quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Paixão e compaixão: no rastro de Van Gogh em Saint-Rémy-de-Provence.

Vincent Van Gogh não gostava de Paris. Em cartas trocadas com o irmão Theo, costumava descrever a cidade como superpopulosa, hostil, uma metrópole onde predominavam as relações líquidas e emoções voláteis. O artista preferia se refugiar no sul da França, com seu clima ameno e luz mediterrânea, onde abastecia sua inspiração com a exuberância das flores e as cores da natureza. Foi assim que, após uma temporada na vizinha Arles, desembarcou na pequena Saint-Rémy-de-Provence em 8 de maio de 1889 para lá permanecer por um ano - ficou na cidade até 16 de maio de 1890 e só saiu para ficar mais próximo do irmão. Infelizmente, Van Gogh se suicidaria dois meses mais tarde com um tiro no peito, em Auvers-sur-Oise, mas deixou atrás de si um legado de quase 150 telas criadas em Saint-Rémy. Entre elas estão algumas de suas maiores obras-primas, e não é à toa que o período em que permaneceu na cidade provençal seja considerado o mais fértil e profícuo de sua curta e atormentada carreira.

Mais de cem anos depois, cheguei a Saint-Rémy em busca dos vestígios de Van Gogh. Queria me colocar em seu lugar para sentir, ou pelo menos vislumbrar, algumas das paisagens ou cenários que haviam excitado sua privilegiada imaginação artística, fornecendo-lhe tão vasto repertório pictórico.

Após visitar o sítio arqueológico romano de Glanum, rumei para o Hospital Psiquiátrico de Saint-Paul de Mausole, que fica a poucos metros a pé de distância. Foi lá que Van Gogh internou-se voluntariamente no dia 16 de maio de 1889, menos de uma semana após chegar à cidade, depois de um agudo e doloroso surto psicótico ocorrido dois dias antes do Natal de 1888, na Casa Amarela de Arles. Foi nessa crise, desencadeada após uma discussão com o amigo Paul Gauguin, que o pobre artista decepou parte de sua orelha esquerda após sofrer alucinações.

Entrada do hospital psiquiátrico de Saint-Paul de Mausole - Foto: Simone Catto

A entrada do hospital é belíssima e acolhedora, e eu nem precisei atravessar a magnífica aleia arborizada para sentir que aquele cenário, cercado de belas paisagens naturais, não poderia ser mais apropriado para tratar ou recuperar qualquer pessoa com um distúrbio mental.

A bela alameda que conduz ao hospital - Foto: Simone Catto

Foto: Simone Catto

A alameda que conduz à capela e ao hospital está ladeada de reproduções de pinturas de Van Gogh criadas durante a estada do artista no local, incluindo as famosas 'Íris', 'Trigal com ciprestes', 'Jardim do Hospital de São Paulo', 'Autorretrato' e muitas outras.

As vistosas 'Íris', pintadas quando o artista
estava em Saint-Paul - Foto: Simone Catto

Van Gogh - 'Íris' (1889) - óleo s/ tela - 71 X 93 cm - J. Paul Getty Museum - Los Angeles, Califórnia

Van Gogh - 'Jardim do hospício de Saint-Paul' (maio/1889) - óleo s/ tela - 91,5 X 72 cm
 Kröller-Müller Museum - Otterlo, Holanda

Foto: Simone Catto

A construção que abriga o hospital é bem antiga. Erigida nos séculos XI e XII em estilo românico, era, originalmente, um monastério. Assim permaneceu por séculos até os monges serem desalojados durante a Revolução Francesa. A partir do início do século XIX, o local tornou-se um hospital particular. Vários médicos e funcionários associados às Irmãs de São Vicente de Paulo e São José de Vesseaux sucederam-se no comando do estabelecimento e, em 1852, o prefeito da região transformou-o em um asilo privado destinado exclusivamente a pacientes psiquiátricos, com capacidade para abrigar 50 homens e 50 mulheres. Até hoje Saint-Paul acolhe e trata apenas doentes mentais. 

A instituição deve seu nome à proximidade com o mausoléu romano dos ''Julii'', da família da esposa de Júlio César, que por sua vez fica ao lado de um Arco do Triunfo. Os dois imponentes e bem preservados monumentos da Antiguidade são motivo de grande orgulho para Saint-Rémy, mas você poderá conhecê-los no próximo post. 

O claustro medieval no interior de Saint-Paul tem um lindo jardim e propicia o recolhimento necessário para momentos de paz e reflexão. A sensação de estar lá é realmente especial.

O belo e bem cuidado jardim do claustro de Saint-Paul de Mausole - Foto: Simone Catto

Em determinado momento, ao circular pelos jardins do hospital, ouvi uma voz masculina falando num tom alto, com uma inflexão estranha, e logo percebi que se tratava de um paciente. Porém, como seria de se esperar, os pacientes não ficam expostos à curiosidade dos visitantes. O som vinha de trás de um muro alto coberto de vegetação, delimitando uma área restrita, e acredito que seja lá que os internos tomem sol e contemplem a natureza sob os cuidados dos funcionários e protegidos de olhares curiosos.

