quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

'Retrato de uma Jovem em Chamas': amor e delicadeza à francesa.

Não é de agora que olho com desconfiança as cotações atribuídas aos filmes de cinema nos guias de entretenimento de jornais e revistas. Já tive decepções com filmes muito bem cotados, como o russo 'Uma Mulher Alta', visto recentemente, assim como tive gratas surpresas com filmes subestimados em certos guias brasileiros, como 'Retrato de uma Jovem em Chamas', que ganhou o prêmio de roteiro do Festival de Cannes 2019 e está atualmente em cartaz em São Paulo.

Senti vontade de assistir a esse filme por várias razões. Para começar, é uma produção francesa, o que, de saída, já ganha alguns pontos comigo. Segundo, aborda arte e artistas. Terceiro, o "artista" em questão é uma mulher. Quarto, narra uma história de amor entre artista e modelo. Quinta, essa história de amor está ambientada no século XVIII, o que a torna ainda mais atraente para alguém que tem uma queda por filmes de época. É natural que, com tantos pontos positivos, eu não poderia perder. E não me arrependi.

O filme começa com uma cena aflitiva da jovem artista parisiense Marianne (Noémie Merlant) sendo levada num barco frágil, em um mar agitado, até o local onde deve executar um retrato sob encomenda. A julgar pelas falésias da paisagem, parece que o filme se passa em Étretat, na região da Bretanha. Carregando suas coisas, sua tela e seu material de pintura, Marianne sobe uma escarpa com dificuldade e chega a uma mansão isolada em um lugar que parece ser uma ilha. Lá encontra a mulher que a contratou, uma condessa (Valeria Golino) que deseja enviar o retrato de sua jovem filha Héloïse (Adèle Haenel) a um nobre milanês a quem ela está prometida em casamento. A filha da condessa, que não quer saber de casar com o desconhecido, havia se recusado a posar anteriormente para outros pintores contratados para esse fim. Por isso, a mãe pede à artista para manter segredo sobre o real motivo de estar ali e, em vez disso, se passar por uma dama de companhia contratada para acompanhar Héloïse nos passeios. Nos momentos em que está ao lado desta, portanto, Marianne tenta captar as feições, os detalhes, o caráter e, principalmente, a essência da moça para depois transformá-los secretamente em pintura ao se retirar, à noite, para seu quarto.

Noémie Merlant e Adèle Haenel, as duas excelentes atrizes que interpretam Heloïse e a pintora Marianne, respectivamente.

A paisagem escarpada lembra as falésias de Étretat.

Essa convivência estreita entre as jovens acaba alimentando uma intimidade e um sentimento que vai se desvelando sutilmente por meio de nuances, olhares, pequenos gestos. As duas atrizes, extremamente expressivas, conseguem transmitir, com um simples olhar, toda a intensidade de um amor que se insinua pouco a pouco e vai crescendo até o ponto em que as próprias moças se deem conta do que acontece e se permitem dar vazão a ele. Delicadeza é a palavra-chave. Não há cenas de sexo que mostrem demais ou que durem mais que o necessário. Aliás, quase não há situações de sexo. A magnitude da afeição que une artista e retratada não precisa disso para ficar evidente. O nível é outro. A extensão do amor de ambas revela-se em detalhes sutis e códigos visuais inseridos na narrativa. Trata-se de um filme bem realizado e não é à toa que o roteiro tenha sido premiado em Cannes. A fotografia também é bonita. Possivelmente toda essa delicadeza se justifique ao sabermos que a diretora, a francesa Céline Sciamma, é a mesma realizadora do sensível e excelente 'Tomboy', de 2011, também resenhado no blog.

Em tempos de insensibilidade, indelicadeza e amores brutos, é sempre bom testemunhar a realização de um amor genuíno. Mesmo que seja em outro século. Mesmo que seja em ficção.

'Retrato de uma Jovem em Chamas' está em cartaz no Itaú Augusta, no Itaú Frei Caneca e no Petra Belas Artes, em São Paulo. Se você gosta de bom cinema, não perca.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Restaurante Gula Gula SP, para matar a fome do corpo e do espírito.

Quando, anos atrás, eu trabalhava na Av. Paulista e saía para almoçar, passava às vezes na calçada de uma linda mansão na esquina da Al. Santos com a Rua Padre João Manoel. Os muros eram baixos e dava para ver o belo jardim ao redor da casa. Umas duas vezes cheguei a avistar uma velhinha lá dentro e, se não me engano, também alguns brinquedos de criança. Eu ficava encantada com aquela ilha de beleza e tranquilidade em meio a um mar de arranha-céus comerciais e a apenas uma quadra da avenida mais famosa de São Paulo. Sempre me perguntava quem devia morar ali e como seria o interior da residência.

