas as formas. Um talento nato. Um bom coração. Uma alma iluminada cuja generosidade foge à compreensão do bruto mundo em que vivemos. Um homem que nasceu para amar e pintar. Esse é o Pierre-Auguste Renoir (1841-1919) com quem tomamos contato na biografia 'Pierre-Auguste Renoir, meu pai', escrita por seu filho Jean Renoir (1894-1979), ator e cineasta consagrado que criou obras-primas como 'A Grande Ilusão' e 'French Cancan', esta última uma homenagem ao pai e a outros artistas que lhe eram contemporâneos, retratando o alegre universo dos cabarés e cafés-concerto.

Jean Renoir quando jovem.

Por isso, ‘Pierre-Auguste Renoir, meu pai’ não é uma biografia como as outras. Nota-se, em primeiro lugar, a admiração que Jean Renoir devotava ao pai, mas dá para perceber que esse sentimento de amor filial não obscureceu e nem impediu, em absoluto, a autenticidade ou veracidade dos fatos apresentados. Muito pelo contrário. Jean relata com a riqueza de detalhes de uma testemunha ocular atenta tudo aquilo sentiu e viveu de muito perto e também fatos que o próprio Renoir lhe contou. É assim que ficamos conhecendo os antecedentes do artista e penetramos em seu dia a dia desde a mais tenra infância no seio da família até a relação calorosa que mantinha com parentes, agregados e séquitos de amigos e admiradores, artistas ou não. Ficamos sabendo que o pintor nasceu em um lar amoroso, que o pai era um alfaiate respeitado, a mãe uma mulher disciplinada que o considerava o filho predileto e que os irmãos eram talentosos, cada qual em sua vocação e seu métier. Esse afeto aliado a disciplina foi igualmente transmitido aos três filhos que o artista teve com a jovem Aline Charigot (1859-1915): Pierre (1885-1952), Jean e Claude (1901-1969), nascidos quando Renoir já contava mais de 40 anos.

Renoir, já no fim da vida, e a esposa Aline Charigot em sua residência em Cagnes-sur-Mer, 'Les Colettes'.

O retrato do pequeno Jean Renoir (1901) em uma das inúmeras pinturas do pai.
Renoir não gostava que cortassem seu lindo cabelo, fazendo com que o garoto
ficasse parecendo uma menina.  

Aqui, uma terna representação de Aline e o irmão mais velho de Jean, Pierre,
em pintura de Renoir realizada em 1887. Jean ainda não era nascido.

O curioso é que, após um estranhamento inicial que a figura excessivamente magra do artista provocava, as pessoas acabavam ficando absolutamente cativadas por sua inteligência e generosidade, como se conseguissem captar, de alguma maneira, o amor que ele nutria pela vida e pela humanidade. Renoir ficou amigo de praticamente todos os pintores impressionistas, tendo inclusive dividido um ateliê com Claude Monet na época das vacas magras. Sobre Monet, aliás, Jean nos relata um detalhe pitoresco: ele podia não ter o que comer, mas sempre se vestia com esmero e elegância, encomendando roupas aos melhores alfaiates. Se eles eram pagos ou não, isso era outra história. Informações curiosas e divertidas como essa pipocam em abundância ao longo da obra, tornando a leitura, além de instrutiva, leve e agradável. 

A família Renoir: Aline com o pequeno Claude no colo, Jean, Pierre e o pintor, já idoso. 

A carreira de Renoir, assim como a dos demais impressionistas, demorou a engrenar, já que ninguém, nem público nem crítica, estava habituado a suas inovações. No entanto, o fascinante é que, desde criança, tudo o que Renoir resolvesse rabiscar produzia belos traços e ele nunca deixou de desenhar ou pintar um dia sequer. Teve a sorte, inclusive, de ser encorajado pela família, que teve a sensibilidade de reconhecer o talento do garoto. Esse dom inato foi burilado ainda mais no Ateliê Gleyre, em Paris, onde o artista teve a oportunidade de conhecer vários colegas que, a seu lado, iriam revolucionar os cânones da arte com o Impressionismo. Além de Monet, Renoir foi muito amigo do jovem Bazille, infelizmente falecido precocemente, Sisley, Pissarro, Manet, Berthe Morisot e Cézanne. Vale ressaltar, aliás, que os filhos de Cézanne tornaram-se amigos íntimos dos filhos de Renoir e, segundo consta, seus descendentes mantinham essa aliança pelo menos até o ano da primeira edição do livro na França, 1962. Mais tarde, o apoio que Renoir havia recebido da família para seguir sua arte teve continuidade com a família que ele próprio construiu com Aline Charigot. Frequentemente, eram seus próprios filhos que posavam como modelos para as pinturas, sobretudo os mais novos, Jean e Claude.

