sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

O inacreditável caso de um tesouro encontrado por acaso

Fonte: Le Parisien

É por isso que invejo os europeus. Não bastasse habitarem o continente que concentra a maior quantidade de museus interessantes do mundo, ainda por cima vivem descobrindo obras de arte que "brotam" do nada, como por encanto. No último verão de lá, ou seja, em meados do ano passado, a grife Oscar de la Renta estava reformando um amplo imóvel em Paris – mais precisamente, à rua Marignan no. 4 - para instalar uma nova boutique de luxo. Desfiles de moda estavam programados para o local, no início de fevereiro, supondo-se que a reforma estivesse concluída. No entanto, durante os trabalhos, os operários descobriram uma grande pintura colada à parede, atrás de alguns painéis mal fixados. Especialistas analisaram a obra e concluíram tratar-se de uma pintura de um aluno de Charles Le Brun (1619-1690), primeiro pintor oficial da corte de Luís XIV, o Rei Sol. Ou seja: como se Paris já não tivesse obras de arte o suficiente, ainda acharam mais uma. 

"Nós estávamos no processo de raspagem. Removíamos os painéis de madeira no salão do andar superior e topamos com esse quadro", diz um dos integrantes da equipe da designer de interiores Nathalie Ryan. A reforma do imóvel parou no ato. Alex Bolen, diretor geral da Oscar de la Renta, foi informado da descoberta e rapidamente pegou um avião de Nova York a Paris para admirar a pintura de três séculos e meio. "Quando a encontramos, estava completamente suja", testemunha um responsável pelos trabalhos. Imediatamente, a direção da Oscar de La Renta contratou um especialista em conservação e restauração, Benoit Janson, que ao cabo de dois meses revelou a pintura do século XVII com as cores originais, desvendadas pouco a pouco.

Foto: Le Parisien

Uma equipe de restauradores e historiadores também entrou em ação para investigar essa pintura misteriosa de seis metros de comprimento e três de altura que avança uns trinta centímetros para além do piso do primeiro andar. Uma obra de dimensões excepcionais que poderia ter sido irremediavelmente apagada da história da arte se os trabalhos no local não tivessem sido realizados com cuidado. 

Um vaidoso embaixador de Luís XIV em Constantinopla

"Originalmente, este trabalho foi apresentado sobre um chassi. A tela foi então desmontada e enrolada antes de ser presa à parede", segundo Janson. "O trabalho foi realizado dentro das regras da arte, com boa aderência e aplicado na parede de forma plana. O verniz amarelou e ficou totalmente oxidado. As cores desapareceram", afirma. Apesar da ação do tempo, no entanto, é possível constatar a boa qualidade técnica e estética da pintura. 

Embora o canteiro de obras esteja fechado ao público e a marca Oscar de la Renta tenha tentado manter as informações sob sigilo, mesmo tendo relatado a descoberta ao The New York Times, os historiadores de arte estão ouriçados e visitando o local, entre certezas e dúvidas. No âmbito das certezas, está a descrição da obra: Charles Marie François Olier, Marquês de Nointel, embaixador de Luís XIV em Constantinopla, é retratado com sua escolta à frente de Jerusalém. Os cavaleiros, com o uniforme da época, entram na cidade. As paredes, a mesquita de Omar e o Muro das Lamentações são visíveis à distância. O estilo é orientalista, com vegetação exuberante.


A pintura inserida no contexto

O Marquês de Nointel é conhecido por ter encomendado quatro grandes telas narrando seus feitos no Oriente Médio, em 1673, e elas foram instaladas em quatro paredes de um salão cerimonial em Constantinopla. No retorno à França, ao final das funções diplomáticas, o marquês recobrou sua coleção de arte, sendo que algumas obras se encontram atualmente no Louvre. Consta que ele mesmo teria enrolado as quatro pinturas. Uma delas está no Museu de Atenas, a segunda é a que foi encontrada em Paris e as outras duas desapareceram. Segundo Guy Meyer, pesquisador e especialista em arte, essa descoberta "é um evento histórico, totalmente inusitado". Ele acredita que o prédio onde a obra foi encontrada tenha pertencido, em 1850, a um banqueiro chamado Mosselman, que a teria instalado em sua sala de estar. Não se sabe se o banqueiro ocultou a obra porque reformou o apartamento e desejou modernizar a decoração, ou se quis escondê-la voluntariamente por alguma razão. O fato é que a pintura ainda guarda seus segredos. 

Quem pintou? 

No momento, cogita-se quem seria o autor da obra. Sabemos que um artista chamado Jacques Carrey (1649-1726) fez ilustrações da vida do mundo otomano no rastro do Marquês de Nointel. Outros acreditam que o autor do trabalho seja, mais seguramente, o pintor Arnould de Vuez (1644-1720), próximo a Charles Le Brun na corte de Luís XIV. Sabe-se, inclusive, que Vuez participou de uma viagem de estudos a Constantinopla, organizada pelo Marquês de Nointel. Conservadores do Palácio de Versalhes (sim, todo mundo está se metendo...) preferem agir com cautela antes de proferir um veredito final. 

Naturalmente, o layout da futura loja Oscar de la Renta foi revisto e readequado. Segundo informações fornecidas pela própria grife, a pintura totalmente restaurada será posicionada no showroom de vestidos de noiva e de noite. No entanto, para desconsolo dos parisienses cultos e curiosos, a visitação não será assim fácil. Somente as endinheiradas clientes da boutique terão acesso à obra, embora arriscaria dizer que 99% delas não têm noção de seu valor – e não me refiro, aqui, ao valor monetário. Suspeito, mesmo, que a maioria sequer desviará o olhar dos vestidos por um minuto para apreciar a pintura. Espero estar errada.

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