A casa que havia me encantado há mais de dez anos, tombada e restaurada
Foto: Ligia Skowronski/Divulgação)

Finalmente descobri. O casarão pertenceu a um homem chamado Francisco de Paula Vicente de Azevedo, conhecido como Barão de Bocaina, embora não haja evidências de que ele tenha morado lá. Sabe-se, contudo, que um de seus filhos, que tinha o mesmo nome, mas não o título de nobreza, residiu ali com a esposa, Cecília Galvão Vicente de Azevedo, desde o ano de seu casamento e inauguração do imóvel, 1911, até sua morte em 1976. Graduado pela Faculdade de Direito da USP, o Dr. Francisco filho era um grande produtor rural e industrial, tendo sido um dos pioneiros da indústria de papel no Brasil. O casal teve uma única filha, Maria Cecília Vicente de Azevedo, que também morou a vida inteira na mansão. A família acompanhou toda a transformação urbana da região desde a época dos suntuosos casarões pertencentes à burguesia industrial paulista até o surgimento dos arranha-céus que os substituíram. Aliás, imagino o desgosto que a distinta família deve ter sentido com o surgimento daqueles impessoais, horrendos e breguíssimos prédios espelhados das grandes corporações que acabaram com a elegância do entorno.    

Dona Cecília faleceu em 1974 e o marido industrial se foi dois anos depois. A filha, Maria Cecília, respeitou o desejo dos pais e manteve o casarão, resistindo bravamente à feroz especulação imobiliária do bairro. Nele viveu até 2007, quando faleceu aos 93 anos de idade. Certamente era ela a velhinha fofa que eu via no jardim na hora do almoço.

Como Maria Cecília nunca se casou e nem teve filhos, seus bens foram divididos entre familiares e consta que o casarão havia sido vendido a uma dessas odiosas incorporadoras que saem por aí derrubando imóveis históricos e arrasando a memória das cidades. Felizmente, parece que a "Nossa-Senhora-Protetora-do-Patrimônio-Arquitetônico" interveio e uma certa Sociedade dos Amigos e Moradores do Bairro de Cerqueira César (Samorc) agiu a tempo, solicitando o tombamento do imóvel. Se a casa foi tombada graças à ação da Samorc ainda não sei, mas o fato é que ela não só foi tombada em 2012 como está lá, cuidadosamente restaurada e lindamente preservada com seu jardim, abrigando atualmente o restaurante Gula Gula, inaugurado há cerca de três meses.

O casarão no intervalo entre o falecimento de Maria Cecília e a restauração - Foto: São Paulo Antiga

O casarão com seu belo jardim, agora sede do restaurante Gula Gula em São Paulo - Foto: Simone Catto

É aí que eu queria chegar. Tão logo o restaurante foi inaugurado, não perdi tempo e corri para conhecer a casa. Gostei muito do que vi e também do que comi. Tanto é que, nesse curto período, jantei lá mais de uma vez. O pé-direito alto, os janelões envidraçados que dão para o lindo jardim onde eu via a velhinha, os pisos de mármore e ornamentos de madeira dão um vislumbre do que aquele espaço deve ter sido no tempo em que abrigou a próspera família. O ambiente é ao mesmo tempo bonito e acolhedor, com mesas nos salões internos e outras dispostas no quintal.  

Foto: Simone Catto

Alguns dos ambientes internos com pisos de mármore e madeira  - Foto: Simone Catto

Foto: Simone Catto

E aqui, um ângulo feliz com iluminação feérica - Foto: Divulgação

O restaurante Gula Gula pertence a uma tradicional rede de restaurantes do Rio de Janeiro que se caracteriza por oferecer um cardápio vasto e despretensioso a preços justos. A escolha do local para se instalar em São Paulo não poderia ter sido mais feliz. Em minha primeira visita, peguei uma mesa lá fora. Verão, noite quente, estava uma delícia comer olhando para as árvores do jardim.

