quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Foto da aura. Do ocultismo ao exibicionismo.

Fonte: Artsy 

Quando a gente pensa que já viu de tudo no universo virtual, surge mais uma novidade. Suspeito que, daqui a pouco, a popular – e rasteira – e medonha - expressão "manda nudes" poderá ser substituída por "manda auras". Sim, porque é isso o que determinados indivíduos estão fazendo por aí: estão tirando fotos de sua aura, isto é, do campo energético que emana de si próprios, e publicando-as em redes sociais como o Instagram. Só não consigo entender que graça tem, para um ser humano, visualizar os supostos eflúvios energéticos de outras pessoas. Cor por cor, prefiro visualizar um pato-mandarim ou um pacote de jujubas. Há quem esteja até mesmo considerando essas fotos na Internet como uma espécie de arte. (Hã?)

Carlos Carlo Van de Roer - 'Terence Koh', 2008.
Cortesia do artista.

Imagens de auras no Instagram






















Voltando um pouco na história de como tudo isso começou. Em 1936, o crítico cultural Walter Benjamin postulou a perda da "aura" na arte, considerando aura como uma força mística originária da presença única de uma obra de arte no tempo e no espaço. Segundo Benjamin, em seu famoso ensaio "A Obra de Arte na Era da Reprodução Mecânica", a ascensão da fotografia e do cinema - mídias capazes de ser reproduzidas instantaneamente – teria privado as imagens de uma espécie de magia. Por outro lado, foram essas mesmas mídias, a fotografia e o cinema, que foram escolhidas para captar as nuances da "diversidade espiritual". Quando Benjamin redigiu seu tratado, a chamada "fotografia da aura", esforço para captar emanações psíquicas ou metafísicas, já existia há décadas.

Mais recentemente, a prática de capturar auras em filmes vem ganhando novo impulso. Nos últimos anos, o Radiant Human, um laboratório itinerante de fotografia de auras, aportou em importantes destinos culturais, incluindo o Museu de Arte de Aspen, nos EUA. Os convidados do casamento da atriz Zosia Mamet tiveram suas auras capturadas pelo laboratório, assim como a equipe da marca de lifestyle da atriz Gwyneth Paltrow, Goop. E sabe como é: se uma "celeb" faz, a parcela mais influenciável do mundo copia. É assim que tem funcionado.

Cortesia do laboratório Radiant Human

Em Chinatown, o icônico bairro de Nova York, uma fila para tirar fotografias de aura avança pelo interior da Magic Jewelry, uma lojinha localizada dentro de um minishopping. E uma vez que se tornou virtualmente "obrigatório" postar a foto da aura colorida nas mídias sociais, a busca da hashtag #auraphotography, no Instagram, gera impressionantes onze mil resultados. A atual popularidade da prática deve-se em parte à sua capacidade de supostamente "servir como um canal para aqueles que buscam um novo tipo de autoexploração", afirma Christina Lonsdale, artista por trás do laboratório Radiant Human. "As percepções podem girar com o clique de um obturador, iluminando nossos verdadeiros eus e lançando nova luz para o que estava lá o tempo todo". Então tá.

A noção de que uma câmera poderia emprestar ao fotógrafo um olho clarividente originou-se na era vitoriana. O ambiente era propício: avanços tecnológicos no campo da fotografia tornaram essa mídia relativamente acessível, enquanto que a Europa e a América do Norte eram varridas por uma onda de fenômenos sobrenaturais que suscitaram estudos e muita curiosidade em torno do assunto. Entre as crenças paranormais populares na era vitoriana estava a teoria do século XVIII de Franz Anton Mesmer de que todas as coisas animadas e inanimadas eram imbuídas de um "fluido vital".

Enquanto alguns fotógrafos ocultistas buscavam registrar formas fantasmagóricas, aqueles inspirados pelo Mesmerismo queriam mostrar os fluidos vitais inerentes a objetos e seres. Se um sensitivo podia visualizar essas energias invisíveis, argumentavam, por que uma câmera não poderia? Na década de 1860, o químico austríaco Karl Ludwig Freiherr von Reichenbach começou a fotografar objetos em completa escuridão, tentando capturar sua energia ou aquilo que denominava de "od". Sua obra marcou o início da fotografia da aura, derivada da fotografia ocultista vitoriana.

Foi a descoberta do raio-X de Wilhelm Conrad Röntgen, em 1895, que sustentou a fotografia da aura. Com novos equipamentos radiográficos, o invisível se tornaria visível e, portanto, ciência. Na França, pouco antes da virada do século, o médico Hippolyte Baraduc e o soldado Louis Darget utilizaram a tecnologia para documentar fluidos vitais pressionando os dedos ou a testa de indivíduos em placas fotográficas sensibilizadas. Baraduc e Darget acreditavam que as imagens eram a chave para captar a saúde, o humor ou até mesmo pensamentos das pessoas - um método predecessor da chamada "fotografia de pensamento" do psíquico Ted Serios. Essas formas fotográficas impressas adentraram o campo da fotografia abstrata, inspirando artistas como László Moholy-Nagy.

mistura de radiografia e ocultismo também pode ser vista em um curioso quadro de Marcel Duchamp, "Retrato do Dr. Dumouchel" (1910), que retrata um amigo de infância do artista, estudante de medicina e radiologia, com uma luz sobrenatural emanando de suas mãos. O brilho evoca os halos em torno das mãos em pinturas de santos - ou imagens de fluidos.

