quinta-feira, 31 de maio de 2012

'Imagens do Inconsciente', no Ciclo Cinema e Psicanálise na Cinemateca. Uma viagem fascinante.

Domingo fiz um belíssimo mergulho no inconsciente. Não no inconsciente dentro de mim, mas em outro que estava bem perto - mais precisamente, na Cinemateca Brasileira, onde está sendo realizado o Ciclo Cinema e Psicanálise TRADIÇÃO-INVENÇÃO, que se iniciou no dia 27 de maio e vai até 7 de outubro.

Resultado de uma parceria entre a Cinemateca, a FEPAL – Federação Psicanalítica da América Latina, a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBP-SP) e o jornal Folha de São Paulo, o ciclo consiste na exibição de um filme a cada domingo, sempre às 18h, seguido de um debate com psiquiatras e psicanalistas.


Inicialmente, está sendo exibida a trilogia de documentários Imagens do Inconsciente, realizada entre 1983 e 1986 por Leon Hirszman, o premiado diretor de ‘Eles não usam Black Tie’ (1981), em versão restaurada pela própria Cinemateca. Cada filme aborda um caso clínico da grande psiquiatra Nise da Silveira, que, inspirada pelas teorias de Jung, revolucionou o tratamento de pacientes com sua abordagem humanista e a cura através da arte. Ao longo de anos, Dra. Nise coletou pinturas, desenhos e esculturas realizadas por seus pacientes, até fundar, em 1952, o Museu de Imagens do Inconsciente.  

A Cinemateca lotou no domingo de estreia. O primeiro filme exibido foi No Reino das Mães (16 mm, 55’), que retrata o longo processo terapêutico de Adelina Gomes, internada no hospício após estrangular a gata de estimação da família nos anos 30. O texto, em forma de narração, é da própria Dra. Nise, que explica a simbologia presente nas obras da paciente e relata a evolução do tratamento. Segundo a médica, o doente psiquiátrico, ao "representar em imagens as experiências internas que o transtornam... estará desde logo despotencializando essas vivências, pelo menos em parte, de suas fortes cargas energéticas, e tentando reorganizar sua psique dissociada". pobre Adelina viveu nove anos à base de remédios, totalmente isolada de outras pessoas, tornando-se arredia e agressiva. Até a Dra. Nise encontrá-la e tudo mudar.

Mas quem foi Adelina?

Mulher pobre, filha de camponeses, Adelina Gomes nasceu em 1916 na cidade de Campos, Rio de Janeiro, e faleceu em 1984. Fez apenas o curso primário e aprendeu vários trabalhos manuais numa escola profissional. Moça tímida e sem vaidade, era obediente aos pais e especialmente apegada à mãe. Aos 18 anos, apaixonou-se por um rapaz que não foi aceito por esta. Assim, foi-se tornando cada vez mais retraída, até estrangular o gato da família e ser internada, em 1937, no Centro Psiquiátrico D. Pedro II, no Engenho de Dentro (RJ). O diagnóstico: esquizofrenia.

Apesar de sua atitude agressiva e negativista, Adelina aceitou, com facilidade, realizar atividades artísticas no ateliê da Seção de Terapêutica Ocupacional do Centro Psiquiátrico Nacional, fundado pela Dra. Nise da Silveira em 1946. Inicialmente fez esculturas de barro, modelando figuras que impressionam por sua semelhança com imagens do período Neolítico. E suas pinturas, repletas de beleza e expressividade, mostram gatos, mães com o coração fora do peito e mulheres metamorfoseadas em flor. Além das pinturas, Adelina também confeccionou flores de papel. E assim, gradativamente, foi-se tornando uma pessoa dócil e simpática. Ao final da vida, havia produzido cerca de 17.500 obras.

Adelina Gomes - Óleo s/ tela (1953) - 38 X 46 cm
www.museuimagensdoinconsciente.org.br 

As mulheres-flores e outros arquétipos: a herança arcaica e o inconsciente coletivo de Jung na pintura de Adelina.

Segundo a Dra. Nise, "a pintura dos esquizofrênicos é muito rica em símbolos e imagens que condensam profundas significações e constituem uma linguagem arcaica de raízes universais". Ela ainda menciona Freud, para o qual "...a herança arcaica dos homens encerra não só predisposições, mas também traços de recordações vividas por nossos primeiros antepassados". Jung foi ainda além nessa descoberta das "profundas camadas psíquicas que constituem o lastro comum a todos os homens e onde nascem as raízes de todas as experiências internas fundamentais, das religiões, teorias científicas, concepções poéticas e filosóficas". Desta forma, a Dra. Nise explica que "a imagem arquetípica representa não somente alguma coisa que existiu num passado distante, mas também alguma coisa que existe agora..." Essas imagens arquetípicas surgiriam das regiões da psique denominadas, por Jung, de "inconsciente coletivo". Haveria, então, um "funcionamento psíquico inconsciente comum a todos os homens, fonte não só das pinturas simbólicas modernas, mas de toda produção similar do passado".