A vista de minha mesa na primeira visita - Foto: Simone Catto

Na segunda vez em que lá estive, quis experimentar uma mesa em um dos salões internos. Tudo muito bonito, mas com um problema que pode estragar qualquer refeição: o ar condicionado estava absurdamente gelado e desconfortável, como se os proprietários esquecessem que estavam em São Paulo, e não no Rio de Janeiro. E olhe que a noite estava quente! Não entendo essa mania que alguns restaurantes têm de ligar o ar condicionado no máximo, sobretudo quando estão instalados em ambientes arejados e cercados por áreas verdes. Mas agora já sei: mesa, lá, só no jardim.

Vista de minha mesa no salão: quem vê o clima de aconchego não imagina o ar condicionado congelante!
Foto: Simone Catto

No salão ao lado, uma grande mesa com uma alegre, porém educada reunião de família - Foto: Simone Catto

Agora vamos falar dos comes e bebes. Na primeira visita, quando sentei lá fora, tomei um Aperol Spritz e pedi o filé de frango com molho funghi (R$ 31) acompanhado de purê de banana da terra com leite de coco e ervas (R$ 12). Não, não fotografei o prato. Já comentei em outro post que, de uns tempos para cá, tenho sido um pouco reticente em fotografar pratos de comida nos restaurantes. O que posso dizer é que o frango estava ótimo com seu molho de funghi e o purê estava maravilhoso, embora eu seja suspeita porque normalmente gosto de receitas à base de banana. Mas o fato é que estava muito bom, mesmo.

Em meu segundo jantar na casa, tomei um vinho branco do sul da Itália chamado Barone Montalto Acquerello - Pinot Grigio, super-refrescante e com uns toquezinhos de frutas. Foi perfeito para acompanhar tanto a entrada quanto o prato principal. Primeiro compartilhei uma caprese de burrata com tomatinhos confit e pão italiano (R$ 36). Depois, fui de picadinho vegetariano - mix de cogumelos, purê de batata doce e couve frita por cima (R$ 43). Uma receita leve e, ao mesmo tempo, com "sustância". Delícia. Achei na Internet a foto exata do prato.

Vinho bom, recomendo.

Este é o picadinho vegetariano, delicioso - Foto: Ligia Skowronski/Divulgação

A única coisa que precisa melhorar na casa é o serviço, meio lento e atrapalhado. Em minha segunda visita, o vinho demorou para chegar à mesa, e o garçom, um rapaz muito jovem, apareceu com o vinho errado – eu havia pedido um branco e ele levou um tinto. No entanto, todos os atendentes foram educados e acredito que um bom treinamento resolva os problemas.

Um dos fatores que tornam a casa ainda mais convidativa, além do ambiente, é o fato de funcionar o dia inteiro, ou seja, tem também café da manhã, almoço e lanche da tarde. Um porto seguro que salva, com dignidade, os esfomeados a qualquer hora do dia.

Se você mora ou está de passagem por São Paulo, vale a pena saborear uma refeição naquele cenário acolhedor com mais de um século de história. O GULA GULA fica na R. Padre João Manoel, 109, esquina com Al. Santos – Jardim Paulista. Informações: 11 4420-2140 | www.gulagula.com.br

domingo, 26 de janeiro de 2020

A história de Kafka e a boneca perdida.

Lidar com as perdas é sempre algo complicado para todos nós, mas, para algumas pessoas, pode significar a diferença entre a vida e a morte – mesmo que seja a morte em vida. A esse respeito, uma psicoterapeuta chamada May Benatar publicou, no Huffington Post, um relato muito inspirador sobre um fato que teria ocorrido com o escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924), autor de "A Metamorfose" e o "Processo", entre outras obras. Segue a tradução: 

"Diz a história que, um dia, o escritor Franz Kafka encontrou uma menininha no parque onde costumava caminhar diariamente. Ela estava chorando, desolada, porque havia perdido sua boneca. Kafka se ofereceu para ajudá-la a procurar e marcou um encontro com a menina no dia seguinte, no mesmo lugar. Incapaz de encontrar o brinquedo, ele escreveu uma carta como se ela tivesse sido redigida pela própria boneca e a leu para a garotinha quando se encontraram: "Por favor, não se lamente por mim, parti numa viagem para ver o mundo. Escreverei a você sobre minhas aventuras". Esse foi o início de muitas cartas. Quando ele e a menininha se encontravam, ele lia as cartas redigidas cuidadosamente com as aventuras imaginadas da amada boneca. A garotinha se confortava. Quando os encontros chegaram ao fim, Kafka presenteou a menina com outra boneca. Como a nova boneca era diferente da original, uma carta anexa explicava: "minhas viagens me transformaram…". Muitos anos depois, a garota, agora crescida, encontrou uma carta enfiada numa abertura escondida da querida boneca substituta. Em resumo, dizia: "Tudo o que você ama, você eventualmente perderá, mas, no fim, o amor retornará sob uma forma diferente".

