O francês Henri Matisse
(1869-1954) bem que tentou cursar Direito na Sorbonne. Depois de dois anos de
estudos, no entanto, teve uma crise de apendicite que quase o matou e, durante
a convalescença, decidiu fazer o que mais gostava: ser pintor. Está aí um
clássico e feliz exemplo daquilo que o senso comum denomina "males que vêm para
bem". Por esta razão, Matisse começou a pintar tarde, aos 21 anos, mas logo
teve aulas com o simbolista Gustave Moreau.
Em mais uma excelente aula com o prof. Renato Brolezzi, no MASP,
tive a oportunidade de conhecer um pouco mais da vida e obra desse que é um dos
mais exuberantes artistas pós-impressionistas. Como sempre, o prof. Brolezzi
analisou uma obra do acervo do museu e, desta vez, o destaque foi 'O Torso de Gesso' (1919), pintado
quando Matisse tinha 50 anos.
'O Torso de Gesso' (1919), obra de Matisse que está no Masp. |
Vemos um vaso de flores com uma harmonia cromática tão viva e
intensa, que quase podemos sentir o aroma das flores, além de visualizarmos
suas belas formas. Ao lado, vemos o torso de gesso de uma mulher, como se
Matisse quisesse contrapor a criação da natureza (as flores) à criação do homem
(o torso de gesso). Temos, então, um embate Natureza X Cultura. A propósito, o
mestre trabalhava com poucos modelos e só pintava modelos femininos. Na parede,
uma pintura de nu estabelece um diálogo poético com a escultura sobre a mesa.
Note que Matisse utiliza as três cores primárias e suas
derivações, padrão que se repete em outras pinturas. Para ele, as cores não
existiam para "descrever" as coisas, elas bastavam-se a si mesmas.
Além disso, o artista contrapõe linhas horizontais, verticais e
curvas, em outro padrão comum às demais obras. A tensão espacial, claramente
perceptível pela deformação da perspectiva inverossímil, insulta o senso comum
e, novamente, é um recurso largamente utilizado pelo artista que mensurava a
importância de uma obra, entre outros fatores, pela quantidade e qualidade das
tensões que continha.
Podemos, portanto, estabelecer 4 características recorrentes na
obra do mestre:
-Ampla
utilização de cores primárias
-Clara
contraposição de linhas horizontais, verticais e curvas
-Desprezo
pela perspectiva
-Presença
de tensões
Além disso, não é raro encontrarmos, em outras obras, vasos de
flores e esculturas. Sobre essa repetição de padrões, o prof. Renato
Brolezzi observou que é é como se Matisse dissesse a mesma coisa, mas de formas diferentes.
Na época em que 'O Torso de Gesso' foi criado, a I Guerra
Mundial havia acabado de chegar ao fim, mas Matisse se recusava a pintar as
vilezas humanas, negando aquilo que para ele constituíam as "ninharias" de seu
tempo. Por isso, ao contrário de vários de seus contemporâneos, recusou-se a
pintar o sofrimento, as guerras e tragédias, buscando temas mais "elevados",
mais transcendentais. Por essa mesma razão, Matisse raramente representou temas
cotidianos. Tinha o espírito clássico,
não no sentido da forma, mas na busca da harmonia.
Um dos primeiros quadros do jovem Matisse, 'Luxe, calme et volupté' (1904),
cujo título tomou emprestado do poema 'Flores do Mal', de seu ídolo Charles Baudelaire,
foi pintado com a técnica pontilhista em St. Tropez, quando lá esteve com André Dérain (1880-1954) em busca das cores quentes do 'Midi' e encontrou Georges Seurat (1859-1891), inventor
do pontilhismo, e Paul Signac (1863-1935). Sabe-se que Matisse inclusive chegou a
ter aulas com Seurat.
A pintura celebra a preguiça, o ócio e o prazer da vida, valores
que parecem estranhos em nosso tempo, mas que os felizes franceses do final do
século XIX e início do séc. XX ainda se permitiam. Afinal, é fato que os
momentos de ócio e prazer com os amigos permitem que nosso pensamento voe,
estimulando a imaginação e a criatividade.
Matisse - 'Luxe, calme et volupé' (1904) |
Essa obra foi exposta em 1905, na exposição que deu origem ao
termo "fauvistas", utilizado na ocasião porque, segundo um crítico, esses artistas pintavam
como "feras" ("fauves") – esse crítico chegou a afirmar, maldosamente, que é como se eles tivessem "amarrado um pincel com tinta no rabo de um leão e o soltado
sobre as telas". No entanto, Matisse não procurava a violência. Buscava somente a harmonia dos contrários e
detestou o epíteto "fauve", afirmando que "ninguém tinha entendido nada de sua arte”. Além
de Matisse, artistas como Dérain e Vlaminck também expuseram na primeira
exposição fauvista.
Matisse - 'Retrato de André Dérain' (1905) |
Na tela abaixo, Matisse retrata o grande
amor de sua vida, sua esposa Amélie Parayre. A imagem lembra um ícone bizantino, de
certa forma herança de Cézanne. O vermelho, o amarelo, o azul e o verde estão
sempre presentes.
