quarta-feira, 28 de maio de 2014

Toulouse-Lautrec, o gênio que deu forma à 'mondanité' parisiense.

Não, ele não era um coitado. Não, ele não sentia pena de si mesmo. E não, ele não era infeliz. Muito pelo contrário: aproveitou a vida à sua maneira, era extremamente bem-humorado e viveu intensamente até a última gota de absinto ou do que mais caísse em suas mãos – ou garganta, melhor dizendo. Estou falando de um pintor que retratou a vida mundana de Paris como ninguém: Henri Marie Raymond de Toulouse-Lautrec, nascido em 1864 e falecido apenas 37 anos depois, em 1901. O artista foi tema de mais uma aula lotada do Prof. Renato Brolezzi, no MASP, que teve como ponto de partida a obra do museu 'Paul Viaud como Almirante do Século XVIII', finalizada em agosto de 1901, pouco antes da morte do pintor.

Toulouse-Lautrec - 'Paul Viaud como Almirante do Século XVIII' (1901) - óleo s/ tela - MASP

O 'Paul Viaud' retratado na pintura era um primo de Toulouse-Lautrec, trabalhava na marinha e o artista quis fazer uma paródia com o parente. Na ocasião, a condessa Adèle, mãe do pintor, havia pedido que o rapaz "tomasse conta" do filho que tinha os dois pés na esbórnia em Paris. Naturalmente, os conselhos maternos foram inúteis: Toulouse-Lautrec era um alcoólatra notório e inclusive mandou confeccionar uma bengala oca a fim de carregar bebida em seu interior e despistar as pessoas.

Vemos que, ironicamente, o navio do quadro está naufragando e o horizonte é torto, quiçá uma metáfora do próprio artista que intuía o fim próximo. Acredita-se, aliás, que esta seja sua penúltima pintura. Na tela notamos, também, grandes sugestões de horizontais e verticais e um estimulante contraste de duas cores complementares, o vermelho e o verde. Há uma harmonia no todo, uma ordem no conjunto – o oposto da vida do artista. 

Esse artista genial, com um traço inconfundível, excelente desenhista e inventor dos affiches – cartazes precursores da propaganda publicitária, nasceu de uma família abastada, em um castelo de Albi, nas proximidades de Toulouse, à época uma cidade muito rica no sudoeste da França e colonizada por ingleses na Idade Média. Consta, inclusive, que a família Toulouse-Lautrec havia lutado nas Cruzadas. Seu pai e seu avô haviam enriquecido com o mercado imobiliário e o pai, homem impetuoso, era um colecionador inveterado: juntava armas, livros e cavalos com o mesmo afã com que colecionava amantes.

Toulouse-Lautrec era um homem pequenino devido a uma má formação congênita nos ossos, agravada por dois tombos sérios que sofreu na infância, fazendo com que apenas seu tronco se desenvolvesse. Apesar dessa anomalia física, se é que podemos chamar assim, ele era um homem extrovertido, de excelente humor e muito aberto aos estímulos da modernidade.

O artista começou a pintar por volta de 1880/81 e, no início da carreira, gostava de pintar cavalos. Na obra abaixo, retratou o pai em uma diligência.

Toulouse-Lautrec - 'Conde Alphonse de Toulouse-Lautrec conduzindo sua diligência em Nice' (1881) - óleo s/ tela

Quando realizou a pintura a seguir, com modelo vivo, o artista tinha apenas 17 anos e ainda era aluno de seu primeiro professor, René Princeteau. No entanto, já podemos vislumbrar seu enorme talento e uma técnica magnífica.

Toulouse-Lautrec - torso de homem nu (c. 1881)

Foi em 1882 que Tolouse-Lautrec mudou-se para Paris. Chegou lá com sua mãe e eterno anjo da guarda, a recatada condessa Adèle, que o acompanhou para zelar pelo filho. Porém, foram morar em casas separadas e em 1884 o artista mudou-se para Montmartre, que oferecia o ambiente boêmio onde se sentia em casa. Em Paris, estudou dois anos na Escola de Belas Artes e teve aulas com grandes acadêmicos, como Fernand Cormon, que também foi professor de Van Gogh, e Léon Bonnat, entre outros.

O artista dava-se muito melhor com o universo marginal e mundano dos cabarés, bordéis e cafés-concerto do que com o mundo burguês no qual havia nascido. Na cidade-luz levava uma rotina insana, bebendo muito e dormindo pouco, e também retratando os tipos que desfilavam nas noitadas. Frequentava os cabarés das 21h às 5h, trabalhava das 5h às 12h, dormia das 12h às 16h e trabalhava novamente das 16h às 21h. Tudo entremeado com grandes goles de bebida em um estilo de vida que, naturalmente, muito contribuiu para debilitar sua saúde.