Existem muitas versões para a história de Kafka e da boneca. Ouvi essa de Tara Brach, psicóloga e professora de meditação budista em Washington DC.

Somente depois de muitas narrativas sou capaz de relatá-la sem chorar. E descobri que, quando a conto a outras pessoas, jovens ou velhas, meu interlocutor fica invariavelmente comovido, às vezes explodindo em lágrimas.

Quando procurei a confirmação da história na Internet, encontrei uma fonte que se referia a ela como uma "história de cura". Parece correto. Se ela realmente aconteceu, é real, verdadeira e fornece um modelo para a cura.

Para mim, há duas lições sábias nessa história: luto e perda são onipresentes, mesmo para uma criança pequena. E o caminho para a cura é procurar como o amor retorna de outra forma.

Acho que há vantagens em ver o luto como onipresente, como parte inevitável da experiência de ser humano. O luto é muito mais do que a perda de um ente querido, embora essa talvez seja sua manifestação mais profunda. A perda da boneca na história é devastadora para a menina e é isso que estimula Kafka a criar as maravilhosas histórias de viagens e aventuras. Ele percebeu a profundidade de sua dor. Diz-se que ele dedicou tanto tempo e cuidado à criação dessas cartas para a menininha quanto a outros escritos.
Manter a perspectiva da universalidade da perda nos ajuda a lidar com a vergonha e a solidão. Se uma profunda reação de luto com um divórcio, ou a saída dos filhos de casa, uma gravidez abortada, o desemprego, a aposentadoria, as limitações dos filhos, o envelhecimento ou a perda de saúde é algo que compartilhamos com nossos semelhantes, ficamos menos solitários. E não é preciso ter vergonha de nos sentirmos assim porque a vergonha é legado do isolamento.

E quanto ao amor voltar de uma forma diferente? Acredito que as cartas de Kafka constituíram um verdadeiro presente de amor, e o que acabou por curar a garotinha foi o relacionamento de ambos, que funcionou como um verdadeiro bálsamo. Alguém se importou o suficiente com sua dor a ponto de escrever as encantadoras histórias das aventuras da boneca perdida. Um grande escritor, nesse sentido.

É confortante manter a convicção de que o amor retornará e é nossa missão reconhecê-lo sob sua nova forma.

Publicado no Huffington em 10/3/2011 - por May Benatar, psicoterapeuta e escritora.

Clique aqui para conferir o original em inglês.

domingo, 19 de janeiro de 2020

O Aperol mais caro de minha vida.

Ontem, ao jantar com uma amiga, ela contou que um conhecido, em visita ao Museu de História Natural de Londres, sentiu fome em determinado momento e resolveu comer uma salada de frutas na lanchonete da instituição. Comeu bem feliz suas frutinhas, sem sequer verificar o preço, repondo as energias para continuar o passeio. Na hora de pagar, o susto: descobriu que a tal salada de frutas custava a bagatela de doze libras, o que equivale, no câmbio atual, a quase sessenta e cinco reais. Digerir esse preço é como engolir as frutas com caroço e tudo, eu diria. Confesso que não estou a par do atual custo de vida em Londres, mas acredito que, até para um londrino, pagar doze libras por uma salada de frutas seja too much, oh my Lord. Ao retornar, o moço contou o episódio à minha amiga, indignado, comentando que aquela havia sido a salada de frutas mais cara que havia consumido na vida.

Comigo aconteceu algo parecido, e nem precisei ir a Londres para isso. Foi bem aqui, em um dos pontos mais amados de São Paulo. Num sábado desses, um grupo de amigas me convidou para admirar o pôr do sol e tomar alguma coisa no bar Obelisco, localizado na cobertura do prédio onde se situa o MAC, Museu de Arte Contemporânea da USP. Eu já conhecia o Vista Café, localizado no mezanino mais abaixo, mas não o bar, de modo que achei a oportunidade ótima para conhecê-lo, além do que iria encontrar gente com a qual gosto de conversar. Quem frequenta o museu sabe que o topo do edifício, mais precisamente o terraço do oitavo andar, oferece uma vista muito bonita da Av. Pedro Álvares Cabral e do Obelisco do Ibirapuera. Muitas pessoas sobem até lá apenas para tirar fotos e "turistar", sem precisarem necessariamente entrar no bar ou no restaurante Vista, contíguo a ele.

