sábado, 23 de novembro de 2019

Arles, a cidade que atravessou séculos para abrigar o café mais famoso do mundo.

Se você leu meu post anterior, deve se lembrar que este é a continuação, isto é, a segunda parte da matéria que escrevi sobre Arles, cidade do sul da França com um expressivo patrimônio arqueológico e cultural. E se você realmente tem acompanhado meus posts do segundo semestre de 2019, deve ter notado também que publiquei vários relatos sobre essa viagem à Provence que muito enriqueceu meus conhecimentos sobre o mundo e os franceses. Talvez, você possa até achar repetitivas as atrações das cidades sobre as quais discorri anteriormente, já que todas, invariavelmente, têm um castelo, ou ruínas arqueológicas, ou alguma herança medieval, ou - o que é mais comum - tudo isso junto.

No entanto, caro leitor, eu lhe asseguro que nenhuma cidade, mas nenhuminha mesmo, é igual à outra. As percepções e impressões que cada uma delas me causou foram totalmente diferentes, até porque cada uma tem um passado e uma geografia. Sem falar, é claro, que suas energias também diferem. Todas, porém, têm algo em comum: são fascinantes com suas histórias, suas paisagens, seus dramas, seus personagens.

Por tudo isso, se você, assim como eu, gosta de história, de arte, arqueologia e cultura, tudo regado a doses generosas de natureza, acredito que vá gostar do que tenho a contar nesta segunda matéria sobre Arles. Até porque a cidade abrigou Vincent Van Gogh durante um período e inspirou o artista a criar algumas de suas pinturas mais conhecidas. E isso, por si só, já a torna suficientemente interessante - pelo menos para mim.

Então vamos lá. No post anterior, falei sobre minha visita aos dois teatros romanos e às Termas de Constantino, que estão entre as principais heranças arqueológicas de Arles. Também comentei que, no sul da França, não raro o patrimônio cultural das cidades pode ser muito maior do que imaginamos – e é aí que reside grande parte da graça em conhecê-las. Tudo bem que, planejadora que sou, havia preparado um roteiro razoavelmente cuidadoso destacando os lugares que pretendia visitar. No entanto, devo dizer que é preciso estarmos abertos para o inesperado e o imponderável, porque ótimas surpresas podem nos espreitar virando a esquina. Desviar da rota, sair um pouco da curva e se aventurar faz parte. Às vezes, eu traçava um caminho na estrada e, no meio dela, avistava ao longe algo que me interessava: a ponta de uma torre, o crucifixo de uma igreja, ou mesmo um vinhedo exuberante... Aí eu parava o carro e ia conferir de perto para ver se era tudo aquilo mesmo. E já na cidade, caminhando rumo às atrações que havia programado, muitas vezes acabava me entretendo com outra coisa pelo caminho. Na foto abaixo, por exemplo, achei interessante o padrão geométrico formado com o arco e a sombra.

Foto: Simone Catto

Rua de Arles perto do anfiteatro romano - Foto: Simone Catto

Na foto a seguir, está um café que achei charmoso. Não hesitei em virar o celular para conseguir enquadrá-lo todo, inclusive a lanterna na parede. Peço desculpas se a foto desencadeia uma labirintite!

Foto: Simone Catto

Mas o café que estava no meu roteiro e que eu não sairia de Arles de jeito nenhum sem conferir pessoalmente é este abaixo, na Place du Forum. Consegue reconhecê-lo? Foi imortalizado em uma das mais belas e famosas pinturas de Vincent Van Gogh, o 'Terraço do Café na Praça do Fórum, Arles, à Noite', de 1888, que está em um museu da Holanda. A única coisa que destoou no visual foi o toldo amarelo exageradamente grande estendido sobre a fachada, que não tem nada a ver com a contenção do discreto toldo da pintura do artista. Além de feio, o toldo do século XXI aumentou ainda mais a sensação de calor num dia em que a temperatura ultrapassou fácil os 30°C. Talvez um tipo como Donald Trump sentisse certa identificação com aquele topete de lona amarela, mas o pobre Vincent certamente engoliria os pincéis com tinta e tudo de tanto desgosto.

Café Van Gogh - Foto: Selma

Van Gogh - 'Terraço do Café na Praça do Fórum, Arles, à Noite', 1888 - óleo s/ tela
80,7 X 65,3 cm - Museu Kröller-Müller - Otterlo, Holanda

O fato é que o famoso café eternizado pelo mestre holandês virou uma espécie de "pega-turista" mas, mesmo assim, sentei em uma das mesas para tomar um sorvete – o qual, aliás, chegou semiderretido. Van Gogh merecia mais. Peguei na Wikipedia uma foto em que o tal toldo não estava estendido, e o café me pareceu bem mais aprazível. Enfim...

