sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Os prazeres imprevisíveis da cidade de Nostradamus.

Devo dizer que Saint-Rémy-de-Provence está rendendo: este é o terceiro post do blog sobre essa cidadezinha do sul da França. No primeiro, falei sobre minha emoção ao visitar o hospital psiquiátrico de Saint-Paul de Mausole, que abrigou Vincent Van Gogh por um ano e testemunhou o mais fértil período criativo de sua breve vida. E depois, contei sobre minha visita ao espetacular sítio arqueológico de Glanum e suas ruínas que remontam à época em que os celtas habitaram o local até o próspero período romano.

Porém, Saint-Rémy é muito mais do que isso. Minhas andanças pela cidade de menos de dez mil habitantes me levaram a muitos outros achados e, se eu lá tivesse permanecido por mais tempo, certamente teria descoberto muito mais. Parte de meu passeio incluiu a interessantíssima Cidade Velha, cujo acesso se dá através de portais encimados por arcos, velha herança medieval.

Fragmento de muralha - Foto: Simone Catto

A velha Saint-Rémy - Foto: Simone Catto

Passei por ruas estreitas e sinuosas, residências de pedra, casas restauradas e velhas fontes. Algumas construções antigas foram convertidas em museus, prédios públicos, estabelecimentos comerciais, e muitas são suntuosas mansões dos séculos XVII e XVIII. É curioso que aqui no Brasil prédios dessa época sejam considerados extremamente antigos e verdadeiras raridades – como infelizmente o são! - e, lá na Europa, eles não apenas são abundantes como são considerados construções relativamente novas. Algo compreensível em países que, como a França, foram bafejados pelos ares civilizatórios bem antes de nós.

Foto: Simone Catto

Prédio do hospital Saint-Jacques - Foto: Simone Catto

A placa abaixo não me deixa mentir: o hospital Saint-Jacques, fundado em 1646, está instalado nas velhas fortificações da cidade.  

Detalhe do hospital Saint-Jacques, do século XVII - Foto: Simone Catto

Lá em Saint-Rémy construções de diferentes épocas convivem em harmonia e integram residências, lojas, galerias de arte e cafés, tornando o cenário dos mais agradáveis no verão. A esse respeito, vale ressaltar que é unanimidade, entre os arquitetos e urbanistas de respeito, que os melhores espaços para se viver são aqueles de uso misto, isto é, que agregam uma variedade de residências, lojas e serviços.

Foto: Simone Catto

Para fugir ao calor, algumas pessoas se refugiaram na Praça Favier, que tinha uma sombrinha muito gostosa.
Foto: Simone Catto

Placa na calçada de galeria de arte que comercializa
quadros dos séculos XIX e XX - Foto: Simone Catto

Aqui e acolá, como é usual nas cidades da Provence, há imagens de santos esculpidas nas quinas das casas. Adoro!

O santinho protege a loja de pôsteres e gravuras.
Foto: Simone Catto

O Protetor em detalhe e majestade - Foto: Simone Catto

E do nada, em meio às construções antigas, eis que deparo com a parede abaixo, cheia de criatividade, que pertence à Noir et Blanc, uma charmosíssima loja de presentes atopetada de coisinhas belas, vintage e coloridas.

Parede da loja Noir et Blanc - Foto: Simone Catto

O interior belezinha da loja - Foto: Louise Madelaine

Pergunto-me qual teria sido a reação do mais ilustre nativo de Saint-Rémy se tivesse topado com essa parede e essa loja alguns séculos atrás. Estou falando de Nostradamus, o sábio que assombrou o mundo com suas previsões e nasceu bem ali, em uma casa típica renascentista, austera e construída com pedras. Veja abaixo.

Aqui nasceu Nostradamus - Foto: Simone Catto

Todos nós ouvimos falar de Nostradamus por causa de suas profecias, mas poucos conhecem sua formação e o homem por trás da celebridade. Como nessa viagem tive a oportunidade de saber um pouco mais sobre sua vida, vale a pena compartilhar aqui. 