Tirei essa foto logo que cheguei - Foto: Simone Catto

Crepúsculo... - Foto: Simone Catto

Chegamos pouco depois das 18h, quando o sol já estava se pondo e o lusco-fusco começava a tomar conta do céu com uma bela luz. Algumas amigas chegaram ao mesmo tempo que eu. Beijos, fotos, risadas, mais beijos, mais fotos. Logo à entrada do bar ficam os caixas, com umas três atendentes jovens e bem maquiadas. De cara, já deixamos setenta reais. Só para entrar. Eu achava que o valor incluiria algum drink, mas não. Paga-se esse valor apenas para adentrar o recinto, inclusive a título de couvert artístico, já que – descobri depois - uma banda se apresentaria no salão interno do bar.

Vista da Av. Pedro Álvares Cabral - Foto: Simone Catto

Esta foi a Renata que tirou. Um arraso.

Na hora de sentar, queríamos uma mesa no terraço externo, naturalmente. Chegamos cedo inclusive para isso. Além de fazer calor, não havia sentido algum ir a um lugar daqueles e não apreciar a vista, até porque no salão interno, envidraçado, o ar condicionado gritava alto. Estranhamente, a quase totalidade das mesas do terraço já estava ocupada, algo incompreensível para um lugar que havia aberto às 18h, ou seja, pouco antes de chegarmos. Várias mesas estavam reservadas, mas um atendente nos conseguiu uma mesa externa após cair a reserva de alguém que foi pra Portugal. O ambiente do terraço é muito bonito e a vista, agradável.

O bar em um momento "pré-muvuca" - Foto: Simone Catto

Nossa mesa - Foto: Simone Catto

Sentamos, começamos a conversar, tiramos mais fotos, conversamos mais, pedimos bebidas. Todas as amigas, invariavelmente, seguiram a sugestão de uma delas, habituée do lugar, que costuma tomar um drink chamado Jos Mule, à base de "cachaça Jos, suco de limão, xarope de açúcar e espuma de gengibre", conforme descrição do cardápio. Como prefiro drinks menos doces, fui do contra e pedi um Aperol Spritz, que nunca me decepciona. Só para constar: o preço do tal Jos Mule passava dos R$ 40,00. Meu Aperol custou exatos R$ 32,00, faixa de preço normalmente cobrada pela bebida em São Paulo.

Mais duas pessoas chegariam para brindar... - Foto: garçom gentil

O Jos Mule ao lado de meu Aperol Spritz, em foto artística da Eliane.

Por várias vezes nos levantamos para apreciar a vista noturna que lembra uma pintura de Gregório Gruber. Sim, vista de cima, a cidade de São Paulo pode ser muito poética.

E fez-se a noite... - Foto: Simone Catto

O Obelisco do Ibirapuera, ao fundo... - Foto: Simone Catto

À medida que o tempo passava, porém, o bar começava a lotar mais e mais e os decibéis subiam. Às oito horas da noite já não dava mais para manter um diálogo razoável. A faixa etária dos clientes, que ao chegarmos era variada, começava a diminuir à medida que o ruído aumentava. A música do bar, lá dentro, ecoava pelo terraço onde estávamos, provavelmente por meio de alto-falantes que não conseguia visualizar. Nem adianta perguntar que tipo de música tocava: o que chegava a meus ouvidos era uma massa sonora amorfa e ininteligível. 

A vista é bonita, já o barulho... - Foto: Simone Catto

Percebi, enfim, que o bar transforma-se numa espécie de "baladinha", algo de que fujo como o capiroto foge da cruz. Para me fazer ouvir era preciso gritar, e conversar tornou-se inviável. Não deu sequer vontade de pedir algo para comer, porque saborear um petisco num bar ou fazer uma refeição, para mim, são experiências que requerem certa tranquilidade. E se estou na companhia de pessoas de quem gosto, comer vira um ato social, um momento de conversar e compartilhar. Mas quando não dá para trocar ideias, é hora de trocar de lugar. E foi o que fiz, convicta de que esse bar não é para meu perfil. Valeu para conhecer, mas não pretendo voltar. Fui a segunda do grupo a sair, mas não saí sozinha. Parei no Rancho da Empada, não muito longe dali, e matei minha fome em boa companhia.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Ano 2020, cena 2, take 1.

