quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Ruínas de Glanum: dos celtas aos romanos num piscar de olhos.

Cheguei a Saint-Remy-de-Provence, no sul da França, movida pelo desejo de conhecer os locais pelos quais Van Gogh havia passado e contemplar as paisagens que ele havia transformado em arte. Contudo, ao pesquisar o roteiro, acabei descobrindo que a cidade tinha muito mais atrativos do que o fato de ter abrigado e inspirado o gênio holandês dos pincéis.

Foi assim que, antes de sair ao encalço do artista, acabei parando em Glanum, um magnífico sítio arqueológico dentro do território de Saint-Rémy que remonta aos séculos VII e VI a.C. Os primeiros habitantes locais foram os Salyens, gauleses celtas da Provence, que se estabeleceram na encosta da cadeia de montanhas dos Alpilles até o século II a.C. Esse povo cultuava um deus chamado Glan e acreditava que ele habitava uma fonte sagrada na companhia de um séquito de bondosas "Deusas-mãe", também chamadas "Glanicae" (talvez essa palavra seja o equivalente celta a "Glanetes", rs). O povoado cresceu em torno dessa fonte, cujas águas eram consideradas terapêuticas, e sofreu influência dos gregos de Marselha.

A paisagem no entorno de Glanum é linda - Foto: Simone Catto

Glanum - Foto: Simone Catto

A partir do século I a.C., os romanos conquistaram a região e impuseram seus modelos arquitetônicos, como os templos geminados dedicados ao culto do imperador, o fórum (praça pública) e as termas. A fonte sagrada, que até então era simplesmente esculpida em uma rocha, ganhou o reforço de uma construção. Foi no período romano, aliás, que Glanum alcançou sua maior pujança.

Fonte sagrada - Foto: Chris Hellier

Nesta vista assinalei, em vermelho, os degraus que levam à fonte sagrada - Foto: Simone Catto

Posteriormente, em 260 d.C., o povoado foi destruído por invasões bárbaras e depois abandonado, para ser redescoberto somente em 1920. O fato é que caminhar pelo sítio arqueológico, que preserva resquícios das épocas celta, helenística e romana, é como mergulhar no passado dos povos que se sucederam – nem sempre pacificamente - na região. A imagem abaixo é um bom exemplo. A parede de pedra, na parte de trás, é do tempo dos celtas. E logo à sua frente, dá para reconhecer uma estrutura com coluna visivelmente romana. Tão longa convivência deu em casamento.

A parede celta e o pilar romano, felizes para sempre - Foto: Simone Catto

Detalhe da parede celta coroada por uma árvore majestosa.
Foto: Simone Catto
 
Foto: Simone Catto

Os romanos construíram, no entorno da fonte sagrada, um santuário a Hércules e um templo a Valetudo, deusa da saúde.

Ruínas do templo Valetudo - Foto: Simone Catto

Entorno do templo Valetudo enfeitado pelas papoulas, que se insinuam timidamente - Foto: Simone Catto

Dois templos de arquitetura idêntica, mas de tamanhos diferentes, foram erigidos para homenagear a família do imperador romano. Romanos adoravam templos, deuses e imperadores, o que foi ótimo para o legado arquitetônico que deixaram para nós.

Os templos geminados - Foto: Simone Catto

Os templos geminados no original - Foto: Simone Catto

Os trabalhos arqueológicos identificaram várias estruturas e ambientes que possuíam funções muito específicas. O fórum era uma praça pública que reunia a população para as atividades econômicas e políticas e cerimônias religiosas. Era lá que se situava o mercado. Na foto abaixo, realizada a partir de um mirante, dá para ver o pátio retangular do fórum romano com um poço redondo.

Vista a partir do mirante - a praça do fórum é bem evidente no átrio aberto - Foto: Simone Catto

Santuário de Hércules - Foto: Simone Catto

Detalhe ornamental romano - Foto: Simone Catto

Abaixo temos a estrutura de uma piscina, denominada "natatio", que provavelmente fazia parte do complexo das termas. Acredita-se que a escultura de carranca na borda, à direita, represente Dionísio, deus do vinho, das festas e do teatro.

