Em um país onde predominam as nulidades musicais, algumas gritantemente óbvias e outras mais camufladas para os ouvidos incautos, é um alento constatar que
ainda exista uma moçada com sensibilidade e talento para a música erudita. Isso
ficou patente no último fim de semana, quando fui assistir ao recital do
pianista Rogério Lourenço dos Santos Tutti,
da série de recitais que o MUBE – Museu Brasileiro da Escultura promove aos
domingos, sempre às 15h30.
Retrato de um jovem Franz Liszt por Henri Lehmann (1840) |
O que me atraiu de imediato foi o repertório divulgado na newsletter eletrônica do museu, composto por peças de Franz Liszt (1811-1886) e Frédéric Chopin (1810-1849), dois grandes poetas do piano e ícones máximos do romantismo dos teclados no século XIX. Isso sem falar de minha assumida predileção por Chopin, o que não é raro para quem, em algum momento da vida, já teve contato estreito com o piano.
Contudo, não há Chopin ou Liszt que resistam a um mau pianista.
Por isso, um outro fator que me atraiu para o recital foram as credenciais do jovem
intérprete. Conforme o currículo divulgado pelo museu, Rogério Tutti nasceu em Bauru e tem desenvolvido uma consistente
carreira internacional como pianista. Estudou com grandes mestres no Brasil e
no exterior, conquistou prêmios em vários concursos internacionais de piano, tocou
em países como Itália, Estados Unidos, Rússia, Cuba, Chile e Portugal, já apresentou
um programa de música erudita na Rede Vida, gravou um DVD e... ufa!... ainda
escreveu o método de ensino de piano em grupo para o Projeto Guri-SP. E se você
acha que isso é muito para um pianista tão jovem, o moço ainda é professor de
piano da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e doutorando em Musicologia
pela Universidade de São Paulo.
Rogério Tutti |
Pelas credenciais de Rogério, fui para o recital com a certeza
de ouvir um ótimo intérprete, e não me enganei. Ele encarou peças de altíssima
dificuldade técnica e saiu-se muito bem. A começar pelos seis Grandes
Estudos de Paganini, obra de Liszt
considerada um verdadeiro desafio para os pianistas e baseada em composições do
lendário violinista e compositor italiano que, dizia-se, tinha pacto com o
diabo dado seu virtuosismo nas cordas do violino.
Depois desse desafio, só mesmo uns Noturnos de Chopin para o pobre pianista respirar
um pouco! Rogério escolheu os Noturnos Op. 27 de números 1 e 2. Só
senti falta de um pouco mais de paixão em alguns trechos do Noturno nº 1 que
demandavam mais peso de mão, já que sempre senti Chopin mais intenso, mais "derramado", por assim dizer, e nunca tive pruridos em me soltar e me deixar
levar nos fortíssimos. Mas enfim, é uma questão de estilo e interpretação de cada um.
Meu querido Chopin em daguerreótipo de 1849, pouco antes de sua morte prematura. |
E quando achávamos
que o programa pararia por aí, tivemos uma grata surpresa: Rogério brindou o
público com os 'Três Movimentos de Petrouschka', do russo Igor Stravinsky (1882-1971), uma obra de dificílima execução baseada
no balé 'Petrouschka', composta pelo mesmo autor. Repleta de dissonâncias e
contrastes de intensidade, glissandos sem fim e saltos no teclado que exigem
verdadeira "pontaria" do pianista, a obra revelou-se mais um desafio vencido
com bravura por Rogério, que, calculo, deve ter perdido uns três quilos ao
final do recital (rs). Palmas para ele, que tem talento de sobra para dominar –
ou "domar"! – cada vez mais seu teclado. E que ele possa inspirar outros
jovens por esse Brasil afora a desenvolver seu talento e sensibilidade,
resgatando-os da avassaladora mediocridade musical que assola nosso país.
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