Café Van Gogh, Arles - Foto: Wikipedia

As alusões à estada de Van Gogh em Arles estão aqui e ali, como na vitrine abaixo. A pintura da mulher no pôster azul, aliás, está em nosso MASP. Trata-se de 'A Arlesiana', executada pelo mestre holandês em 1890.

Foto: Simone Catto

Van Gogh - 'A Arlesiana', 1890 - óleo s/ tela - 65 X 54 cm - MASP - São Paulo

Felizmente, minha experiência gastronômica em Arles não se resumiu ao sorvete derretido. Procurando um lugar para almoçar nas ruas sinuosas da parte antiga, encontrei um restaurante e bar delicioso encravado na curva de uma ladeira. Peguei uma mesa bem gostosa no terraço que, embora pequenino, era ao ar livre e tinha uma atmosfera superagradável.

A vista de minha mesa do restaurante - Foto: Simone Catto

Com aquele calor todo, preferi comer alguma coisa leve e saborear um vinho branco da região. A tábua de queijos, patês e tapenade caiu maravilhosamente bem com o pãozinho. Saí feliz da vida para continuar minha jornada.

As comidinhas com vinho branco... miam... - Foto: Simone Catto

Repare na foto abaixo. Estou até agora me perguntando como e por que aquela janela foi parar ali. O mais provável é que a construção que a sustenta já existisse e o prédio ao lado, mais moderno e atrevido, a canibalizou sem piedade. Folgado.


Foto: Simone Catto

Perto do café de Van Gogh, ainda na Place du Forum, há um resquício de um templo romano preservado que foi anexado a um hotel de construção bem mais moderna. Ou, melhor dizendo: o hotel é que foi anexado a ele. Achei bem pitoresca essa simbiose arquitetônica - me lembrou aquelas plantas parasitas, como as orquídeas, que vivem agarradas às árvores.

Resto de templo romano na Place du Forum - Foto: Wikipedia

A principal praça da cidade, porém, é sem dúvida a Place de la République. É lá que fica o prédio da Prefeitura (Hôtel de Ville), um triunfo da arquitetura clássica construído entre 1673 e 1676 e inspirado no estilo de Jules Hardouin-Mansart, nomeado arquiteto de Luís XIV em 1676. Pouco depois que o prédio foi concluído, um obelisco egípcio de 15 metros de altura encontrado no anfiteatro romano foi transportado para lá numa operação que deve ter gerado um transforno danado. Se esse transporte já seria difícil hoje, imagine mais de três séculos atrás!

Place de la République com o obelisco egípcio, o prédio da Prefeitura ao fundo e a Igreja Saint-Trophime à direita.
Foto: Melvin

Ainda na Place de la République, entrando pelo prédio da Prefeitura, visitei os Cryptoportiques, uma extensa galeria subterrânea com arcadas em formato de ferradura, construída no ano 40 a.C., que fazia parte do antigo Fórum Romano. A esse respeito, vale lembrar que toda cidade romana que se prezasse tinha um fórum. A iluminação fraca não favorecia fotos e achei o lugar um tanto opressor, de forma que não via a hora de sair dali para ver a luz do sol. E por falar em opressão, em um pátio atrás do prédio da Prefeitura, topei com um lugar que me remeteu a desespero e desolação. Conforme a inscrição na placa, tratava-se de três celas de prisão onde foram encarcerados arlesianos antes de serem deportados, pelos nazistas, aos campos de concentração. Um passado triste e assustadoramente recente.

As celas de prisão onde foram aprisionados os pobres arlesianos deportados para os campos de concentração nazistas.
Foto: Simone Catto

Foto: Simone Catto

Um dos monumentos que estavam na minha lista de visitas era a famosa Igreja de Saint-Trophime, na Place de la République, que eu já conhecia dos livros de história da arte e que integra os estilos românico e gótico.

Fachada da Igreja Saint-Trophime - Foto: Simone Catto

A igreja começou a ser construída por volta do ano 1100, mas sua bela fachada ladeada de estátuas dos Apóstolos e o frontão que representa Cristo cercado pelos quatro Evangelistas (Mateus, Lucas, Marcos e João) data de 1180-1190.