Vale ressaltar que na obra de Toulouse-Lautrec não há improvisação nem experimentalismo. Tudo era estudado e, após captar a imagem, o artista levava muito tempo para terminá-la. Apaixonado por fotografia, não hesitou em inserir recortes "fotográficos" e enquadramentos inusitados em suas obras, revelando uma influência inclusive das gravuras japonesas, que estavam na moda então. Lautrec apreciava muito o trabalho de Utamaro, mestre japonês da gravura do século XVIII. A obra abaixo mostra bem o enquadramento anticonvencional para a época, bem como a desconstrução da imagem e o dinamismo gerado pela fusão entre linha e cor.

Toulouse-Lautrec - 'Bailarinas' (1885-6) - óleo s/ gesso - Art Institute of Chicago

Os circos eram muito populares na Paris do final do século XIX. Na obra a seguir, vemos um espetáculo circense com enquadramento também fora dos padrões, maquiagens carregadas e grandes partes da tela deixadas propositalmente em branco. Uma curiosidade: ao ser inaugurado, o Moulin Rouge comprou essa pintura para decorar seu foyer.

Toulouse-Lautrec - 'No Circo Fernando' (1887-88) - óleo s/ tela -Art Institute of Chicago

Quando ainda era aluno do Ateliê Cormon em Paris, o artista foi colega do pintor Émile Bernard, que à época ainda era um adolescente e também estudante do ateliê, assim como Van Gogh. Toulouse-Lautrec fez então um retrato do amigo que, mais tarde, confidenciou ter posado trinta e três vezes para a pintura. O pintor também foi muito amigo de Van Gogh entre 1886 e 1888, e eles inclusive chegaram a trabalhar juntos.

Toulouse-Lautrec - 'Emile Bernard' (1885) - óleo s/ tela - Tate Gallery - Londres

Toulouse-Lautrec - 'Justine Dieuhl' (1891) - óleo s/ cartão - Musée d'Orsay - Paris
Justine era filha de um colecionador de Paris.

Embora muita gente o classifique dessa forma, Toulouse-Lautrec não era impressionista, mas pós-impressionista, por assim dizer. Na realidade, o artista extrapolou os princípios do impressionismo. Deformou a imagem, não estabeleceu contornos rígidos e produziu movimento, dando-nos uma impressão fugidia da cena, como se a obra estivesse inacabada. Temos uma impermanência absoluta da forma. Em outras palavras, ele não pintou superfícies passageiras da luz momentânea como os impressionistas, mas a própria estrutura da forma se dissolveu. A invenção da tinta em tubos, com a criação de novos pigmentos, contribuiu muito para a liberdade artística e para satisfazer o anseio desses primeiros pintores modernos.

Vale ressaltar, também, que o artista foi um grande explorador do crayon e, frequentemente, misturava técnicas na mesma obra, como óleo e crayon, para obter o efeito desejado. Homem eminentemente urbano, não gostava de pintar paisagens, preferindo retratar o ambiente da cidade.


Toulouse-Lautrec - 'Divã' (c.1893) - óleo c/ essência sobre cartão - MASP
Aqui, a cena de um bordel com uma profusão de vermelhos, a cor da "luxúria".

As obras abaixo estão dentre as mais conhecidas de Toulouse-Lautrec e mostram cenas de um ambiente que era praticamente sua segunda casa: o cabaré Moulin Rouge, inaugurado em 1889, onde ele passava boa parte do tempo, inclusive trabalhando, e de onde tirou vários tipos lendários que povoam suas obras, uma verdadeira fauna de bailarinos, cantores, prostitutas e boêmios de todos os matizes. O cabaré era todo envidraçado e iluminado com lampiões a gás e, vira e mexe, as pessoas, já um tanto bêbadas, batiam o nariz no vidro. Detalhe curioso: a palavra moulin, em francês, era também uma gíria para designar o órgão sexual feminino.

O maravilhoso Moulin Rouge à época de Toulouse-Lautrec, com sua alegria e iluminação feérica - foto anônima.

Na obra a seguir, vemos o próprio artista – a figura minúscula central ao fundo - e seu primo Gabriel Tapé de Céleyran no Moulin Rouge, entre outras figuras da noite. O primo, que era médico, havia sido incumbido pela zelosa condessa Adèle de cuidar do filho, mas também caiu na esbórnia e quase arruinou a carreira. Quem poderia resistir ao Moulin Rouge? Em primeiro plano, à direita, está a cantora inglesa May Milton tomada por uma máscara de luz surreal. Certa vez, um marchand do artista cortou a tela para remover essa figura da composição, pois julgava o quadro difícil de vender devido a esse detalhe "chocante". Felizmente, May Milton foi reinserida na pintura em 1914, restituindo à obra-prima sua aparência original.