Nesta pintura, 'A criança e os brinquedos' (1895-6), Renoir retrata Jean e a babá Gabrielle, muito querida
da família.

Claude Renoir, o caçulinha apelidado de 'Coco' (1903-4)', também era uma criança encantadora.

Um aspecto que impressiona, no decorrer da leitura, é a quantidade de viagens que Renoir empreendeu, sobretudo se considerarmos o transtorno e a dificuldade de locomoção à época, final do século XIX. Mas Renoir não se fazia de rogado. Vira e mexe, pegava pincéis e paleta e partia para temporadas nas casas de amigos residentes em outras cidades, com o objetivo de pintar paisagens diferentes da Paris onde vivia desde os 4 anos. Foi assim que foi parar na casa de Cézanne em Aix-en-Provence, em Mézy com Berthe Morisot e na Espanha com Gallimard. Renoir também esteve em Nice, na Normandia, na Bretanha e em Essoyes, terra da esposa e de Gabrielle Renard (1878-1959), a carinhosa babá contratada para cuidar de Jean Renoir e que acabou incorporada à família, além de ter posado inúmeras vezes para o mestre. Renoir correu para pintar o porto de La Rochelle porque Corot, artista que admirava, o fizera. Sem falar dos invernos que passou em Beaulieu e dos verões em Pont-Aven. Quando achava que Pierre, o filho mais velho, não se cansaria muito, Aline acompanhava o marido com prazer nas viagens e assim procedeu quando do nascimento dos outros filhos. O fato é que em todos esses locais, Renoir nunca estava sozinho. Quando a esposa com as crianças e a babá Gabrielle estavam impedidas de viajar, sempre tinha a companhia de um ou mais amigos pintores, além daqueles que iam visitá-lo onde estivesse: marchands como Paul Durand-Ruel e Ambroise Vollard, com os quais mantinha uma relação verdadeiramente fraternal, o pintor Albert André, amigo dos mais fiéis, Lestringuez, Lhote, Georges Rivière, funcionário do Ministério das Finanças, e muitos outros.

Gabrielle lendo (1906)

Mesmo com as mãos deformadas pelo reumatismo, no fim da vida,
Renoir nunca deixou de pintar.

Jean e Gabrielle em foto de 1950.
Na realidade, um verdadeiro séquito de admiradores acorria à casa de Renoir, que vivia cheia, e muitos tinham o privilégio de compartilhar da mesa da família nas noites de sábado, quando Aline servia sua famosa bouillabaisse ou um pot-au-feu que ficou na história. Entre os convivas, estavam mentes brilhantes como Mallarmé, Zola, Alphonse Daudet, Odilon Redon, Monet, Verlaine, Rimbaud, Edmond Renoir, irmão do artista, e muitos outros, incluindo burgueses ilustrados e outros convivas. 

O livro, lançado no Brasil pela editora Paz e Terra em 1988, infelizmente está esgotado nas livrarias e tive a sorte de adquiri-lo em um sebo alguns anos atrás. Sei que existe uma versão em português vendida na FNAC de Portugal, mas uma obra de tão alta qualidade mereceria ser relançada por aqui! Além de ser uma leitura deliciosa e um mergulho profundo na vida e obra de uma figura tão fascinante como Renoir, também conhecemos detalhes dos personagens que gravitavam em seu redor e ainda temos uma aula de arte, história e costumes da França do século XIX. Portanto, se você for um(a) apaixonado(a) por arte como eu, vale a pena ficar de olho nos sebos ou então encomendar uma versão estrangeira na Amazon.com.

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