Detalhe dos Apóstolos de Cristo esculpidos na fachada
da igreja - Foto: Simone Catto

Foto: Simone Catto

O sino e o transepto também são do período românico, assim como a nave e os corredores abobadados de meados do século XII.

A nave em estilo românico de Saint-Trophime
Foto: Simone Catto

Detalhe do interior da igreja - Foto: Simone Catto

Na metade do século XIV, a cabeceira da igreja, que compreende o coro, o altar e belas capelas adjacentes, foi construída já no estilo gótico, mais extravagante, para substituir o austero altar românico.

Capela de Saint-Trophime no estilo gótico.
Foto: Simone Catto

Neste altar, havia várias relíquias de santos.
Foto: Simone Catto

Em minhas andanças pela cidade, encontrei também a Igreja Notre-Dame-de-la-Major atrás do anfiteatro romano, a qual tem um altar dedicado a Nossa Senhora e teve a palavra "Major" acrescentada ao nome por se localizar no topo da colina de Arles. Segundo descobertas arqueológicas de 1758, a igreja foi construída no século XII no local onde antes havia um templo romano, mas sofreu alterações sucessivas até o século XVII. Como o quarteirão foi bombardeado em 1944, durante a II Guerra Mundial, a abóbada e o sino da igreja foram danificados e posteriormente restaurados.

Igreja Notre-Dame-de-la-Major, do séc. XII.
Foto: Simone Catto

E já que estamos falando de igrejas, é bom ressaltar que na Provence os símbolos de religiosidade dão sinal de vida a todo momento. Eles estão nas casas, nas ruas, nas praças. A imagem abaixo, por exemplo, com moldura dourada, representa Saint-Roch, santo nascido em Montpellier durante a Guerra dos Cem Anos e homenageado na praça de Arles que leva seu nome. Pergunto-me se essa moldura não desbota, assim exposta às intempéries do clima. Ou será um milagre de Saint-Roch?

Imagem do santo na Place Saint-Roch - Foto: Simone Catto

Agora que você conheceu um pouco de Arles, quem sabe não se inspira a fazer uma visita por lá? Se ainda quiser saber mais sobre o patrimônio arqueológico da cidade, confira aqui meus passeios às construções e monumentos do período romano.

sábado, 16 de novembro de 2019

A Arles galo-romana: um presente com mais de 2.000 anos.

Em minha última viagem à Provence, visitei cidadezinhas que são na realidade vilarejos com menos de dois mil habitantes, e também cidades maiores, embora nenhuma destas se compare, em dimensões, aos mastodontes que temos no Brasil. Uma das cidades onde estive é Arles, no departamento de Bouches-du-Rhône, que possui pouco mais de 50 mil habitantes e que eu já conhecia dos livros de história por causa de seu monumento mais famoso, o anfiteatro romano também conhecido como Amphithéâtre d'Arènes.

Vista externa do Amphithéâtre d'Arènes - Foto: Simone Catto

Como era de se esperar, foi para lá que rumei assim que cheguei à cidade. Queria ver de perto aquele prodígio da arquitetura ancestral. O imponente anfiteatro, que foi palco de jogos e combates no século I d.C., é o maior e mais bem preservado monumento arqueológico de Arles. A impressionante arena com 136 metros de comprimento e 107 metros de largura acomodava cerca de 21 mil espectadores contra os 12.500 que atualmente assistem a touradas, shows e outros espetáculos. 

O entorno do anfiteatro é repleto de lojas de souvenirs, de roupas e cafés - Foto: Simone Catto

Outro ângulo externo da bela e bem preservada construção romana - Foto: Simone Catto

A sensação de circular aqui dentro é fantástica! - Foto: Simone Catto

É mesmo uma bela construção. A fachada possui uma fila dupla de arcadas com 60 arcos menores e quatro maiores que são as entradas principais. Na época romana, os espectadores sentavam em 34 fileiras de degraus que eram cobertos com tábuas de madeira. Durante a Idade Média, foram adicionadas torres com escadas de onde dá para tirarmos belas fotos da cidade.

Corredor entre as arcadas duplas - Foto: Selma

Foto: Simone Catto
  
Vista do alto de uma das torres do anfiteatro - Foto: Simone Catto

Nesta foto dá para notar bem a solidez da construção - Foto: Simone Catto

E como se não bastasse um anfiteatro, Arles tem dois, ambos próximos. O outro, menorzinho, é chamado de Théâtre Antique e foi construído no reinado de Augustus um século antes do outro, no ano I a.C., no coração da cidade antiga. Este acomodava oito mil pessoas em 33 fileiras de assentos e a parte de trás do palco era decorada com colunas e estátuas.