Matisse - 'Retrato da Sra. Matisse' (1905) |
Matisse - 'A Alegria de Viver' (1905-1906) |
Matisse - 'Vista de Collioure' (1906) |
Matisse - 'O Jovem Marinheiro' (1906) |
A contraposição de linhas horizontais, verticais e curvas, bem
como a perspectiva transgressora, estão bem evidentes na pintura abaixo, uma obra repleta de energia.
Matisse - 'A Sobremesa - Harmonia em Vermelho' (1908) |
As duas telas a seguir, 'A
Dança' (1909) e 'A Música' (1910),
representam mais uma demonstração da celebração da vida tão típica do mestre, sendo que 'A Dança' é
uma das obras mais famosas de Matisse. Os homens foram caracterizados com linhas
retas, e as mulheres com linhas curvas. Certa vez, essa obras foram adquiridas
pelo milionário e colecionador russo Sergei Choukin para decorar seu palácio em
Moscou. Choukin tinha 32 telas de Matisse e quinze de Picasso à época, mas, após
a Revolução Russa, a coleção ficou em poder do Museu de S. Petersburgo, onde
está até hoje.
Matisse - 'A Dança' (1909) |
Matisse - 'A Música' (1910) |
A obra a seguir, 'O
Estúdio Vermelho' (1911), mostra o estúdio de trabalho do artista. O
impressionante é que a cor foi esculpida com o cabo do pincel. E novamente, os
elementos que caracterizam a obra do artista se repetem.
Matisse - 'O Estúdio Vermelho' (1911) |
Em 1911, houve uma grande exposição islâmica em Berlim, Paris e Nova
York, e Matisse ficou encantado com os tapetes orientais. Como àquela época já possuía bons recursos
financeiros, pôde comprar vários para pendurar e pintar. Entre 1911 e 1912,
viajou para o Marrocos e a Argélia para ver com os próprios
olhos de onde vinham aquelas maravilhas. A partir dessa época, algumas de suas obras
não apenas exibem padronagens de tapetes orientais, mas também outras temáticas
do Oriente Médio, como as odaliscas que retratou sobretudo na década de 20.
Matisse - 'Odalisca' (1922) |
Matisse - 'A Odalisca Adormecida' (1923) |
Na obra abaixo, 'O Jogo
de Xadrez’ (1913), vemos uma rara cena de cotidiano na obra de Matisse:
trata-se de sua esposa, seus filhos Jean e Pierre e sua mãe Ana de luto pela
perda do esposo. E no chão, está um dos belíssimos tapetes orientais que adquiriu.
Matisse - 'O Jogo de Xadrez' (1913) |
Matisse - 'Interior com uma cortina egípcia' (1948) |
Matisse - 'A Conversação' (1938) |
Criador incansável, Matisse também se aventurou no terreno da
escultura. Moldava suas peças primeiro em terracota e depois as fundia em
bronze. Para ele, o que importava era a harmonia, e não a precisão dos detalhes.
A propósito, suas figuras humanas sempre têm um contraposto, isto é, uma das
pernas levemente dobrada para dar sustentação à outra.
Uma das esculturas de Matisse |
Nos anos 40, Matisse infelizmente passou a sofrer de câncer no duodeno e mudou-se para Nice. O artista sentia dores terríveis e fez várias cirurgias, mas
trabalhou até a última semana de vida. Embora nessa época difícil ficasse na cama a maior parte do tempo, Matisse tinha uma energia criadora fenomenal e, incansável, achou uma
maneira de dar vazão a ela: da própria cama começou a fazer os 'papiers colés' (colagens de papel) e também
muitos desenhos, com a ajuda de um longo bastão com carvão na ponta. Os
fotógrafos Henri Cartier-Bresson e Man Ray, seus grandes amigos, registraram
alguns desses momentos.
Matisse já doente, no Hôtel Regina, em Nice, em 1952 - Foto de autoria desconhecida. |
Nessa mesma década de 50, Matisse recebeu um pedido muito especial: uma
ex-modelo sua que havia virado feira procurou-o e lhe pediu para fazer o
projeto da Capela do Rosário, uma capela Dominicana em St. Paul de Vence, perto de Nice, bem como o
design dos móveis, a decoração e os vitrais. Matisse lançou-se com alegria renovada a
essa atividade, entre 1949 e 1953, e criou a capela inteira sem cobrar quase
nada. Dá para perceber agora de onde veio a inspiração de Oscar Niemeyer para criar a Igreja da Pampulha, em Belo Horizonte? Pois é.
Capela do Rosário - St. Paul de Vence, totalmente decorada por Henri Matisse. |
Outro ângulo da capela com belíssimos vitrais do mestre. |
Muito Obrigado por todo o conteúdo postado, me explicou muito sobre a obra e o ponto de visão de artista fabuloso.
ResponderExcluirFico feliz em ter ajudado!
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