As reproduções de obras de Van Gogh estão por toda parte - Foto: Simone Catto

Assim que chegou ao hospital, Van Gogh foi instalado em um quartinho exíguo e modesto no Pavilhão dos Homens, porém ganhou mais dois quartos extras: um no térreo, que funcionou como ateliê, e outro como depósito para guardar suas obras. Poucas semanas após sua chegada, o artista descreveu, em uma carta ao irmão Theo, como eram bonitos os jardins que podia vislumbrar através da janela de seu ateliê improvisado. No início de junho de 1889, o dr. Théophile Peyron, diretor do estabelecimento, permitiu que Van Gogh pintasse nos jardins e depois na parte de fora dos portões, desde que devidamente supervisionado. O diretor mal podia suspeitar que sua compreensão e benevolência permitiriam a criação de uma das maiores obras-primas da história da arte: a pintura 'Noite Estrelada', realizada por Van Gogh no dia 18 de junho daquele ano.

Foto: Simone Catto

Van Gogh - 'Noite Estrelada' (18/6/1889) - óleo s/ tela - 74 X 92 cm - The Museum of Modern Art (MoMA) - Nova York

Quatro semanas mais tarde, Van Gogh despachou cerca de trinta trabalhos para o irmão, em Paris, incluindo a pintura 'Iris'. Infelizmente, no dia 16 de julho, o artista sofreria outro "ataque", como costumava se referir a seus surtos: enquanto pintava em um ponto próximo ao hospital, de repente principiou a devorar sujeira do chão e o conteúdo de um de seus tubos de tinta, até ser reconduzido ao quarto por um atendente. Durante quase seis semanas após esse triste episódio, Van Gogh ficou confinado a seu dormitório e proibido de pintar. Em uma carta ao irmão, pediu que este intercedesse junto ao dr. Peyron, explicando que a pintura era essencial para sua recuperação. No final de agosto, recebeu permissão para usar os pincéis novamente.

O acesso ao quarto de Van Gogh se dá por uma escada medieval do período românico, e o singelo cômodo que abrigou o artista foi reconstituído fielmente. É muito emocionante adentrar aquele espaço e contemplar os mesmos objetos, as mesmas paredes e paisagens que ele contemplou naquele breve, porém fecundo, ano de internação.

O espartano dormitório de Van Gogh em Saint-Paul - Foto: Simone Catto

Era nessa escrivaninha, provavelmente, que o artista
escrevia as cartas a Theo durante sua estada no hospital.
Foto: Simone Catto

Foto: Simone Catto

A partir de sua janela, Van Gogh avistava um jardim que ao mesmo tempo o fascinou e perturbou, retratado em quatorze obras. Hoje aberto ao público, o jardim tem flores, plantações de lavandas e trigo, pomar, árvores e os onipresentes ciprestes reconhecíveis em tantas de suas obras.

Vista da janela do quarto de Van Gogh - Foto: Simone Catto

Esta foto eu tirei posicionando a câmera através das grades - Foto: Simone Catto

Campo de lavanda no jardim de Saint-Paul - Foto: Simone Catto

Foto: Simone Catto

Ao caminhar por ali, naquela paisagem tão bela e cheia de paz, é difícil acreditar que o lugar abrigue espíritos tão angustiados. Ao mesmo tempo em que me emocionava e deleitava seguindo os passos do grande artista, fui invadida também por um grande sentimento de compaixão para com aquele homem genial que teve uma existência tão sofrida e conturbada. Sua presença está em todo lugar. Também no jardim são exibidas reproduções de suas obras.  

Detalhe da plantação de lavanda - Foto: Simone Catto

Neste ângulo vemos as reproduções das obras - Foto: Simone Catto


Van Gogh - 'Amendoeira em flor' (1890) - óleo s/tela - 74 X 92 cm - Museu Van Gogh - Amsterdã

Foto: Simone Catto

Embora Saint-Paul de Mausole seja prioritariamente um hospital psiquiátrico, posiciona-se também como centro cultural. Segundo a própria instituição, sua conduta tem, como princípio, desestigmatizar os pacientes psiquiátricos. Em resposta ao sonho de Van Gogh de criar uma comunidade de artistas no sul da França, o hospital criou, em 1995, o projeto de arte-terapia Valetudo (nome da deusa romana da Saúde), com oficinas e uma galeria de arte que dão para o claustro. Aliando arte, pesquisa e tratamento, a iniciativa permite que os pacientes atendidos ou internados criem trabalhos particularmente poéticos que expressem sua complexa jornada interior. As obras são exibidas e ficam disponíveis para venda perto da loja. 

Saí de Saint-Paul com a alma leve e desci a pé, feliz, a longa avenida Vincent Van Gogh que me conduziu ao centro histórico de Saint-Rémy. Vincent continuou comigo.

A calçada ao longo de toda a avenida Vincent Van Gogh é pontilhada
por essas pequenas esferas de ferro - uma singela e simpática homenagem
ao habitante mais ilustre de Saint-Rémy-de-Provence - Foto: Simone Catto


2 comentários:

  1. Amei esse post. Me emocionei com vc. Obrigada.

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    1. Olá, fico feliz, obrigada!... Apenas reproduzi o que senti... Bom saber que Vincent consegue tocar corações. :)

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