Entrada do Teatro Antigo - Foto: Simone Catto

O interior do gracioso teatro romano - Foto: Selma

Na parte de trás do palco dá para vermos fragmentos das colunas - Foto: Simone Catto

A maioria das relíquias escavadas no local pode ser apreciada no Musée Lapidaire d'Art Païen, à exceção da descoberta arqueológica mais preciosa, a 'Vênus de Arles' que se encontra no Louvre, em Paris. No início da Idade Média, o teatro foi usado como pedreira e forneceu o material para a construção do prédio da prefeitura. Também lá são realizados, atualmente, shows musicais e outros espetáculos. No dia de minha visita, uma banda fazia a passagem do som.

Ruínas do Teatro Antigo - Foto: Simone Catto

Foto: Simone Catto

Enquanto eu explorava o lugar, a banda testava a acústica... - Foto: Simone Catto

E a herança galo-romana assombrosamente bem preservada da cidade não para por aí. Mais para cima, às margens do rio Ródano, estão as Termas de Constantino, outro testemunho arquitetônico da prosperidade da cidade à época. As termas, que mais parecem um palácio, são um extenso complexo para saunas e banhos que data do início do ano 4 d.C., construído sob as ordens do imperador que lhe dá o nome. Lugares públicos frequentados por todos, inclusive mulheres, crianças e escravos, essas termas eram incorporadas à vida da cidade e indispensáveis para o conforto no dia a dia dos cidadãos.

Vista externa das Termas de Constantino - Foto: Patrimônio da Cidade de Arles

O traçado original das Termas - Foto: Simone Catto

Originalmente, as Termas de Constantino cobriam cerca de 3.750 m², dos quais restam, atualmente, 1.100 m² que abrangem o Caldarium (banho quente), partes do Hypocausto (calefação sob o piso) e o Tepidarium (sala de vapores quentes).

Entrada das Termas - Foto: Simone Catto

Os romanos utilizavam sofisticados sistemas de aquecimento. O calor provinha do ar quente que circulava nos subsolos, os Hypocaustos, alimentados por pequenos fornos no interior dos muros. O solo era elevado para que o calor pudesse ser gerado sob ele. A temperatura chegava a 30°C, podendo alcançar até mesmo os 60°C. A esse respeito, ao contrário do que muita gente possa pensar, vale ressaltar que não era a água a grande estrela desses lugares, mas os vapores, as saunas. Em outras palavras, os romanos adoravam suar em bicas (rs).

Abaixo, à esquerda, as colunas de tijolos chamadas
pillettes, por onde circulavam os vapores de aquecimento
sob o solo - Foto: Simone Catto

Forno do Hypocausto - Foto: Simone Catto

Os visitantes alternavam banhos quentes e frios em piscinas com temperaturas variadas e seguiam um trajeto recomendado pelos médicos. Primeiro a pessoa despia-se no vestiário, praticava exercícios físicos, tomava um banho na piscina externa e finalmente ia para o Tepidarium, uma sala termal aquecida com temperaturas entre 25°C e 30°C.

Em seguida, o banhista passava por uma sauna seca e outra úmida, para limpar as impurezas dos poros antes de dirigir-se ao Caldarium, um vasto espaço coletivo com temperatura de 55°C, para um banho de limpeza. Lá havia piscinas rasas com águas quentes e o banhista então espirrava água no corpo enquanto se esfregava com uma espécie de lixa metálica, pois não existiam sabonetes entre os romanos. O Caldarium, com seu teto abobadado, é o ambiente mais importante preservado na atualidade.

Vista do Caldarium - Foto: Simone Catto

A última etapa era o Frigidarium, onde o feliz visitante tomava um banho frio para tonificar a pele e nadar ao ar livre antes de receber uma massagem com óleos perfumados pelos escravos, se depilar (sim, romanos também eram metrossexuais!) e descansar nos bancos de mármore. Cultura física, leitura, passeios, descansos e conversas faziam parte das atividades no lugar. Vida boa, a desses romanos!

Mas é bom reforçar que, por várias vezes, em minha jornada ao sul da França, descobri que o patrimônio histórico e cultural das cidades podia extrapolar, e muito, aquilo que está nos livros. Com Arles não foi diferente. A cidade tem atrações que vão muito além da herança galo-romana, avançando séculos à frente. No próximo post, vou mostrar algumas delas e também fotos que tirei em minhas andanças por suas ruas. Aguarde!