segunda-feira, 22 de outubro de 2012

30ª Bienal de São Paulo. Se toda arte é expressão, será que toda expressão pode ser arte?

De uns seis anos para cá, cada vez que visito a Bienal de Arte de São Paulo fica mais veemente meu questionamento interno sobre se o que tenho visto por lá pode ser realmente chamado de arte. Tudo bem que essa discussão não é nova e que até já virou clichê com relação à arte contemporânea. Só que, agora, a questão está ainda mais gritante. Adquiriu uma dimensão tal, que se tornou inevitável, pelo menos para mim, postar-me diante de certas obras e me perguntar se elas são mesmo arte ou apenas expressões pessoais, manifestações de uma individualidade que deseja comunicar algo ao mundo. Sim, porque, atualmente, "tudo" virou arte. A multiplicidade de meios e de plataformas utilizadas para a produção artística é tão grande, que qualquer tipo expressão, teoricamente, pode ser denominada "arte" se alguém assim o determinar. E quem seria esse "alguém"? O próprio artista, para começar, e depois os galeristas, críticos de arte, marqueteiros, as mídias e todo o entourage que lhes dá aval. O fato é que se toda arte é expressão, nem toda expressão é arte. Simples assim.

Vamos, então, dar alguns exemplos com base no que vi na 30ª Bienal em duas visitas que fiz à exposição. Vamos começar pelo próprio nome desta edição: Iminência das Poéticas. O que significa? Significa que, aqui, é o processo criativo, o que houve por trás da produção da obra que realmente importa. E não a obra acabada, o produto final. É a intenção do artista que está valendo. Daí a profusão de vídeos ininteligíveis, instalações aparentemente confusas e objetos desconexos, pelos quais vi tantos visitantes passarem reto sem entender lhufas. É isso aí, a arte de hoje precisa de bula para ser compreendida. Porque se você não souber o que o artista quis dizer ou pretendeu com aquilo, pode esquecer. Você até pode achar uma obra esteticamente curiosa ou interessante, mas daí a entendê-la são outros quinhentos.

Frase pintada em uma parede do térreo da Bienal - Foto: Simone Catto

O problema é que, no meu caso, além da dificuldade de entender, à primeira vista, tantas obras dessa Bienal, quase nada despertou a atenção de meus sentidos. Entre as poucas obras que me atraíram, estavam os livros entrelaçados de Odires Mlászho (1960, Mandirituba, Brasil). Se o artista pretendeu transmitir uma mensagem com a obra, sinceramente não sei. Só sei que achei o visual interessante. É arte? Também não sei. Mas que é curioso, é.

Obra de Odires Mlászho - Foto: Simone Catto

As obras que me atraíram na sequência foram realizadas, sintomaticamente, por um artista hoje reconhecido: Arthur Bispo do Rosário (1909/11-89), figura cuja arte adquire uma dimensão mais fascinante por estar diretamente associada aos problemas psiquiátricos de seu autor.

Obra que faz parte do 'Inventário do Mundo', de Arthur Bispo do Rosário - Foto: Simone Catto

Nascido em Sergipe, Bispo do Rosário mudou-se para o Rio de Janeiro em 1925. Entre as profissões que exerceu, foi boxeador, marinheiro e trabalhou na Light. Após sofrer um surto psicótico em 1938, foi diagnosticado como esquizofrênico-paranoico e  transferido para a Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá. Começou seus trabalhos artísticos apenas no final da década de 60 e criou, até sua morte, cerca de 1.000 obras usando objetos do cotidiano que comprava ou trocava e sobras de materiais descartadas pelo próprio hospital onde estava internado, tais como pentes, botões, toalhas, roupas e ferramentas. Além disso, executou inúmeros bordados com material de uniformes e lençóis que desfiava. Bispo do Rosário foi descoberto em 1980 por Samuel Wainer Filho, que mostrou sua produção em uma reportagem do 'Fantástico', da Rede Globo. Na ocasião, afirmou ter recebido a missão de fazer um "inventário do mundo", para que, quando morresse, pudesse entregá-lo reconstruído a Deus. O irônico é que Bispo do Rosário não se considerava artista. Mas mais irônico, ainda, é imaginar que muitos que se consideram não o são.