Toulouse-Lautrec - 'No Moulin Rouge' (1892-95) - óleo s/ tela - Art Institute of Chicago

A seguir, mais uma cena do Moulin Rouge na primeira pintura de grandes dimensões de Toulouse-Lautrec. Dançando, no centro, vemos os lendários Valentin le Désossé e Louise Weber, conhecida como 'La Goulue' ("A Gulosa"), uma das criadoras do cancan e principal estrela da casa. Os clientes podiam adquirir postais seus no local, inclusive em poses eróticas. Quando ficou mais velha e as pessoas se cansaram de sua imagem, Louise foi demitida e casou-se com o dono de um circo, mas teve um destino trágico: seu marido foi comido pelos leões de seu próprio circo, a pobre moça tornou-se alcoólatra e morreu na indigência. Em primeiro plano, vestida de rosa, está Jane Avril, concorrente e sucessora de La Goulue.


Toulouse-Lautrec - 'Dança no Moulin Rouge' (1890) - óleo s/ tela - Philadelphia Museum of Art

Preciosidade: o mestre diante da obra anterior! - quem será que teve o privilégio de testemunhar essa cena?

A seguir, vemos La Goulue entrando no Moulin Rouge com sua empresária Môme Fromage à esquerda. Outro detalhe: a empresária já havia sido presa por manter casas de prostituição. Sim, nosso amigo, definitivamente, nasceu para o bas-fond! Aliás, quando o Moulin Rouge perdeu sua aura marginal e começou a ficar "respeitável", ele simplesmente parou de frequentá-lo.

Toulouse-Lautrec - 'La Goulue entrando no Moulin Rouge' (1892)

E nesta litografia de 1891, um legítimo cartaz de propaganda que
Toulouse-Lautrec fez para divulgar o Moulin Rouge. No centro está La Goulue,
e a silhueta em primeiro plano é de Valentin Le Désossé.

A jovem Louise Weber, La Goulue, em foto que deve ter sido de um
cartão postal.

Yvette Guilbert, outra estrela do Moulin Rouge,
sempre se apresentava com luvas negras.
Este guache sobre cartão é de 1894.

Abaixo, um cartaz de propaganda que Toulouse-Lautrec fez para o amigo Paul Sescau,  grande fotógrafo que costumava assinar com o símbolo de um elefantinho. Sescau fez várias fotos do artista.


Toulouse-Lautrec e o cartaz que criou para divulgar os serviços do amigo fotógrafo.

Outra figura mitológica dos cabarés e também amigo de Toulouse-Lautrec era o cantor popular Aristide Bruant, que sempre se vestia do mesmo jeito e homenageava, em suas canções, os camponeses e excluídos. Bruant também foi empresário, adquirindo casas de café-concerto e cabarés como o Chat Noir e o Ambassadeurs. À tarde, os cabarés eram inocentes casas de chá frequentadas por senhoras e senhoritas com perfil bem diferente daquelas que frequentavam o local à noite.


Esse é um dos cartazes mais famosos de Toulouse-Lautrec, desta vez
para divulgar o cabaré do amigo Aristide Bruant.

Podemos dizer que Toulouse-Lautrec se esgotou fisicamente para produzir sua obra e, já doente e no fim da vida, viajou a Bordeaux, onde assistiu a muitas óperas e adorou a experiência, criando uma série de obras por lá. Uma das óperas que lhe agradaram particularmente foi 'A Messalina', de um inglês chamado Isidore de Lara, e o artista pintou mais de uma cena inspirada no espetáculo.


Toulouse-Lautrec - 'A Messalina' (1900-1901) óleo s/ tela

Acredite se quiser, mas 'Rato Morto' era o nome de um restaurante de Montmartre. "Inspirador", não? (rs) Na tela abaixo, o artista retrata uma cortesã naquele restaurante cujo nome, definitivamente, não deve ter saído da cabeça de um marqueteiro.


Toulouse-Lautrec - 'No Rato Morto' (c.1899) - The Courtauld Institute of Art - Londres

A próxima pintura é talvez a derradeira e retrata o primo Gabriel em um exame de medicina – sim, o mesmo primo médico ao qual a condessa Adèle, uma mãe aflita, havia pedido tempos atrás que tomasse conta do filho. Mas foi em vão. Toulouse-Lautrec viveu e morreu por sua obra e, para ele, isso bastava para que fosse feliz em sua curta existência.


Toulouse-Lautrec - 'Um exame na escola de medicina', Paris' (1901) - óleo s/ tela

Muito mais haveria para ser dito sobre Toulouse-Lautrec, mas, como não há espaço aqui, espero pelo menos ter inspirado você a pesquisar mais sobre a vida e obra desse artista único! Até a próxima!

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