O "natatio", ou piscina - Foto: Simone Catto

A cúria, reconhecível por sua abside, era onde se reuniam os políticos eleitos e gestores locais. Uma outra sala, anexa, servia de tribunal.

Aqui a abside arredondada da cúria se destaca na paisagem - Foto: Simone Catto

O ambiente a seguir mostra um defumador de vinhos. Os romanos tinham por hábito defumar a bebida, a fim de conservá-la melhor e por mais tempo. Espertos, esses romanos. Já sabiam o que é bom.

Detalhe dos defumadores de vinhos - Foto: Simone Catto

Abaixo está a Casa das Antas, típica residência mediterrânea em que os cômodos ficavam distribuídos em torno de um tanque. E antes que você pense que as antas fizessem parte da família, aviso que a casa recebeu seu nome devido a duas pilastras encimadas por capitéis coríntios, também chamadas de "antas".

Casa das Antas - Foto: Simone Catto

Nas imediações de Glanum estão um Arco do Triunfo e o mausoléu "Julii", construídos entre 30 e 20 a.C. Sim, romanos também adoravam arcos. Não duvido que tenham inventado o arco-íris.

O mausoléu Julii e o Arco do Triunfo - Foto: Jean C.

O mausoléu foi erguido por três irmãos aristocratas da família Julii em homenagem ao avô e ao pai Caius, mas o gesto nobre também escondia uma motivação bem mais mundana: ostentar aos quatro ventos a riqueza da família. Os Julii foram agraciados com uma grande honraria: devem seu nome a Júlio César porque o avô, ao tornar-se soldado do imperador na Guerra dos Gaules (a partir de 58 a.C.), ganhou a cidadania romana.

A base do mausoléu é decorada com relevos de cenas da batalha de Zela (47 a.C.), durante a qual Júlio César teria pronunciado a célebre frase "veni, vidi, vici; vim, vi, venci". É a única representação conhecida dessa batalha.

Detalhe do mausoléu - Foto: Patrick

Fiquei longas horas em meio às ruínas de Glanum. A graça de visitar um lugar desses, pelo menos para mim, é sentar, respirar fundo, sentir a atmosfera e tentar recriar, em minha imaginação, como devia ser a vida das pessoas que viveram lá. Em determinado momento criei em minha mente a imagem dos celtas felizes, dançando em torno da fonte sagrada e cantando para o deus Glan. Imaginei as "Glanetes" – ops, as "Glanicae", rs - saltitando alegremente a seu redor, como em um quadro de Fragonard. Até parece que estou vendo tudo aquilo agora. O bom dessas viagens, aliás, é que a alegria não se limita ao momento da visita: ela continua a viajar com a gente pela vida.

Aqui dá para ver o topo do mausoléu bem pequenininho ao fundo, à esquerda da árvore arredondada - Foto: Simone Catto

Se você também quiser saber sobre minha jornada no rastro de Van Gogh em Saint-Rémy-de-Provence, clique aqui.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Paixão e compaixão: no rastro de Van Gogh em Saint-Rémy-de-Provence.

Vincent Van Gogh não gostava de Paris. Em cartas trocadas com o irmão Theo, costumava descrever a cidade como superpopulosa, hostil, uma metrópole onde predominavam as relações líquidas e emoções voláteis. O artista preferia se refugiar no sul da França, com seu clima ameno e luz mediterrânea, onde abastecia sua inspiração com a exuberância das flores e as cores da natureza. Foi assim que, após uma temporada na vizinha Arles, desembarcou na pequena Saint-Rémy-de-Provence em 8 de maio de 1889 para lá permanecer por um ano - ficou na cidade até 16 de maio de 1890 e só saiu para ficar mais próximo do irmão. Infelizmente, Van Gogh se suicidaria dois meses mais tarde com um tiro no peito, em Auvers-sur-Oise, mas deixou atrás de si um legado de quase 150 telas criadas em Saint-Rémy. Entre elas estão algumas de suas maiores obras-primas, e não é à toa que o período em que permaneceu na cidade provençal seja considerado o mais fértil e profícuo de sua curta e atormentada carreira.

Mais de cem anos depois, cheguei a Saint-Rémy em busca dos vestígios de Van Gogh. Queria me colocar em seu lugar para sentir, ou pelo menos vislumbrar, algumas das paisagens ou cenários que haviam excitado sua privilegiada imaginação artística, fornecendo-lhe tão vasto repertório pictórico.

