domingo, 19 de janeiro de 2014

Henri Matisse. Explosão de cor, alegria e amor pela criação.

O francês Henri Matisse (1869-1954) bem que tentou cursar Direito na Sorbonne. Depois de dois anos de estudos, no entanto, teve uma crise de apendicite que quase o matou e, durante a convalescença, decidiu fazer o que mais gostava: ser pintor. Está aí um clássico e feliz exemplo daquilo que o senso comum denomina "males que vêm para bem". Por esta razão, Matisse começou a pintar tarde, aos 21 anos, mas logo teve aulas com o simbolista Gustave Moreau.

Em mais uma excelente aula com o prof. Renato Brolezzi, no MASP, tive a oportunidade de conhecer um pouco mais da vida e obra desse que é um dos mais exuberantes artistas pós-impressionistas. Como sempre, o prof. Brolezzi analisou uma obra do acervo do museu e, desta vez, o destaque foi 'O Torso de Gesso' (1919), pintado quando Matisse tinha 50 anos.

'O Torso de Gesso' (1919), obra de Matisse que está no Masp.


Vemos um vaso de flores com uma harmonia cromática tão viva e intensa, que quase podemos sentir o aroma das flores, além de visualizarmos suas belas formas. Ao lado, vemos o torso de gesso de uma mulher, como se Matisse quisesse contrapor a criação da natureza (as flores) à criação do homem (o torso de gesso). Temos, então, um embate Natureza X Cultura. A propósito, o mestre trabalhava com poucos modelos e só pintava modelos femininos. Na parede, uma pintura de nu estabelece um diálogo poético com a escultura sobre a mesa.

Note que Matisse utiliza as três cores primárias e suas derivações, padrão que se repete em outras pinturas. Para ele, as cores não existiam para "descrever" as coisas, elas bastavam-se a si mesmas.

Além disso, o artista contrapõe linhas horizontais, verticais e curvas, em outro padrão comum às demais obras. A tensão espacial, claramente perceptível pela deformação da perspectiva inverossímil, insulta o senso comum e, novamente, é um recurso largamente utilizado pelo artista que mensurava a importância de uma obra, entre outros fatores, pela quantidade e qualidade das tensões que continha.

Podemos, portanto, estabelecer 4 características recorrentes na obra do mestre:

-Ampla utilização de cores primárias
-Clara contraposição de linhas horizontais, verticais e curvas
-Desprezo pela perspectiva
-Presença de tensões

Além disso, não é raro encontrarmos, em outras obras, vasos de flores e esculturas. Sobre essa repetição de padrões, o prof. Renato Brolezzi observou que é é como se Matisse dissesse a mesma coisa, mas de formas diferentes.

Na época em que 'O Torso de Gesso' foi criado, a I Guerra Mundial havia acabado de chegar ao fim, mas Matisse se recusava a pintar as vilezas humanas, negando aquilo que para ele constituíam as "ninharias" de seu tempo. Por isso, ao contrário de vários de seus contemporâneos, recusou-se a pintar o sofrimento, as guerras e tragédias, buscando temas mais "elevados", mais transcendentais. Por essa mesma razão, Matisse raramente representou temas cotidianos. Tinha o espírito clássico, não no sentido da forma, mas na busca da harmonia.

Um dos primeiros quadros do jovem Matisse, 'Luxe, calme et volupté' (1904), cujo título tomou emprestado do poema 'Flores do Mal', de seu ídolo Charles Baudelaire, foi pintado com a técnica pontilhista em St. Tropez, quando lá esteve com André Dérain (1880-1954) em busca das cores quentes do 'Midi' e encontrou Georges Seurat (1859-1891), inventor do pontilhismo, e Paul Signac (1863-1935). Sabe-se que Matisse inclusive chegou a ter aulas com Seurat.

A pintura celebra a preguiça, o ócio e o prazer da vida, valores que parecem estranhos em nosso tempo, mas que os felizes franceses do final do século XIX e início do séc. XX ainda se permitiam. Afinal, é fato que os momentos de ócio e prazer com os amigos permitem que nosso pensamento voe, estimulando a imaginação e a criatividade.

Matisse - 'Luxe, calme et volupé' (1904)


Essa obra foi exposta em 1905, na exposição que deu origem ao termo "fauvistas", utilizado na ocasião porque, segundo um crítico, esses artistas  pintavam como "feras" ("fauves") – esse crítico chegou a afirmar, maldosamente, que é como se eles tivessem "amarrado um pincel com tinta no rabo de um leão e o soltado sobre as telas". No entanto, Matisse não procurava a violência. Buscava somente a harmonia dos contrários e detestou o epíteto "fauve", afirmando que "ninguém tinha entendido nada de sua arte”. Além de Matisse, artistas como Dérain e Vlaminck também expuseram na primeira exposição fauvista.

Matisse - 'Retrato de André Dérain' (1905)


Na tela abaixo, Matisse retrata o grande amor de sua vida, sua esposa Amélie Parayre. A imagem lembra um ícone bizantino, de certa forma herança de Cézanne. O  vermelho, o amarelo, o azul e o verde estão sempre presentes.

