“Renoir
era uma máquina maravilhosa de absorver a vida. Via tudo, compreendia tudo, e
se apropriava”. – Jean Renoir
Um homem que amava a humanidade, os seres vivos e a natureza sob todas as formas. Um talento nato. Um bom coração. Uma alma iluminada cuja generosidade foge à compreensão do bruto mundo em que vivemos. Um homem que nasceu para amar e pintar. Esse é o Pierre-Auguste Renoir (1841-1919) com quem tomamos contato na biografia 'Pierre-Auguste Renoir, meu pai', escrita por seu filho Jean Renoir (1894-1979), ator e cineasta consagrado que criou obras-primas como 'A Grande Ilusão' e 'French Cancan', esta última uma homenagem ao pai e a outros artistas que lhe eram contemporâneos, retratando o alegre universo dos cabarés e cafés-concerto.
Jean Renoir quando jovem. |
Por isso, ‘Pierre-Auguste
Renoir, meu pai’ não é uma biografia como as outras. Nota-se, em primeiro
lugar, a admiração que Jean Renoir devotava ao pai, mas dá para perceber que
esse sentimento de amor filial não obscureceu e nem impediu, em absoluto, a
autenticidade ou veracidade dos fatos apresentados. Muito pelo contrário. Jean
relata com a riqueza de detalhes de uma testemunha ocular atenta tudo aquilo sentiu
e viveu de muito perto e também fatos que o próprio Renoir lhe contou. É
assim que ficamos conhecendo os antecedentes do artista e penetramos em seu dia
a dia desde a mais tenra infância no seio da família até a relação calorosa que
mantinha com parentes, agregados e séquitos de amigos e admiradores, artistas
ou não. Ficamos sabendo que o pintor nasceu em um lar amoroso, que o pai era um
alfaiate respeitado, a mãe uma mulher disciplinada que o considerava o filho
predileto e que os irmãos eram talentosos, cada qual em sua vocação e seu métier. Esse afeto aliado a disciplina
foi igualmente transmitido aos três filhos que o artista teve com a jovem
Aline Charigot (1859-1915): Pierre (1885-1952), Jean e Claude (1901-1969), nascidos
quando Renoir já contava mais de 40 anos.
Renoir, já no fim da vida, e a esposa Aline Charigot em sua residência em Cagnes-sur-Mer, 'Les Colettes'. |
O retrato do pequeno Jean Renoir (1901) em uma das inúmeras pinturas do pai. Renoir não gostava que cortassem seu lindo cabelo, fazendo com que o garoto ficasse parecendo uma menina. |
Aqui, uma terna representação de Aline e o irmão mais velho de Jean, Pierre, em pintura de Renoir realizada em 1887. Jean ainda não era nascido. |
O curioso é que, após um estranhamento inicial que a figura excessivamente
magra do artista provocava, as pessoas acabavam ficando absolutamente cativadas
por sua inteligência e generosidade, como se conseguissem captar, de alguma
maneira, o amor que ele nutria pela vida e pela humanidade. Renoir ficou amigo
de praticamente todos os pintores impressionistas, tendo inclusive dividido um
ateliê com Claude Monet na época das vacas magras. Sobre Monet, aliás, Jean nos
relata um detalhe pitoresco: ele podia não ter o que comer, mas sempre se vestia
com esmero e elegância, encomendando roupas aos melhores alfaiates. Se eles
eram pagos ou não, isso era outra história. Informações curiosas e divertidas
como essa pipocam em abundância ao longo da obra, tornando a leitura, além de
instrutiva, leve e agradável.
A família Renoir: Aline com o pequeno Claude no colo, Jean, Pierre e o pintor, já idoso. |
A carreira de Renoir, assim como a dos demais impressionistas,
demorou a engrenar, já que ninguém, nem público nem crítica, estava habituado a
suas inovações. No entanto, o fascinante é que, desde criança, tudo o que
Renoir resolvesse rabiscar produzia belos traços e ele nunca deixou de desenhar
ou pintar um dia sequer. Teve a sorte, inclusive, de ser encorajado pela
família, que teve a sensibilidade de reconhecer o talento do garoto. Esse
dom inato foi burilado ainda mais no Ateliê Gleyre, em Paris, onde o artista teve
a oportunidade de conhecer vários colegas que, a seu lado, iriam revolucionar
os cânones da arte com o Impressionismo. Além de Monet, Renoir foi muito amigo
do jovem Bazille, infelizmente falecido precocemente, Sisley, Pissarro, Manet,
Berthe Morisot e Cézanne. Vale ressaltar, aliás, que os filhos de Cézanne
tornaram-se amigos íntimos dos filhos de Renoir e, segundo consta, seus
descendentes mantinham essa aliança pelo menos até o ano da primeira edição do
livro na França, 1962. Mais tarde, o apoio que Renoir havia recebido da família
para seguir sua arte teve continuidade com a família que ele próprio construiu
com Aline Charigot. Frequentemente, eram seus próprios filhos que posavam como
modelos para as pinturas, sobretudo os mais novos, Jean e Claude.
