quarta-feira, 23 de outubro de 2013

O piano de Rogério Tutti e a alegria de descobrir vida nova no teclado.

Em um país onde predominam as nulidades musicais, algumas gritantemente óbvias e outras mais camufladas para os ouvidos incautos, é um alento constatar que ainda exista uma moçada com sensibilidade e talento para a música erudita. Isso ficou patente no último fim de semana, quando fui assistir ao recital do pianista Rogério Lourenço dos Santos Tutti, da série de recitais que o MUBE – Museu Brasileiro da Escultura promove aos domingos, sempre às 15h30.

Retrato de um jovem Franz Liszt
por Henri Lehmann (1840)
O que me atraiu de imediato foi o repertório divulgado na newsletter eletrônica do museu, composto por peças de Franz Liszt (1811-1886) e Frédéric Chopin (1810-1849), dois grandes poetas do piano e ícones máximos do romantismo dos teclados no século XIX. Isso sem falar de minha assumida predileção por Chopin, o que não é raro para quem, em algum momento da vida, já teve contato estreito com o piano.

Contudo, não há Chopin ou Liszt que resistam a um mau pianista. Por isso, um outro fator que me atraiu para o recital foram as credenciais do jovem intérprete. Conforme o currículo divulgado pelo museu, Rogério Tutti nasceu em Bauru e tem desenvolvido uma consistente carreira internacional como pianista. Estudou com grandes mestres no Brasil e no exterior, conquistou prêmios em vários concursos internacionais de piano, tocou em países como Itália, Estados Unidos, Rússia, Cuba, Chile e Portugal, já apresentou um programa de música erudita na Rede Vida, gravou um DVD e... ufa!... ainda escreveu o método de ensino de piano em grupo para o Projeto Guri-SP. E se você acha que isso é muito para um pianista tão jovem, o moço ainda é professor de piano da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e doutorando em Musicologia pela Universidade de São Paulo.

Rogério Tutti
Pelas credenciais de Rogério, fui para o recital com a certeza de ouvir um ótimo intérprete, e não me enganei. Ele encarou peças de altíssima dificuldade técnica e saiu-se muito bem. A começar pelos seis Grandes Estudos de Paganini, obra de Liszt considerada um verdadeiro desafio para os pianistas e baseada em composições do lendário violinista e compositor italiano que, dizia-se, tinha pacto com o diabo dado seu virtuosismo nas cordas do violino.

Depois desse desafio, só mesmo uns Noturnos de Chopin para o pobre pianista respirar um pouco! Rogério escolheu os Noturnos Op. 27 de números 1 e 2. Só senti falta de um pouco mais de paixão em alguns trechos do Noturno nº 1 que demandavam mais peso de mão, já que sempre senti Chopin mais intenso, mais "derramado", por assim dizer, e nunca tive pruridos em me soltar e me deixar levar nos fortíssimos. Mas enfim, é uma questão de estilo e interpretação de cada um.

Meu querido Chopin em daguerreótipo de 1849,
pouco antes de sua morte prematura.
E quando achávamos que o programa pararia por aí, tivemos uma grata surpresa: Rogério brindou o público com os 'Três Movimentos de Petrouschka', do russo Igor Stravinsky (1882-1971), uma obra de dificílima execução baseada no balé 'Petrouschka', composta pelo mesmo autor. Repleta de dissonâncias e contrastes de intensidade, glissandos sem fim e saltos no teclado que exigem verdadeira "pontaria" do pianista, a obra revelou-se mais um desafio vencido com bravura por Rogério, que, calculo, deve ter perdido uns três quilos ao final do recital (rs). Palmas para ele, que tem talento de sobra para dominar – ou "domar"! – cada vez mais seu teclado. E que ele possa inspirar outros jovens por esse Brasil afora a desenvolver seu talento e sensibilidade, resgatando-os da avassaladora mediocridade musical que assola nosso país.

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