domingo, 31 de maio de 2020

Reflexões de quarentena: sobre raízes, pontes e miragens.

Embora eu tenha trabalhado bastante nesses meses de confinamento, muitas vezes me flagro fazendo reflexões. Acho que é normal, uma vez que, com raras exceções, permanecemos dentro de casa o dia todo e sobra mais tempo para o exercício de pensar na vida. Sem falar que a própria situação de pandemia que estamos vivendo, com o rastro de tragédias que ela já começou a deixar atrás de si, cria um ambiente propício para nos entregarmos aos mais variados pensamentos. 

E no meio de tantos devaneios, acabei por me flagrar pensando em minha relação com as pessoas. Ou a falta dela. Nesses últimos meses, apesar da distância física e social, tive a oportunidade de reforçar os laços com amigos muito queridos. Alguns bem antigos, outros mais recentes, mas todos pessoas que já deixaram, indelevelmente, marcas positivas em minha vida. É gente que pode contar comigo e com a qual eu sei que posso contar também. Gente com a qual gosto de estar, conversar, rir e, por vezes, até chorar, quando a vida não se mostra tão gentil. Pessoas que não falham em sua amizade, coerentes no caráter e constantes no afeto. Algumas delas são do tipo que faz questão de telefonar no meu aniversário para bater papo em vez de enviar um cumprimento protocolar no WhatsApp, daqueles em que a mensagem é substituída por um gif engraçadinho. Nada contra gifs, mas, para quem não lembra, celulares foram criados originalmente para as pessoas conversarem. E para quem também não lembra o que significa "conversa", vale refrescar a memória: é uma verbalização que envolve troca de palavras e ideias entre seres humanos. Implica um emissor, um receptor e uma mensagem transmitida com o auxílio das cordas vocais. Lembrou? Que bom.

'O Almoço dos Barqueiros' (1880-1881), de Pierre-Auguste Renoir - óleo s/ tela - 130 X 173 cm - The Phillips Collection, Washington, D.C., EUA. Renoir foi um dos artistas que mais retrataram as alegrias da ternura e da amizade em suas obras.

'Duas Jovens Lendo' (1890-1891), de Renoir - óleo s/ tela - 56,5 X 48,2 cm - The Los Angeles County
Museum of Art (LACMA), EUA.

Outros amigos, normalmente os mais jovens ou que conheço há menos tempo, preferem enviar mensagens pelo WhatsApp. Escrevem palavras carinhosas cuja sinceridade reconheço, recebo com alegria e faço questão de retribuir. Porém, mais dia, menos dia, a gente acaba se falando ou se encontrando. Em tempos de pandemia, por motivos óbvios, esses encontros têm acontecido somente pelas chamadas de vídeo, mas, de uma forma ou de outra, sempre tenho o prazer de ouvir suas preciosas e tão necessárias vozes.

'The Stepping Stones' (data indefinida), de Thomas Brooks - óleo s/ tela - 89,0 X 63,5 cm
coleção particular.

E reflexão vai, reflexão vem, deparo-me com uma outra categoria de pessoas, felizmente rara: as que já foram amigas – ou pelo menos que eu julgava que fossem – mas que, por razões misteriosas e alheias a meu entendimento, deixaram de ser. É gente que parou de se comunicar, de retornar ligações ou mensagens, mesmo após minhas tentativas. Um desses casos ocorreu há muito tempo, mas, como mencionei anteriormente, nesse período dentro de casa temos mais tempo para remexer as "gavetinhas" do cérebro. E hoje, olhando em retrospectiva para o referido caso, percebo que mesmo na época em que tínhamos amizade, a pessoa em questão já dava sinais sutis de possuir uma psique meio disfuncional, por assim dizer. Reconheço que talvez esteja afirmando, eufemisticamente, que ela tivesse um distúrbio de personalidade, mas tive esse insight anos atrás, após um episódio incompreensível envolvendo uma brusca mudança de comportamento em um intervalo de menos de 24 horas. Foi muito triste porque se tratava de uma amizade de longa data, mas não vejo outra explicação a não ser um possível distúrbio psíquico. Afinal, muitas vezes não é preciso ser psiquiatra ou psicólogo para detectar problemas em alguém - basta um mínimo de sensibilidade e experiência de vida. Nesse caso, quando não podemos ajudar a pessoa (como infelizmente não pude), resta-nos lhe desejar boa sorte.

Porém, excetuando-se os casos supostamente "patológicos", há também pessoas que são egoístas, pura e simplesmente. Algumas abrem mão de amizades de anos sabe-se lá por que, talvez embrutecidas por uma certa mesquinhez de espírito que mine aquela generosidade, delicadeza e disposição internas essenciais à preservação das raízes e vínculos humanos. E outras, ainda, fechadas em seus mundos virtuais, são incapazes de estabelecer ou sustentar pontes que as conectem ao outro e à vida real. Uma vida na qual gente de carne e osso se encontra, troca experiências, ri junto, debate e por vezes discorda, porém criando, na alegria, na tristeza ou na "braveza", um reservatório mútuo de afetos que minimiza as agruras da existência. Suspeito, aliás, que muitas vezes a deficiência emocional desse tipo de gente tenha origem, entre outras razões, no fato de essas pessoas não terem "aprendido o afeto" na infância com quem tinha o papel e o dever de lhes ensinar: suas mães e pais. É fato que crianças que não recebem o devido carinho materno durante o período que os neurologistas denominam "janela de oportunidade", nos primeiros anos de vida, têm suas conexões cerebrais fechadas para a compreensão e a expressão do sentimento de amor saudável, ao mesmo tempo em que, como uma forma inconsciente de autodefesa, tornam-se por vezes apáticas e reativas, quando não francamente rudes ou violentas, dependendo do meio social onde estão inseridas. E antes que você pense que eu esteja arriscando um "psicologês" de botequim, já adianto que muitas de minhas reflexões sobre relações de amizade nesse período de quarentena receberam um input extra do psiquiatra Norman Doidge, autor de um excelente livro sobre neurociência que estou tendo o prazer de reler neste momento. Fato é que, independentemente dos motivos que levem alguém a não corresponder às nossas iniciativas de preservar, estabelecer ou retomar laços de amizade, apesar de nossa boa-vontade, só nos resta duas coisas a fazer: esquecer a pessoa e voltar o rosto para quem faz sentido.

'Un Idylle de la Petite Enfance' (1900), de William-Adolphe Bouguereau - óleo s/ tela - 130 X 102 cm - Denver Art Museum, EUA.

E por falar em gente que faz sentido, essa quarentena também me permitiu, graças às redes sociais, resgatar o contato com ótimos amigos que haviam ficado para trás na minha linha do tempo. Como verdadeiros tesouros perdidos que as ondas do mar tivessem devolvido à costa pela correnteza, essas pessoas reapareceram afáveis, gentis, exatamente do jeito como eram quando as conheci há anos, e ávidas para retomar um contato que nunca deveria ter sido interrompido. E no que depender de mim, não mais será. Um brinde aos novos, antigos e antigos novos amigos!