terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Obras roubadas pelos nazistas retornam a legítimos donos mais de 75 anos depois.

Fico me perguntando qual seria minha reação se entrasse na casa de um anônimo qualquer e topasse com centenas de obras de arte valiosas, escondidas de tudo e de todos. É exatamente o que imaginei ao saber que, em 2012, foi descoberto um tesouro de 1.500 obras acumuladas por Cornelius Gurlitt, filho de um marchand do período nazista. Havia pinturas de Renoir, Courbet, Monet, Manet, dentre outros, várias em péssimas condições de conservação. Uma daquelas histórias que, vira e mexe, surpreende o mundo das artes com seus enredos rocambolescos.

Equipe de restauração trabalha nas obras - Fonte: BBC

Na ocasião, iniciou-se uma investigação para descobrir quantas dessas obras haviam sido surrupiadas de proprietários judeus, mas, de lá para cá, apenas catorze foram definitivamente identificadas como saqueadas. E agora, a Alemanha finalmente declarou que a última dessas obras foi devolvida aos herdeiros do proprietário: trata-se de Das Klavierspiel (Tocando Piano), gravura do pintor romântico alemão Carl Spitzweg (1808-1885) que pertencia ao editor musical Henri Hinrichsen, assassinado em Auschwitz em 1942.

A gravura Das Klavierspiel (Tocando Piano), do artista Carl Spitzweg, devolvida aos
herdeiros do judeu Henri Hinrichsen - Foto: BBC

A ministra da Cultura alemã, Monika Grütters, afirmou que a devolução da obra enviou um "sinal importante" e que, embora não pudesse compensar todo o sofrimento da família, poderia "dar uma contribuição para a justiça da história e reforçar a responsabilidade moral da Alemanha".

Monika  Grütters, Ministra da Cultura da Alemanha, restitui três obras à representante de uma família espoliada pelos nazistas - Foto: Le Journal des Arts 

A obra de Spitzweg foi confiscada pelos nazistas em 1939, mesmo ano em que Hinrichsen a comprou. Em 1940, foi adquirida por Hildebrand Gurlitt, um marchand nazista que havia recebido de Adolf Hitler a incumbência de administrar o acervo de arte apreendido de colecionadores judeus e comprar a chamada "arte degenerada", removida de museus para ser transferida para o futuro "Museu do Führer". Planejado para ser erigido na cidade de Linz, esse museu, felizmente, nunca saiu do chão para envergonhar o município austríaco.

Em 2015, a peça foi identificada como saqueada e, na terça-feira passada (11/1/21), entregue à casa de leilões Christie's, conforme o desejo dos herdeiros de Hinrichsen.

O destino da coleção Gurlitt

Embora sua vasta coleção de 1.500 obras, saqueadas de museus e também de indivíduos, tenha sido inicialmente confiscada pelos Aliados após a guerra, Hildebrand Gurlitt acabou inexplicavelmente por recuperá-la. Ele morreu na década de 1950 e, quando as autoridades alemãs abordaram sua viúva, no ano de 1961, em busca de parte da coleção, ela alegou que as obras haviam sido destruídas no final da Segunda Guerra pelo bombardeio dos Aliados. Foi apenas quando os agentes fiscais vasculharam o apartamento de Munique pertencente a seu filho Cornelius Gurlitt, em 2012, que encontraram mais de 1.400 das obras.

Obra de Édouard Manet encontrada no apartamento de Cornelius Gurlitt - Foto: BBC

Outras 60 peças foram descobertas no ano seguinte na casa de Gurlitt em Salzburg, na Áustria. No entanto, quando ele faleceu, em 2014, ainda pairavam dúvidas sobre a titularidade do acervo, já que Gurlitt estava protegido por uma espécie de lei de prescrição penal.

Um tribunal então decidiu que as obras poderiam ser entregues ao Museu de Belas Artes da capital suíça, Berna, conforme solicitação de Cornelius Gurlitt. Embora algumas obras realmente fossem consideradas propriedade da família Gurlitt, a Fundação Alemã de Arte Desaparecida tentou descobrir, junto ao museu suíço, quem eram os legítimos donos das demais. Foi assim que se chegou ao número de catorze obras, devidamente identificadas como pertencentes a judeus e devolvidas às famílias e herdeiros.

É espantoso, contudo, que um número tão irrisório de obras, apenas catorze, tenha sido identificado como pertencente a judeus espoliados. Impossível não questionar até que ponto o museu suíço realmente colaborou com as investigações alemãs e engendrou esforços para tentar identificar os legítimos proprietários ou se não agiu somente segundo seus interesses.

Fontes: BBC e Journal des Arts