Matisse - 'Retrato da Sra. Matisse' (1905)


Matisse - 'A Alegria de Viver' (1905-1906)


Matisse - 'Vista de Collioure' (1906)


Matisse -  'O Jovem Marinheiro' (1906)


A contraposição de linhas horizontais, verticais e curvas, bem como a perspectiva transgressora, estão bem evidentes na pintura abaixo, uma obra repleta de energia.

Matisse - 'A Sobremesa - Harmonia em Vermelho' (1908)


As duas telas a seguir, 'A Dança' (1909) e 'A Música' (1910), representam mais uma demonstração da celebração da vida tão típica do mestre, sendo que 'A Dança' é uma das obras mais famosas de Matisse. Os homens foram caracterizados com linhas retas, e as mulheres com linhas curvas. Certa vez, essa obras foram adquiridas pelo milionário e colecionador russo Sergei Choukin para decorar seu palácio em Moscou. Choukin tinha 32 telas de Matisse e quinze de Picasso à época, mas, após a Revolução Russa, a coleção ficou em poder do Museu de S. Petersburgo, onde está até hoje.

Matisse - 'A Dança' (1909)


Matisse - 'A Música' (1910)


A obra a seguir, 'O Estúdio Vermelho' (1911), mostra o estúdio de trabalho do artista. O impressionante é que a cor foi esculpida com o cabo do pincel. E novamente, os elementos que caracterizam a obra do artista se repetem.

Matisse - 'O Estúdio Vermelho' (1911)


Em 1911, houve uma grande exposição islâmica em Berlim, Paris e Nova York, e Matisse ficou encantado com os tapetes orientais. Como àquela época já possuía bons recursos financeiros, pôde comprar vários para pendurar e pintar. Entre 1911 e 1912, viajou para o Marrocos e a Argélia para ver com os próprios olhos de onde vinham aquelas maravilhas. A partir dessa época, algumas de suas obras não apenas exibem padronagens de tapetes orientais, mas também outras temáticas do Oriente Médio, como as odaliscas que retratou sobretudo na década de 20.

Matisse - 'Odalisca' (1922)


Matisse - 'A Odalisca Adormecida' (1923)


Na obra abaixo, 'O Jogo de Xadrez’ (1913), vemos uma rara cena de cotidiano na obra de Matisse: trata-se de sua esposa, seus filhos Jean e Pierre e sua mãe Ana de luto pela perda do esposo. E no chão, está um dos belíssimos tapetes orientais que adquiriu.

Matisse - 'O Jogo de Xadrez' (1913)


Matisse - 'Interior com uma cortina egípcia' (1948)


Matisse - 'A Conversação' (1938)


Criador incansável, Matisse também se aventurou no terreno da escultura. Moldava suas peças primeiro em terracota e depois as fundia em bronze. Para ele, o que importava era a harmonia, e não a precisão dos detalhes. A propósito, suas figuras humanas sempre têm um contraposto, isto é, uma das pernas levemente dobrada para dar sustentação à outra.

Uma das esculturas de Matisse


Nos anos 40, Matisse infelizmente passou a sofrer de câncer no duodeno e mudou-se para Nice. O artista sentia dores terríveis e fez várias cirurgias, mas trabalhou até a última semana de vida. Embora nessa época difícil ficasse na cama a maior parte do tempo, Matisse tinha uma energia criadora fenomenal e, incansável, achou uma maneira de dar vazão a ela: da própria cama começou a fazer os 'papiers colés' (colagens de papel) e também muitos desenhos, com a ajuda de um longo bastão com carvão na ponta. Os fotógrafos Henri Cartier-Bresson e Man Ray, seus grandes amigos, registraram alguns desses momentos.

Matisse - 'A Queda de Ícaro' - papier colé - segundo a lenda, Ícaro ganhou asas de 

cera e havia sido advertido para não voar perto do sol, porque elas poderiam 

derreter e ele cairia. Atraído pela luz, Ícaro desobedeceu e caiu para sempre 

no abismo. Sua paixão foi sua perdição.


Matisse já doente, no Hôtel Regina, em Nice, em 1952 - Foto de autoria desconhecida.


Nessa mesma década de 50, Matisse recebeu um pedido muito especial: uma ex-modelo sua que havia virado feira procurou-o e lhe pediu para fazer o projeto da Capela do Rosário, uma capela Dominicana em St. Paul de Vence, perto de Nice, bem como o design dos móveis, a decoração e os vitrais. Matisse lançou-se com alegria renovada a essa atividade, entre 1949 e 1953, e criou a capela inteira sem cobrar quase nada. Dá para perceber agora de onde veio a inspiração de Oscar Niemeyer para criar a Igreja da Pampulha, em Belo Horizonte? Pois é.

Capela do Rosário - St. Paul de Vence, totalmente decorada por Henri Matisse.


Outro ângulo da capela com belíssimos vitrais do mestre.

3 comentários:

  1. Muito Obrigado por todo o conteúdo postado, me explicou muito sobre a obra e o ponto de visão de artista fabuloso.

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