Nesta pintura, 'A criança e os brinquedos' (1895-6), Renoir retrata Jean e a babá Gabrielle, muito querida da família. |
Claude Renoir, o caçulinha apelidado de 'Coco' (1903-4)', também era uma criança encantadora. |
Um aspecto que impressiona, no decorrer da leitura, é a
quantidade de viagens que Renoir empreendeu, sobretudo se considerarmos o
transtorno e a dificuldade de locomoção à época, final do século XIX. Mas
Renoir não se fazia de rogado. Vira e mexe, pegava pincéis e paleta e partia
para temporadas nas casas de amigos residentes em outras cidades, com o
objetivo de pintar paisagens diferentes da Paris onde vivia desde os 4 anos. Foi
assim que foi parar na casa de Cézanne em Aix-en-Provence, em Mézy com Berthe
Morisot e na Espanha com Gallimard. Renoir também esteve em Nice, na Normandia,
na Bretanha e em Essoyes, terra da esposa e de Gabrielle Renard (1878-1959), a carinhosa
babá contratada para cuidar de Jean Renoir e que acabou incorporada à família,
além de ter posado inúmeras vezes para o mestre. Renoir correu para pintar o
porto de La Rochelle porque Corot, artista que admirava, o fizera. Sem falar
dos invernos que passou em Beaulieu e dos verões em Pont-Aven. Quando achava
que Pierre, o filho mais velho, não se cansaria muito, Aline acompanhava o
marido com prazer nas viagens e assim procedeu quando do nascimento dos outros
filhos. O fato é que em todos esses locais, Renoir nunca estava sozinho. Quando
a esposa com as crianças e a babá Gabrielle estavam impedidas de viajar, sempre
tinha a companhia de um ou mais amigos pintores, além daqueles que iam
visitá-lo onde estivesse: marchands como Paul Durand-Ruel e Ambroise Vollard,
com os quais mantinha uma relação verdadeiramente fraternal, o pintor Albert
André, amigo dos mais fiéis, Lestringuez, Lhote, Georges Rivière, funcionário do
Ministério das Finanças, e muitos outros.
Gabrielle lendo (1906) |
Mesmo com as mãos deformadas pelo reumatismo, no fim da vida, Renoir nunca deixou de pintar. |
Jean e Gabrielle em foto de 1950. |
Na realidade, um verdadeiro séquito de admiradores acorria à
casa de Renoir, que vivia cheia, e muitos tinham o privilégio de compartilhar
da mesa da família nas noites de sábado, quando Aline servia sua famosa bouillabaisse ou um pot-au-feu que ficou na história. Entre os convivas, estavam mentes
brilhantes como Mallarmé, Zola, Alphonse Daudet, Odilon Redon, Monet, Verlaine,
Rimbaud, Edmond Renoir, irmão do artista, e muitos outros, incluindo burgueses
ilustrados e outros convivas.
O livro, lançado no Brasil pela editora Paz e Terra em 1988,
infelizmente está esgotado nas livrarias e tive a sorte de adquiri-lo em um
sebo alguns anos atrás. Sei que existe uma versão em português vendida na FNAC
de Portugal, mas uma obra de tão alta qualidade mereceria ser relançada por
aqui! Além de ser uma leitura deliciosa e um mergulho profundo na vida e obra
de uma figura tão fascinante como Renoir, também conhecemos detalhes dos personagens
que gravitavam em seu redor e ainda temos uma aula de arte, história e costumes
da França do século XIX. Portanto, se você for um(a) apaixonado(a) por arte
como eu, vale a pena ficar de olho nos sebos ou então encomendar uma versão
estrangeira na Amazon.com.
INTERESSANTE
ResponderExcluir