sábado, 30 de janeiro de 2016

Viagens, vanguardas, guerra: Lasar Segall pré-tropical.

Em minha opinião, uma das sensações mais gostosas que existem é a de se entrar em um museu vazio. Foi exatamente o que fiz no sábado passado, colado ao feriado de aniversário de São Paulo, em que as ruas da cidade estavam particularmente tranquilas. Creio que muitas pessoas haviam viajado, e outras, provavelmente, ainda continuavam de férias. Foi assim que resolvi visitar o Museu Lasar Segall, dedicado ao artista lituano que adotou o Brasil como pátria, e tive o espaço praticamente só para mim, salvo alguns gatos pingados que apareceram por lá.


Logo à entrada do museu avistamos o café, num espaço muito agradável - Foto: Simone Catto

Idealizado em 1967 por Jenny Klabin Segall, viúva de Lasar Segall (1891-1957), o museu está instalado numa casa projetada em 1932 na rua Berta, Vila Mariana, pelo arquiteto de origem russa Gregori Warchavchik (1896-1972), o qual deixou seu rastro por outras obras no bairro. É o caso da casa modernista da rua Santa Cruz e uma fila de sobrados na própria rua Berta, em frente ao museu, projetadas todas no mesmo padrão como uma opção econômica de moradia para a classe média. Essas simpáticas casinhas estão lá até hoje e pergunto-me se seus moradores têm ideia da importância do arquiteto que as idealizou. Como todas exibem as mesmas janelas e o mesmo gradeado no andar superior, imagino que tenham sido tombadas e seus proprietários ou moradores não tenham autorização para alterar esses elementos da fachada. Juntas, essas residências conferem uma atmosfera tranquila à rua e formam o contraponto ideal para o museu em frente.

As residências projetadas pelo arquiteto modernista Gregori Warchavchik na rua Berta, Vila Mariana. Foto: Google Street View

Deixando um pouco as casinhas de lado, meu interesse era visitar a exposição 'Idas e Vindas – Segall e o Brasil', que apresenta um bom panorama da produção do artista. Lá conhecemos um pouco de sua obra inicial, influenciada pelo impressionismo, passando depois pelo expressionismo e pela fase brasileira, que ganha um destaque especial na mostra. Neste post, porém, o assunto é a obra de Lasar Segall antes de sua mudança para o Brasil. Vamos conhecer suas raízes judaico-lituanas, seu aprendizado, suas influências.

Nascido na cidade de Vilna, Lasar Segall era filho de um escriba do Torá. Viajou muito ao longo de toda a carreira, e os registros dessas experiências sempre marcaram seu trabalho. A I Guerra Mundial, sua cidade Natal, a família, a emigração, as florestas tropicais, as mazelas urbanas do Rio de Janeiro, nada escapou ao olhar atento do artista. Ainda muito jovem, em 1906, ele foi para Berlim, Alemanha, estudar na Academia de Belas Artes. Com apenas 15 anos de idade, ficou vivamente impressionado com o que viu:

"[...] Encontrei-me num mundo que me era completamente estranho; outra gente, outros costumes, outra língua. Parecia-me ter caído sobre um planeta desconhecido, tão diferente era esse mundo daquele em que eu me criara [...]".

Em 1910, o artista passou a frequentar a Academia de Belas Artes de Dresden, e aí se inicia um dos principais períodos de sua vida. Nessa década, Segall aperfeiçoou sua técnica, tomou contato com o movimento expressionista e conviveu com inúmeras personalidades do mundo das artes. No entanto, até os primeiros anos da década de 10, suas pinturas revelam nítidos traços impressionistas, estilo que o artista iria renegar mais tarde. Nas obras abaixo esses traços são bem marcantes.

Lasar Segall - 'Figura de Homem com Violino' (c.1909) - óleo s/ papelão
Foto: Simone Catto

Lasar Segall - 'Leitura' (c.1913) - óleo s/ papelão - Foto: Simone Catto

Pouco depois, em 1912, Segall viajou para a Holanda. Seu primeiro contato com o Brasil foi muito breve, no ano de 1913. Em fevereiro ele inaugurou uma exposição na rua São Bento nº 85, em São Paulo, e em junho realizou outra em Campinas. O artista chegou a dizer:

"Ao pensar hoje naquelas mostras, não posso deixar de lastimar bastante ter exposto por demais quadros e estudos de minha fase impressionista. Naquele tempo, porém, isto foi para mim motivo de satisfação, pois foram justamente esses os trabalhos adquiridos pelos amadores e colecionadores, não havendo necessidade de ressaltar o que minha situação este proveito material representava."

Será que nesse momento ele tinha ideia de que o Brasil futuramente se tornaria sua pátria? Não sabemos.

É curioso notar que, entre os anos 1900 e o início da década de 1910, o estilo das gravuras de Segall vai totalmente na contramão daquele de suas pinturas, tanto na técnica quanto na temática. Enquanto o impressionismo predominava nestas, as gravuras já flertavam abertamente com o expressionismo, como nos exemplos abaixo.

Lasar Segall - 'Vilna e Eu' (1910?) - litografia s/ papel - Foto: Simone Catto

Lasar Segall - 'Depois do Pogrom' (c.1912) - litografia s/ papel - Foto: Simone Catto

A pintura 'Aldeia Russa', no entanto, é uma exceção entre as pinturas: aponta para um caminho diametralmente oposto ao do impressionismo, com planos construídos em diagonais e uma forte geometrização onde predominam formas triangulares. É difícil imaginar que essa tela tenha saído das mesmas mãos do artista de 'Leitura', pintada na mesma época e mostrada mais acima.

Lasar Segall -  'Aldeia Russa' (1912) - óleo s/ tela - Foto: Simone Catto

Em 1914, Segall retornou à Academia de Belas Artes de Dresden, na Alemanha, porém foi expulso devido ao início da I Guerra Mundial e o conflito entre Alemanha e Rússia. No final de 1016, viajou para Vilna, encontrou sua cidade destruída pela Guerra e o choque que vivenciou exerceria forte impacto sobre sua obra. No mesmo ano retornou a Dresden, mas, a partir daí, as cores vivas de seu primeiro momento expressionista são substituídas por tons mais sóbrios, com forte influência do cubismo e da segunda fase do expressionismo alemão. Suas figuras adquiriram traços mais angulosos e uma caracterização psicológica aguda para representar o sofrimento humano.

Lasar Segall - 'Duas Cabeças', do álbum 'Uma Doce Criatura' (1917) - litografia s/ papel
Foto: Simone Catto

Lasar Segall - 'Eternos Caminhantes' (1919) - óleo s/ tela - Foto: Enciclopédia Itaú Cultural

Lasar Segall - 'Autorretrato II' (1919) - óleo s/ tela - Foto: Simone Catto
 
Foto: Simone Catto
  
Na obra abaixo, quase uma monocromia em tons castanhos e cinzentos, Segall retrata o desalento da pobreza com cores lúgubres e figuras tristonhas com deformações expressivas em suas cabeças angulosas e olhos enormes.

Lasar Segall - 'Interior de Pobreza II' (1921) - óleo s/ tela - Foto: Simone Catto

Lasar Segall - 'Meus Avós' (1921) - óleo s/ tela - Foto: Simone Catto

Em 1923, o artista finalmente muda-se para o Brasil. Mas isso é assunto para o próximo post! Clique aqui e confira. 

O MUSEU LASAR SEGALL está na Rua Berta, 111 - Vila Mariana. Tel.: (11) 2159-0400 - www.museulasarsegall.org.br. Abre de quarta a segunda das 11h às 19h, com entrada franca.

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