terça-feira, 10 de setembro de 2019

Lourmarin, o refúgio ressuscitado.

Dificilmente pisaremos em alguma cidade do sul da França que não tenha sido habitada por homens pré-históricos. Pouco restou daquele período, mas vestígios de épocas posteriores são mais abundantes, principalmente da Idade Média. Ao ter a oportunidade de dirigir recentemente pelas estradas da Provence, descobri lugarejos que guardam registros impressionantes daqueles tempos. Lourmarin está entre eles.

Chegando à cidade... - Foto: Simone Catto

Vista de Lourmarin - Foto: Simone Catto

Com pouco mais de mil de habitantes, o village de Lourmarin está situado aos pés da montanha do Lubéron, em meio aos vinhedos e oliveiras tão abundantes naquela região da França. Sabemos que o lugar é muito antigo porque escavações realizadas ali entre 1976 e 1982 revelaram um mobiliário do período neolítico e uma necrópole do final da Idade do Bronze, o que ficou comprovado pelo estudo dos ossos humanos e peças de cerâmica e bronze achados no local. Na ocasião, os arqueólogos encontraram catorze pulseiras de bronze.

Não tive a oportunidade de checar essas relíquias arqueológicas, mas, logo ao chegar à cidade, topei com a principal atração turística do lugar: o castelo de origens medievais que está de pé hoje graças à sensibilidade de um mecenas. Vale a pena contar sua história porque, nesse mundo onde o sentido do sagrado é tão volátil quanto as emoções humanas, é preciso valorizar quem reconhece a importância das permanências que valem a pena.

O castelo ao longe - Foto: Simone Catto

Mas antes vamos voltar um pouco no tempo. A parte mais antiga do castelo foi construída no século XV sobre ruínas do século XII. Até a Revolução Francesa, ele foi ocupado por diferentes proprietários. Porém, após a Revolução, os novos compradores estavam apenas interessados em cultivar as terras e negligenciaram a construção. Como consequência, no final do século XIX, o castelo estava quase em ruínas. A ala do período renascentista, que havia sido transformada em celeiro, servia, ao mesmo tempo, de abrigo para vagabundos e ciganos de passagem. Em 1920, o castelo iria a leilão para virar uma pedreira quando foi descoberto por nosso mecenas, um industrial de Lyon chamado Robert Laurent-Vibert, herdeiro da Hahn Petroleum Company. Estudioso, erudito e membro da Escola Francesa de Roma, Laurent-Vibert foi seduzido pela atmosfera ancestral do castelo e se comprometeu a restaurá-lo, o que fez de 1921 a 1923 com base em documentos antigos fornecidos por seu amigo Edouard Aude, curador da biblioteca Méjanes de Aix-en-Provence. Detalhe interessante: todos os artesãos empregados na restauração eram de Lourmarin. Isso mostra duas coisas. Primeira: que os poucos habitantes locais tinham um mínimo de capacitação. Segunda: que os gestores do vilarejo sabiam valorizar sua mão de obra.

Robert Laurent-Vibert faleceu em 1925 em um acidente de automóvel, mas, em 1923, havia deixado um testamento legando o castelo à Académie des Sciences, Agriculture, Arts et Belles Lettres d'Aix-en-Provence, que tinha como responsabilidade instituir uma fundação com seu nome. Assim foi criada a Fundação Lourmarin Robert Laurent-Vibert, reconhecida como de utilidade pública desde 1927 e administrada por um conselho composto inicialmente por amigos do industrial.

Até hoje a fundação tem objetivos exclusivamente culturais e, ao que parece, eles têm sido plenamente atendidos: no verão o castelo recebe jovens artistas em residência e promove concertos, conferências e exposições durante todo o ano, além de concursos culturais.