Parte do "inventário" de Bispo do Rosário - Foto: Simone Catto

Pentes, gravatas... objetos do cotidiano que Bispo do Rosário pretendia mostrar a Deus quando morresse.
Foto: Simone Catto

Arthur Bispo do Rosário - Foto: Simone Catto

Arthur Bispo do Rosário - Foto: Simone Catto

Sim, Bispo do Rosário mostrou a Deus que na Terra também havia automóveis. Coitado se tivesse vivido para ver o trânsito de São Paulo! - Foto: Simone Catto

Um trabalho que achei interessantíssimo são as Photo Notes, do holandês Hans Eijkelom (1949). Hans passou as últimas duas décadas coletando fotos de pessoas anônimas, em vários países do mundo, que mostrassem o mesmo padrão visual no vestuário. O resultado foram dezenas de séries que ocupam uma parede inteira da Bienal. Há as séries de homens de camisas xadrezes, de senhoras com estampas de oncinha, crianças com casacos coloridos e por aí vai.

As séries de Hans Heijkelom: praticamente um estudo antropológico! - Foto: Simone Catto

Aqui predominavam os homens de camisa xadrez.
Foto: Simone Catto

E aqui, senhoras de casaco branco! - Foto: Simone Catto

Segundo relatou a Profª Dra. Silvia Meira, historiadora de arte da USP que nos acompanhou em uma das visitas e havia presenciado o artista em ação na Rua Oscar Freire, em São Paulo, sua tática para tirar as fotos é muito engraçada. Ele fica horas parado discretamente num lugar, com sua câmera, e tão logo avista um pedestre com um padrão de indumentária que lhe interesse, tira a foto disfarçadamente. Assim que vê outro pedestre vestido no mesmo padrão, faz outra foto, e assim por diante. As pessoas, naturalmente, não sabem que estão sendo fotografadas. O resultado é quase um "estudo antropológico" visual no qual o artista tenta nos mostrar como a globalização está massificando e manipulando os gostos de todos em qualquer lugar do mundo. Está aí a indumentária para comprovar!

Os Rolling Stones agradam aos "tios"! rs - Foto: Simone Catto

Em frente aos trabalhos de Hans está outra enorme coletânea de séries de fotos, agora em preto e branco, realizadas com princípio semelhante. Trata-se da mais importante obra do alemão August Sander (1876-1964), denominada People of the 20th Century. Sander fotografou indivíduos de diversas esferas sociais, desde camponeses até capitalistas, criando um catálogo tipológico do povo alemão com mais de seiscentas imagens. Lá vemos séries de artistas circenses, de mulheres, casais burgueses, velhos camponeses etc. Algumas fotos são realmente impressionantes, sobretudo ao notarmos a mesma expressão no olhar de pessoas com funções ou posições sociais semelhantes. É inquietante imaginar que, provavelmente, a grande maioria daquelas pessoas capturadas num instante pela lente do fotógrafo já se foi. Sem dúvida, um belo trabalho.

O apanhado de tipos alemães de August Sander: impressionante! - Foto: Richard Vannucci 

Uma obra que achei perturbadora é Urine Reading, do venezuelano Eduardo Gil (1973). O artista fez uma instalação de colchões usados, recolhidos de orfanatos da cidade de São Paulo, e chamou videntes para "ler" as histórias das crianças que dormiam neles. As previsões foram gravadas em áudio e podemos ouvi-las, ao aproximarmos nossos ouvidos de cada colchão. Gostaria de saber quem são esses videntes e se essas pessoas realmente tiveram o poder de captar o que se passava nas mentes e corações das pobres crianças. De qualquer modo, é triste nos deparar-nos com aqueles colchões que, com ou sem vozes, carregam histórias de abandono.

Eduardo Gil e os colchões das criancinhas em sua instalação: tão triste quanto perturbador - Foto: Simone Catto

A instalação de Eduardo Gil - Foto: Simone Catto

Outra obra que me deteve um pouco foi O Teste do Homem sob a Chuva, de Martín Legón (1978, Buenos Aires). Consta que esse teste realmente existe e costuma ser aplicado a candidatos a vagas de trabalho, que devem desenhar pessoas sob a chuva e têm características de sua personalidade reveladas por meio da análise dos traços por psicólogos. Centenas de desenhos de candidatos foram expostos na Bienal e analisados por três profissionais: um psiquiatra, um curador de arte contemporânea e um profissional de RH. É interessante analisar as diferenças entre um desenho e outro, mas... novamente, faço a pergunta: seria isso arte?

Um dos desenhos da instalação 'Teste de Homem sob a Chuva', de Martín Legón.
Foto: Simone Catto
 

Dê um pulo na Bienal e tire suas próprias conclusões!

Pavilhão da Bienal – Parque Ibirapuera – Portão 3 – Av. Pedro Álvares Cabral,  s/n. Terças, quintas, sábados, domingos e feriados: das 9h às 19h (entrada até as 18h). Quartas e sextas-feiras: das 9h às 22h (entrada até as 21h). Há estacionamento no parque com Zona Azul (cada folha vale por duas horas). Mais informações: www.bienal.org.br

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