Um dos (poucos) itens de minha lista de resoluções para o ano novo é ir mais ao cinema. Felizmente, comecei a colocar esse roteiro em prática antes mesmo de 2019 terminar. 'Dor e Glória', 'Um Dia de Chuva em Nova York', 'Era uma Vez em... Hollywood', 'Parasita' e 'Synonymes' são alguns dos filmes a que tive oportunidade de assistir nos últimos meses do ano passado e no início deste.

Mas vamos lá. De todos os filmes que mencionei, Parasita é de longe o melhor. Imperdível, filmaço. Aliás, devo dizer que há tempos não assistia a um filme TÃO bom. O roteiro é fantástico, a direção idem e os atores dão um verdadeiro show. Portanto, se você ainda não viu, corra para o cinema. O suspense coreano está em cartaz em várias salas de São Paulo, até porque foi vencedor da Palma de Ouro em Cannes e está concorrendo a várias categorias do Oscar: Melhor Filme, Direção, Roteiro Original, Direção de Arte, Edição e Melhor Filme Internacional. Não perca de jeito nenhum.

Os excelentes atores coreanos de 'Parasita': o jovem Woo-sik Choi, Kang-ho Song, Hye-jin Jang e So-dam Park.

Quanto ao filme do Tarantino, Era uma vez em... Hollywood, achei-o bom, mas não excepcional. Valeu pelo elenco, que inclui um Leonardo DiCaprio soberbo e um Brad Pitt gatíssimo do alto de seus cinquenta e não sei quantos anos. Santo DNA. O filme valeu, também, pela ótima reconstituição do ano de 1969, vaticinando o desvario lisérgico que estava por vir. A estética da época, que por si só já acho bem interessante, foi reproduzida com fidelidade e tons vivos. É divertido ver como se comportavam aquelas pessoas, as músicas que ouviam, o que vestiam e faziam. O filme foi indicado a várias categorias do Oscar: Melhor Filme, Direção, Ator (DiCaprio), Roteiro Original, Ator Coadjuvante (Brad Pitt), Direção de Arte, Fotografia, Figurino, Edição de Som e Mixagem de Som. Acredito que levará algum.

Brad Pitt, que será bonito até os cem anos, e Leonardo DiCaprio, magnífico, em 'Era uma vez em... Hollywood'.

Um Dia de Chuva em Nova York é um Woody Allen menor. Bonitinho, mas beeeem sem-gracinha: funcionaria em uma Sessão da Tarde, e só. Valeu para conferir, mas o diretor de 'Manhattan', 'Vicky Cristina Barcelona' e 'Meia-Noite em Paris' já fez melhor. 

Dor e Glória, de Pedro Almodóvar, é um belo filme. Dramático, porém sem os transbordamentos kitsch típicos do diretor. Não que eu não goste de sua estética hiperbólica e sua cores primárias, muito pelo contrário, pois acho Almodóvar o máximo e essa é sua marca registrada. É que nesse filme ele está mais contido, mesmo. Antonio Banderas arrasa na interpretação de um cineasta em declínio atormentado por uma crise existencial. Não por acaso, concorre ao Oscar de Melhor Ator. E o filme, merecidamente, foi indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.

E por fim, Synonymes está muito bem classificado pela crítica especializada, tendo inclusive faturado o Urso de Ouro do Festival de Berlim. Para mim, porém, esse urso devia estar míope, porque o filme foi uma completa decepção. A história do imigrante israelense que chega a Paris e tenta esconder sua nacionalidade foi subaproveitada, mal explorada. Uma pena, porque uma ideia a princípio tão boa poderia ter rendido um roteiro infinitamente melhor. Estou até agora me perguntando o que o pessoal de Berlim viu de tão especial nesse filme. Será Paris? 

Ah, faço questão de comentar também sobre um filme que, embora ainda não tenha passado nas telonas, tem gerado um certo "buxixo". Estou falando de História de um Casamento, que se transformou em um queridinho do público da Netflix. Faz sentido. Eu, particularmente, achei o filme muito bom, belo, sensível e ao mesmo tempo amargo ao mostrar como o ser humano pode desperdiçar felicidade por sua absoluta incapacidade – ou inabilidade – de se comunicar. Dói constatar quantos relacionamentos, amorosos ou não, acabam como aquele retratado na história, tragados pelo vácuo insidioso do mutismo e da incomunicabilidade. Se você ainda não assistiu, prepare o lenço e assista. E preste atenção no protagonista, Adam Driver, um tremendo ator que também está concorrendo ao Oscar, assim como a ótima Scarlett Johansson, indicada ao Oscar de Melhor Atriz.