Michel de Nostradamus nasceu em 14 de dezembro de 1501, tinha origem judaica e cresceu em uma família sábia e próspera, o que lhe permitiu uma formação privilegiada. O proprietário da casa era seu bisavô, médico e tesoureiro da cidade. Durante a infância em Saint-Rémy, o menino Nostradamus recebeu uma educação muito superior à média, aprendendo principalmente as bases da matemática e da astronomia. Ele adorava passear pelos campos circundantes e era fascinado pelas paisagens da cadeia de montanhas dos Alpilles, que emolduram a cidade. Não é para menos: um quarto do território de Saint-Rémy é formado por florestas. 

Abaixo está uma foto que tirei na estrada com as montanhas Les Alpilles ao fundo, das quais Nostradamus tanto gostava. Tudo bem que elas não têm a exuberância de nossa Serra da Mantiqueira, mas é inquestionável que formam uma bela moldura para a pequena Saint-Rémy.

Campos de trigo com o maciço Les Alpilles ao fundo - Foto: Simone Catto

Sabemos que Nostradamus também gostava dos monumentos antigos da região, como o Mausoléu e o Arco do Triunfo romanos, citados com frequência em seus escritos. Após estudar nas prestigiosas universidades de Avignon e Montpelier, o sábio tornou-se um médico renomado e experimentou, com sucesso, alguns medicamentos à base de plantas para combater a peste. Ao mesmo tempo cientista, poeta e amigo dos intelectuais, Nostradamus era antes de tudo um humanista. As profecias que fez a partir de 1555 na cidade de Salon-de-Provence, onde se estabeleceu após o segundo casamento, deram-lhe grande notoriedade e fizeram com que se tornasse amigo da poderosa rainha Catarina de Médici, que o nomeou médico oficial do rei e seu conselheiro pessoal. Nostradamus morreu em 1566, deixando uma obra extremamente rica, tanto no plano científico, com seus tratados de medicina, quanto no literário, com suas profecias. 

Como não poderia deixar de ser, o célebre cidadão é merecidamente homenageado em alguns pontos da cidade. Abaixo está a fonte Nostradamus, localizada na rua de mesmo nome, mas vale frisar que não se trata da rua onde ele nasceu, aquela onde fica a casa que mostrei mais acima.

Fonte Nostradamus - Foto: Simone Catto

Rua Nostradamus - Foto: Simone Catto

Em determinado momento, depois de tanto bater perna e descobrir uma surpresa a cada esquina, lembrei que tenho estômago e resolvi almoçar. Parei na La Maison des Varietés, uma brasserie simpática no Boulevard Victor Hugo, rua igualmente agradável que contém outros restaurantes, já fora da Cidade Velha. Com aquele dia lindo, não iria dispensar uma mesa no terraço!

Terraço do restaurante La Maison des Varietés - Foto: Simone Catto

A rua do restaurante é deliciosa, cheia de árvores - Foto: Simone Catto

Fui atendida por uma senhora gentil, de uns 60 anos, e pedi uma taça de vinho branco acompanhada de uma garrafa de água. Não lembro se já comentei em algum post, mas não custa repetir: lá na França não é preciso pedir água mineral nos restaurantes e bares, caso queiramos tomar água. Basta pedir ao garçom uma jarra de água da torneira ("carafe d’eau"), que é cortesia. Aliás, a maioria das casas já coloca a jarra na mesa antes mesmo de o cliente pedir. Já sei o que você está pensando e, antes que pergunte, eu respondo: sim, na França a água da torneira é potável, pode tomar sem medo!

Para comer, optei por uma das combinações de menus "formule", que são aqueles a preço fixo. O meu incluía uma entrada e um prato principal a 16,50 euros. A entrada era uma terrine de aves e o prato principal um risoto ao creme de abobrinha e queijo de cabra.  

Terrine, vinho branco e uma companhia tão animada quanto eu... vive la Provence! - Foto: Simone Catto

O risoto estava saboroso, um prato perfeito para o verão - Foto: Simone Catto

Nem preciso dizer que saí do restaurante tinindo e poderia dar mais dez voltas na velha Saint-Rémy sem me abalar, porque o almoço estava ótimo e os vinhos regionais da Provence são tão bons e leves que nem sentimos aquela molezinha costumeira. À la prochaine!

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