Após visitar o sítio arqueológico romano de Glanum, rumei para o Hospital Psiquiátrico de Saint-Paul de Mausole, que fica a poucos metros a pé de distância. Foi lá que Van Gogh internou-se voluntariamente no dia 16 de maio de 1889, menos de uma semana após chegar à cidade, depois de um agudo e doloroso surto psicótico ocorrido dois dias antes do Natal de 1888, na Casa Amarela de Arles. Foi nessa crise, desencadeada após uma discussão com o amigo Paul Gauguin, que o pobre artista decepou parte de sua orelha esquerda após sofrer alucinações.

Entrada do hospital psiquiátrico de Saint-Paul de Mausole - Foto: Simone Catto

A entrada do hospital é belíssima e acolhedora, e eu nem precisei atravessar a magnífica aleia arborizada para sentir que aquele cenário, cercado de belas paisagens naturais, não poderia ser mais apropriado para tratar ou recuperar qualquer pessoa com um distúrbio mental.

A bela alameda que conduz ao hospital - Foto: Simone Catto

Foto: Simone Catto

A alameda que conduz à capela e ao hospital está ladeada de reproduções de pinturas de Van Gogh criadas durante a estada do artista no local, incluindo as famosas 'Íris', 'Trigal com ciprestes', 'Jardim do Hospital de São Paulo', 'Autorretrato' e muitas outras.

As vistosas 'Íris', pintadas quando o artista
estava em Saint-Paul - Foto: Simone Catto

Van Gogh - 'Íris' (1889) - óleo s/ tela - 71 X 93 cm - J. Paul Getty Museum - Los Angeles, Califórnia

Van Gogh - 'Jardim do hospício de Saint-Paul' (maio/1889) - óleo s/ tela - 91,5 X 72 cm
 Kröller-Müller Museum - Otterlo, Holanda

Foto: Simone Catto

A construção que abriga o hospital é bem antiga. Erigida nos séculos XI e XII em estilo românico, era, originalmente, um monastério. Assim permaneceu por séculos até os monges serem desalojados durante a Revolução Francesa. A partir do início do século XIX, o local tornou-se um hospital particular. Vários médicos e funcionários associados às Irmãs de São Vicente de Paulo e São José de Vesseaux sucederam-se no comando do estabelecimento e, em 1852, o prefeito da região transformou-o em um asilo privado destinado exclusivamente a pacientes psiquiátricos, com capacidade para abrigar 50 homens e 50 mulheres. Até hoje Saint-Paul acolhe e trata apenas doentes mentais. 

A instituição deve seu nome à proximidade com o mausoléu romano dos ''Julii'', da família da esposa de Júlio César, que por sua vez fica ao lado de um Arco do Triunfo. Os dois imponentes e bem preservados monumentos da Antiguidade são motivo de grande orgulho para Saint-Rémy, mas você poderá conhecê-los no próximo post. 

O claustro medieval no interior de Saint-Paul tem um lindo jardim e propicia o recolhimento necessário para momentos de paz e reflexão. A sensação de estar lá é realmente especial.

O belo e bem cuidado jardim do claustro de Saint-Paul de Mausole - Foto: Simone Catto

Em determinado momento, ao circular pelos jardins do hospital, ouvi uma voz masculina falando num tom alto, com uma inflexão estranha, e logo percebi que se tratava de um paciente. Porém, como seria de se esperar, os pacientes não ficam expostos à curiosidade dos visitantes. O som vinha de trás de um muro alto coberto de vegetação, delimitando uma área restrita, e acredito que seja lá que os internos tomem sol e contemplem a natureza sob os cuidados dos funcionários e protegidos de olhares curiosos.