Fonte no pátio à entrada do castelo - Foto: Simone Catto

A primeira coisa que notei ao entrar no castelo é uma interessante escada em espiral que unifica seus três andares. Curiosidade: na época medieval, as escadas dos castelos eram usualmente construídas no sentido horário, para que os invasores que as subissem segurando as espadas com a mão direita encontrassem no pilar central um obstáculo a seus movimentos. E os defensores do castelo, ao contrário, desciam as escadas com o caminho livre do lado direito para empurrar os invasores com o próprio corpo. Essa é a lógica da escada do castelo de Lourmarin, embora a foto esteja ao contrário.

A escada torcida do castelo - Foto: site do Castelo de Lourmarin

Apenas a ala mobiliada renascentista, do século XVI, está aberta ao público. Os ambientes são enormes, mas não me pareceram lá muito aconchegantes. Assim que entrei no quarto abaixo, imaginei como devia ser frio no inverno. Brrrrr... Na realidade, a opulência decorativa começaria mais tarde, no período barroco. Versalhes está aí para provar.

Foto: Simone Catto

Sala de música - Foto: site do Castelo de Lourmarin

Na parte externa, esculpidas entre as ameias, há algumas gárgulas em formato de cães selvagens, caçadores de lobos. Orifícios na cabeça das esculturas permitiam o escoamento da água da chuva e, mais do que isso, na Idade Média, acreditava-se que essas carrancas afugentavam maus espíritos.

Os protetores do castelo - foto: site do Castelo de Lourmarin

Confesso, no entanto, que o que mais gostei de minha visita a Lourmarin foi explorar ruas do vilarejo. Em determinado momento, deparei com a agradável paisagem abaixo e vim a descobrir que se trata da igreja de Saint-André e Saint-Trophime, que foi construída no século XI, antes mesmo da construção da muralha da cidade, e mescla elementos românicos e góticos. A fonte antes da entrada confere um encanto especial ao cenário.

Igreja Saint-André e Saint-Trophime - Foto: Véronique Pagnier

A julgar pelo interior preservado da igreja, é evidente que ela foi restaurada por obra de algum benfeitor ou do próprio governo local. O retábulo que orna o magnífico altar-mor dourado, criado em fins do século XVII e início do século XVIII, é dedicado a Santo André.

Foto: Selma

A comuna também tem um velho campanário construído no século XVII sobre vestígios do antigo castelo feudal que ganhou um apelido curioso dos moradores: "caixa de sal" (boîte à sel), porque seu formato se assemelha ao dos antigos recipientes para sal que eram pendurados nas paredes das cozinhas. Minha mãe, aliás, teve um. Era vermelho com a tampa branca. Veja e compare... 

O campanário... Foto: Internet 

E abaixo, a caixa de sal que tantas francesas devem ter utilizado ao fazer suas ratatouilles. Realmente lembra o campanário! (rs).  

Foto: Internet

Mas sal não foi o único tempero que encontrei pelo caminho. Também vi graciosas residências com pitadas generosas de capricho e delicadeza.

Fofurices de Lourmarin - Foto: Simone Catto

Foto: Simone Catto

Foto: Simone Catto
E por falar em residências fofas, parece que há muita gente disposta a comprar imóveis em Lourmarin, mas nem todo mundo está a fim de vender, como deixa bem claro o aviso à entrada de um imóvel: "Informamos que este local não está para alugar e nem à venda. Obrigado". Como eu não estava ali para comprar casa, o tal aviso só conseguiu me divertir com o senso prático e a peremptoriedade dos franceses quando se trata de desestimular qualquer um que cogite perturbar sua paz.

Porém, há algo que os habitantes de Lourmarin vendem com prazer: arte. Não foram raros os ateliês de artistas e galerias que encontrei pelo caminho, o que me levou a deduzir que não faltam artistas por ali.  Sempre que topava com uma galeria ou ateliê, logo imaginava que, se estava aberto e funcionando, é porque devia haver compradores. Mas até agora me pergunto se aqueles artistas conseguem sobreviver apenas de sua arte ou se têm outros meios de subsistência... ainda não obtive essa resposta, mas já sei a quem perguntar. Difícil, mesmo, é sobreviver em Sampa após visitar lugares como esse. Mas em breve tem mais.

Foto: Simone Catto

Arte de qualidade! - Foto: Simone Catto

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