Marcel Duchamp - 'Retrato do Dr. Dumouchel', 1910 - Philadelphia Museum of Art

Enquanto isso, na Rússia, a experimentação com componentes de dispositivos radiográficos deu origem à eletrografia, a base da fotografia da aura atual. O cientista Jakob von Narkiewicz-Jodko acreditava que a eletricidade era imperativa para revelar as energias vitais de um indivíduo e seu processo fotográfico exigia uma bobina de indução, que ele usava para carregar eletricamente uma placa de metal. Quando um objeto ou parte do corpo era encostado em material fotossensível sobre a placa carregada, a descarga de corona (descarga elétrica produzida pela ionização de um fluido nas redondezas de um condutor) produzia uma silhueta brilhante.

Décadas mais tarde, em 1939, Semyon e Valentina Kirlian, um engenheiro elétrico russo e sua esposa bióloga, descobriram a fotografia da descarga de corona e a chamaram de "fotografia kirliana". Assim como Narkiewicz-Jodko, os Kirlians acreditavam que essas fotos poderiam fornecer informações psíquicas reveladoras. Naquela época, a fotografia colorida tornou-se viável comercialmente, e o impressionante espectro de cores da fotografia Kirlian desempenhou um papel importante em sua disseminação. As descobertas do casal, que só se tornaram públicas em 1958, atraíram a atenção do Ocidente quando o livro "Psychic Discoveries Behind the Iron Curtain" (Descobertas Psíquicas por trás da Cortina de Ferro) foi publicado em 1970.

Foto Kirlian de uma digital masculina, 1989
Sérgio Valle Duarte - Wikimedia Commons  
Um século de esforços para fotografar a aura resultou em uma câmera desajeitada inventada no cenário alternativo dos anos 1970 por um empresário californiano chamado Guy Coggins. Coggins, que tem formação em engenharia elétrica e perfil no LinkedIn, trouxe sua AuraCam 3000 para o mercado no início dos anos 80 e, mais tarde, lançou a AuraCam 6000, que ainda hoje é usada pelo laboratório  Radiant Human. Enquanto a fotografia de Kirlian criava impressões de contato, a AuraCam de Coggins adaptou os métodos Kirlian para produzir fotografias instantâneas, conectando uma câmera de filme instantâneo a duas placas de metal carregadas contendo sensores de biofeedback.

Para cada leitura, a pessoa coloca suas mãos - sempre a fonte de energia da aura - nas placas, que registram dados eletromagnéticos. Então um algoritmo traduz frequências específicas em matizes predeterminadas por Coggins e uma equipe de clarividentes. A primeira exposição captura a imagem da pessoa, enquanto que a segunda sobrepõe os matizes gerados. A névoa policromática, que difere de fotografia para fotografia, pretensamente representaria a aura do indivíduo e forneceria insights sobre as energias de seus chacras. Parte médium espiritualista e parte psicanalista, o fotógrafo faz uma interpretação dessa névoa. A AuraCam 6000 vem com o software "Aura Analyzer", que usa texto e arte ASCII (forma de expressão artística que usa apenas os caracteres disponíveis nas tabelas de código de páginas de computadores) para desempenharem o papel de intérpretes.

A última inovação de Coggins é o WinAura, um detector doméstico de aura (sim, isso ecziste!) e um pacote de software de fotografia que usa uma webcam de computador, um algoritmo proprietário e sensores de biofeedback. Embora a AuraCam 6000 - que se alinha melhor com o retorno da fotografia analógica e a popularidade das "experiências" artísticas - seja muito mais popular que o WinAura, a mais recente tecnologia de Coggins coloca a leitura de aura literalmente nas mãos das pessoas. Elas têm postado fotos de suas auras nas mídias sociais e estas imagens, por sua vez, se integram a milhares de outras na grade multicolorida do Instagram. 

Em contraste com suas antecessoras, a atual fotografia de aura se utiliza de uma rede virtual expansiva para supostamente capturar uma energia coletiva ou um humor. Seja como for, trata-se de uma moda que, provavelmente, vai passar com a mesma velocidade com que bobagens são compartilhadas nas redes sociais. Esperamos que permaneça, contudo, o trabalho científico e a análise séria dessas energias para detectar problemas físicos e psíquicos de seres humanos e, principalmente, ajudá-los a resolvê-los.

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