As reproduções de obras de Van Gogh estão por toda parte - Foto: Simone Catto

Assim que chegou ao hospital, Van Gogh foi instalado em um quartinho exíguo e modesto no Pavilhão dos Homens, porém ganhou mais dois quartos extras: um no térreo, que funcionou como ateliê, e outro como depósito para guardar suas obras. Poucas semanas após sua chegada, o artista descreveu, em uma carta ao irmão Theo, como eram bonitos os jardins que podia vislumbrar através da janela de seu ateliê improvisado. No início de junho de 1889, o dr. Théophile Peyron, diretor do estabelecimento, permitiu que Van Gogh pintasse nos jardins e depois na parte de fora dos portões, desde que devidamente supervisionado. O diretor mal podia suspeitar que sua compreensão e benevolência permitiriam a criação de uma das maiores obras-primas da história da arte: a pintura 'Noite Estrelada', realizada por Van Gogh no dia 18 de junho daquele ano.

Foto: Simone Catto

Van Gogh - 'Noite Estrelada' (18/6/1889) - óleo s/ tela - 74 X 92 cm - The Museum of Modern Art (MoMA) - Nova York

Quatro semanas mais tarde, Van Gogh despachou cerca de trinta trabalhos para o irmão, em Paris, incluindo a pintura 'Iris'. Infelizmente, no dia 16 de julho, o artista sofreria outro "ataque", como costumava se referir a seus surtos: enquanto pintava em um ponto próximo ao hospital, de repente principiou a devorar sujeira do chão e o conteúdo de um de seus tubos de tinta, até ser reconduzido ao quarto por um atendente. Durante quase seis semanas após esse triste episódio, Van Gogh ficou confinado a seu dormitório e proibido de pintar. Em uma carta ao irmão, pediu que este intercedesse junto ao dr. Peyron, explicando que a pintura era essencial para sua recuperação. No final de agosto, recebeu permissão para usar os pincéis novamente.

O acesso ao quarto de Van Gogh se dá por uma escada medieval do período românico, e o singelo cômodo que abrigou o artista foi reconstituído fielmente. É muito emocionante adentrar aquele espaço e contemplar os mesmos objetos, as mesmas paredes e paisagens que ele contemplou naquele breve, porém fecundo, ano de internação.

O espartano dormitório de Van Gogh em Saint-Paul - Foto: Simone Catto

Era nessa escrivaninha, provavelmente, que o artista
escrevia as cartas a Theo durante sua estada no hospital.
Foto: Simone Catto

Foto: Simone Catto

A partir de sua janela, Van Gogh avistava um jardim que ao mesmo tempo o fascinou e perturbou, retratado em quatorze obras. Hoje aberto ao público, o jardim tem flores, plantações de lavandas e trigo, pomar, árvores e os onipresentes ciprestes reconhecíveis em tantas de suas obras.

Vista da janela do quarto de Van Gogh - Foto: Simone Catto

Esta foto eu tirei posicionando a câmera através das grades - Foto: Simone Catto

Campo de lavanda no jardim de Saint-Paul - Foto: Simone Catto

Foto: Simone Catto

Ao caminhar por ali, naquela paisagem tão bela e cheia de paz, é difícil acreditar que o lugar abrigue espíritos tão angustiados. Ao mesmo tempo em que me emocionava e deleitava seguindo os passos do grande artista, fui invadida também por um grande sentimento de compaixão para com aquele homem genial que teve uma existência tão sofrida e conturbada. Sua presença está em todo lugar. Também no jardim são exibidas reproduções de suas obras.  

Detalhe da plantação de lavanda - Foto: Simone Catto

Neste ângulo vemos as reproduções das obras - Foto: Simone Catto


Van Gogh - 'Amendoeira em flor' (1890) - óleo s/tela - 74 X 92 cm - Museu Van Gogh - Amsterdã

Foto: Simone Catto

Embora Saint-Paul de Mausole seja prioritariamente um hospital psiquiátrico, posiciona-se também como centro cultural. Segundo a própria instituição, sua conduta tem, como princípio, desestigmatizar os pacientes psiquiátricos. Em resposta ao sonho de Van Gogh de criar uma comunidade de artistas no sul da França, o hospital criou, em 1995, o projeto de arte-terapia Valetudo (nome da deusa romana da Saúde), com oficinas e uma galeria de arte que dão para o claustro. Aliando arte, pesquisa e tratamento, a iniciativa permite que os pacientes atendidos ou internados criem trabalhos particularmente poéticos que expressem sua complexa jornada interior. As obras são exibidas e ficam disponíveis para venda perto da loja. 