Confesso que não tenho a mínima vontade de assistir a 'Dois Papas', o enredo de 'O Irlandês' não me atrai e estou enrolando para ver 'Coringa', mas algo me diz que a pelo menos este último não posso deixar de assistir. Pretendo corrigir essa lacuna em breve. Aguarde o próximo take.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Os prazeres imprevisíveis da cidade de Nostradamus.

Devo dizer que Saint-Rémy-de-Provence está rendendo: este é o terceiro post do blog sobre essa cidadezinha do sul da França. No primeiro, falei sobre minha emoção ao visitar o hospital psiquiátrico de Saint-Paul de Mausole, que abrigou Vincent Van Gogh por um ano e testemunhou o mais fértil período criativo de sua breve vida. E depois, contei sobre minha visita ao espetacular sítio arqueológico de Glanum e suas ruínas que remontam à época em que os celtas habitaram o local até o próspero período romano.

Porém, Saint-Rémy é muito mais do que isso. Minhas andanças pela cidade de menos de dez mil habitantes me levaram a muitos outros achados e, se eu lá tivesse permanecido por mais tempo, certamente teria descoberto muito mais. Parte de meu passeio incluiu a interessantíssima Cidade Velha, cujo acesso se dá através de portais encimados por arcos, velha herança medieval.

Fragmento de muralha - Foto: Simone Catto

A velha Saint-Rémy - Foto: Simone Catto

Passei por ruas estreitas e sinuosas, residências de pedra, casas restauradas e velhas fontes. Algumas construções antigas foram convertidas em museus, prédios públicos, estabelecimentos comerciais, e muitas são suntuosas mansões dos séculos XVII e XVIII. É curioso que aqui no Brasil prédios dessa época sejam considerados extremamente antigos e verdadeiras raridades – como infelizmente o são! - e, lá na Europa, eles não apenas são abundantes como são considerados construções relativamente novas. Algo compreensível em países que, como a França, foram bafejados pelos ares civilizatórios bem antes de nós.

Foto: Simone Catto

Prédio do hospital Saint-Jacques - Foto: Simone Catto

A placa abaixo não me deixa mentir: o hospital Saint-Jacques, fundado em 1646, está instalado nas velhas fortificações da cidade.  

Detalhe do hospital Saint-Jacques, do século XVII - Foto: Simone Catto

Lá em Saint-Rémy construções de diferentes épocas convivem em harmonia e integram residências, lojas, galerias de arte e cafés, tornando o cenário dos mais agradáveis no verão. A esse respeito, vale ressaltar que é unanimidade, entre os arquitetos e urbanistas de respeito, que os melhores espaços para se viver são aqueles de uso misto, isto é, que agregam uma variedade de residências, lojas e serviços.

Foto: Simone Catto

Para fugir ao calor, algumas pessoas se refugiaram na Praça Favier, que tinha uma sombrinha muito gostosa.
Foto: Simone Catto

Placa na calçada de galeria de arte que comercializa
quadros dos séculos XIX e XX - Foto: Simone Catto

Aqui e acolá, como é usual nas cidades da Provence, há imagens de santos esculpidas nas quinas das casas. Adoro!

O santinho protege a loja de pôsteres e gravuras.
Foto: Simone Catto

O Protetor em detalhe e majestade - Foto: Simone Catto

E do nada, em meio às construções antigas, eis que deparo com a parede abaixo, cheia de criatividade, que pertence à Noir et Blanc, uma charmosíssima loja de presentes atopetada de coisinhas belas, vintage e coloridas.

Parede da loja Noir et Blanc - Foto: Simone Catto

O interior belezinha da loja - Foto: Louise Madelaine

Pergunto-me qual teria sido a reação do mais ilustre nativo de Saint-Rémy se tivesse topado com essa parede e essa loja alguns séculos atrás. Estou falando de Nostradamus, o sábio que assombrou o mundo com suas previsões e nasceu bem ali, em uma casa típica renascentista, austera e construída com pedras. Veja abaixo.

Aqui nasceu Nostradamus - Foto: Simone Catto

Todos nós ouvimos falar de Nostradamus por causa de suas profecias, mas poucos conhecem sua formação e o homem por trás da celebridade. Como nessa viagem tive a oportunidade de saber um pouco mais sobre sua vida, vale a pena compartilhar aqui. 