Uma das "mulheres-flores" de Adelina - guache s/ papel (1955) - 48 X 33 cm
www.museuimagensdoinconsciente.org.br 

E foi à luz dessa "herança arcaica" e da teoria dos arquétipos e do inconsciente coletivo, de Jung, que a dra. Nise analisou as mulheres-flores de Adelina associando-as ao mito grego de Dafne: o deus Apolo apaixonou-se pela ninfa Dafne, filha do Rio Ladão e da Mãe Terra. Ela se esquiva, mas o orgulhoso deus não aceita a recusa e persegue a ninfa. Fugindo sempre, Dafne busca então refúgio junto de sua mãe, a terra, que a acolhe e a metamorfoseia em vegetal. O mito de Dafne exemplifica a condição da filha que se identifica tão estreitamente com a mãe que seus próprios instintos não conseguem se desenvolver. E Adelina, inconscientemente, reviveu esse mito em seus desenhos. Vale lembrar que, quando mocinha, ela era muito próxima da mãe até o momento em que esta a decepcionou. Dra. Nice menciona que, em determinado dia, ao viver uma situação conflitiva no asilo, sua paciente simplesmente se rendeu e, sintomaticamente, afirmou: "Eu queria ser flor".

Adelina Gomes - óleo s/ tela (1953) - 33 X 41 cm
 www.museuimagensdoinconsciente.org.br

A própria Adelina cuidava e colhia, do jardim do hospital psiquiátrico, muitas das flores que pintava.

Adelina Gomes - óleo s/ tela (1952) - 33 X 41 cm
Reprodução fotográfica: Humberto Moraes Francheschi

A pintura abaixo denota uma interação maior da paciente com o ambiente contemporâneo da cidade que a rodeia.

Adelina Gomes - óleo s/ tela (1954) - 38 X 46 cm
Reprodução fotográfica: Humberto Moraes Francheschi

Ao referir-se às esculturas, a Dra. Nise observou: "As figuras de Adelina são mulheres corpulentas, majestosas. Caracterizam-se por um arcaísmo que logo faz pensar nas deusas-mãe da Idade da Pedra". Temos, portanto, um resgate de ícones ancestrais. Veja as esculturas das "mães" de Adelina e tire suas conclusões!

Não parece uma escultura do Neolítico?
www.museuimagensdoinconsciente.org.br
E o que dizer desta aqui, com chapéu de feiticeira?
www.museuimagensdoinconsciente.org.br
Após a internação de Adelina, sua família não foi mais mencionada no filme. Imagino que a própria mãe que um dia ela tanto havia amado a tenha abandonado, o que suscita dolorosos questionamentos. Quantos pacientes psiquiátricos, totalmente dopados e com os sentidos entorpecidos por medicamentos, não poderiam produzir respostas diferentes – e animadoras – se tivessem a oportunidade de sair de seus casulos através da interação com suas famílias e/ou outros seres humanos ou mesmo com seu 'self', através da arte, da forma como a Dra. Nise fez?

Para conhecer melhor o trabalho da Dra. Nise da Silveira, acesse http://www.museuimagensdoinconsciente.org.br/. Lá você encontra textos dessa médica maravilhosa e catálogos das exposições de pacientes, entre outros conteúdos interessantes. 

A exibição do filme No Reino das Mães foi seguida de um debate com o Dr. Carlos Byinton, brilhante psiquiatra e analista junguiano graduado pelo Instituto Jung, em Zurique, e fundador da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. A mediação foi de Cintia Buschinelli, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

Imagem emocionante: a Dra. Nise homenageia sua paciente
Adelina na Festa da Primavera do Museu de Imagens do
Inconsciente, na década de 70.
www.casadaspalmeiras.blogspot.com

Dr. Carlos falou algo que me tocou profundamente: que nós mesmos temos nossos "terapeutas internos". E disse isso ao se referir ao processo terapêutico de Adelina através do desenho e da pintura, nos quais ela exteriorizava – ou expulsava – seu caos interior e conseguia, assim, reorganizar sua psique por meio das imagens.

Em resumo: tanto o filme quanto o debate que o seguiu foram tão apaixonantes que não vou perder os próximos de jeito nenhum! 

Confira a programação dos dois próximos domingos, que exibirão os outros filmes da trilogia "Imagens do Inconsciente", sempre às 18h:
• 03/06 - "Em Busca do Espaço cotidiano" - debate com Rodney Taboada e Luiz Carlos Uchôa Junqueira, com mediação de Maria Elisa Pirozzi.
• 10/06 - "A Barca do Sol" - debate com Plínio Montagna e Nilde Parada Franc, com mediação de Inês Sucar.

As sinopses dos filmes e os currículos dos debatedores estão no site da Cinemateca: www.cinemateca.gov.br. O endereço é Largo Senador Raul Cardoso, 207 - V. Mariana - São Paulo. Tels: (11) 3512-6111 - ramal 215Ingressos: R$ 8,00 (inteira) e R$ 4,00 (meia). Grátis para maiores de 60 anos e estudantes do Ensino Fundamental e Médio de escolas públicas, mediante apresentação de documento.

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