Michel de Nostradamus nasceu em 14 de dezembro de 1501, tinha origem judaica e cresceu em uma família sábia e próspera, o que lhe permitiu uma formação privilegiada. O proprietário da casa era seu bisavô, médico e tesoureiro da cidade. Durante a infância em Saint-Rémy, o menino Nostradamus recebeu uma educação muito superior à média, aprendendo principalmente as bases da matemática e da astronomia. Ele adorava passear pelos campos circundantes e era fascinado pelas paisagens da cadeia de montanhas dos Alpilles, que emolduram a cidade. Não é para menos: um quarto do território de Saint-Rémy é formado por florestas. 

Abaixo está uma foto que tirei na estrada com as montanhas Les Alpilles ao fundo, das quais Nostradamus tanto gostava. Tudo bem que elas não têm a exuberância de nossa Serra da Mantiqueira, mas é inquestionável que formam uma bela moldura para a pequena Saint-Rémy.

Campos de trigo com o maciço Les Alpilles ao fundo - Foto: Simone Catto

Sabemos que Nostradamus também gostava dos monumentos antigos da região, como o Mausoléu e o Arco do Triunfo romanos, citados com frequência em seus escritos. Após estudar nas prestigiosas universidades de Avignon e Montpelier, o sábio tornou-se um médico renomado e experimentou, com sucesso, alguns medicamentos à base de plantas para combater a peste. Ao mesmo tempo cientista, poeta e amigo dos intelectuais, Nostradamus era antes de tudo um humanista. As profecias que fez a partir de 1555 na cidade de Salon-de-Provence, onde se estabeleceu após o segundo casamento, deram-lhe grande notoriedade e fizeram com que se tornasse amigo da poderosa rainha Catarina de Médici, que o nomeou médico oficial do rei e seu conselheiro pessoal. Nostradamus morreu em 1566, deixando uma obra extremamente rica, tanto no plano científico, com seus tratados de medicina, quanto no literário, com suas profecias. 

Como não poderia deixar de ser, o célebre cidadão é merecidamente homenageado em alguns pontos da cidade. Abaixo está a fonte Nostradamus, localizada na rua de mesmo nome, mas vale frisar que não se trata da rua onde ele nasceu, aquela onde fica a casa que mostrei mais acima.

Fonte Nostradamus - Foto: Simone Catto

Rua Nostradamus - Foto: Simone Catto

Em determinado momento, depois de tanto bater perna e descobrir uma surpresa a cada esquina, lembrei que tenho estômago e resolvi almoçar. Parei na La Maison des Varietés, uma brasserie simpática no Boulevard Victor Hugo, rua igualmente agradável que contém outros restaurantes, já fora da Cidade Velha. Com aquele dia lindo, não iria dispensar uma mesa no terraço!

Terraço do restaurante La Maison des Varietés - Foto: Simone Catto

A rua do restaurante é deliciosa, cheia de árvores - Foto: Simone Catto

Fui atendida por uma senhora gentil, de uns 60 anos, e pedi uma taça de vinho branco acompanhada de uma garrafa de água. Não lembro se já comentei em algum post, mas não custa repetir: lá na França não é preciso pedir água mineral nos restaurantes e bares, caso queiramos tomar água. Basta pedir ao garçom uma jarra de água da torneira ("carafe d’eau"), que é cortesia. Aliás, a maioria das casas já coloca a jarra na mesa antes mesmo de o cliente pedir. Já sei o que você está pensando e, antes que pergunte, eu respondo: sim, na França a água da torneira é potável, pode tomar sem medo!

Para comer, optei por uma das combinações de menus "formule", que são aqueles a preço fixo. O meu incluía uma entrada e um prato principal a 16,50 euros. A entrada era uma terrine de aves e o prato principal um risoto ao creme de abobrinha e queijo de cabra.  

Terrine, vinho branco e uma companhia tão animada quanto eu... vive la Provence! - Foto: Simone Catto

O risoto estava saboroso, um prato perfeito para o verão - Foto: Simone Catto

Nem preciso dizer que saí do restaurante tinindo e poderia dar mais dez voltas na velha Saint-Rémy sem me abalar, porque o almoço estava ótimo e os vinhos regionais da Provence são tão bons e leves que nem sentimos aquela molezinha costumeira. À la prochaine!