Saí de Saint-Paul com a alma leve e desci a pé, feliz, a longa avenida Vincent Van Gogh que me conduziu ao centro histórico de Saint-Rémy. Vincent continuou comigo.

A calçada ao longo de toda a avenida Vincent Van Gogh é pontilhada
por essas pequenas esferas de ferro - uma singela e simpática homenagem
ao habitante mais ilustre de Saint-Rémy-de-Provence - Foto: Simone Catto


quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Famosa coleção de arte saqueada pelos nazistas é exibida em Jerusalém.

Quem estiver em Jerusalém neste momento está tendo uma rara oportunidade para conferir dezenas de obras de grandes mestres da arte que ficaram ocultas por décadas dos olhos do mundo. A infame coleção de aproximadamente 1.590 obras que o recluso Cornelius Gurlitt herdou do pai marchand, um colaborador nazista, e ficou escondida em seu apartamento, está chegando a Israel. Uma exposição com cerca de cem peças, incluindo obras de Pierre-Auguste Renoir, Édouard Manet, Otto Dix e Max Ernst, bem como desenhos inéditos de Eugène Delacroix, está sendo exibida no Museu de Israel até 24 de janeiro de 2020.

Reunida por Hildebrand Gurlitt, a coleção de arte foi descoberta pelas autoridades alemãs durante uma investigação fiscal em 2012. Como as atividades e a proximidade do ancião Gurlitt com o Terceiro Reich eram amplamente conhecidas, a procedência das obras, encontradas em Munique e Salzburgo, foi imediatamente questionada. Quantas foram vendidas sob coação por famílias judias ou simplesmente confiscadas pelos nazistas? Ainda não sabemos.

Sabemos, porém, que essa exposição no Museu de Israel, intitulada 'Escolhas fatídicas', marca a primeira viagem de obras do tesouro de Gurlitt para aquele país. A mostra inclui o 'Retrato de Maschka Mueller', de Otto Mueller, declarado "degenerado" pelos nazistas e adquirido por Gurlitt em 1941, assim como o autorretrato 'Fumando', de Otto Dix, apreendido pelo Exército dos EUA em 1945 e restituído a Hildebrand Gurlitt em 1950. Outros trabalhos, como a colagem de Max Ernst 'A casa da Soldado', não têm a bandeira vermelha que pudesse associá-los aos nazistas.

"As circunstâncias históricas por trás desse tesouro tornam responsabilidade nossa expô-lo ao público", disse o diretor do museu, Ido Bruno, em comunicado. "'Escolhas fatídicas' descreve o destino da arte na Europa nos anos sombrios do regime do Terceiro Reich e gera uma discussão profunda sobre a conexão entre arte e ética, bem como a diferença entre preferências políticas e gostos pessoais".

Antes de morrer, Gurlitt legou toda a sua coleção ao Kunstmuseum (Museu de Belas Artes) de Berna, Suíça. O museu, que está ajudando a organizar a mostra do Museu de Israel, realizou a primeira exposição dos trabalhos em parceria com o Bundeskunsthalle em Bonn, Alemanha, em 2017 e 2018.

Jornalistas na pré-exibição das primeiras obras-primas de propriedade de Carnelius Gurlitt no Museu de Belas Artes de Berna, Suíça, em 7/7/2017. Foto: Valeriano Di Domenico | AFP | Getty Images

Esculturas de Auguste Rodin na exposição 'Inventory Gurlitt', no Bundeskunsthalle em Bonn, Alemanha.
Foto: Oliver Berg | Getty Images 

Em Jerusalém, a exposição abordará questões relacionadas à origem das obras, e o 'Projeto de Pesquisa Gurlitt de Proveniência', em andamento e liderado pelo estado, está trabalhando para identificar quaisquer obras potencialmente saqueadas com vistas à restituição. Foram encontradas seis peças roubadas até o momento. 

Quando a exposição foi anunciada, em outubro, Monika Grütters, comissária do governo federal da Alemanha para a cultura e a mídia, afirmou à imprensa que esperava que ela estimulasse esforços para identificar os proprietários judeus das obras de arte. 

"Queríamos ser abertos e transparentes e mostrar ao público alemão e internacional o que havia efetivamente nesse tesouro de Gurlitt e esclarecer a história a fundo, as negociações de arte durante a Segunda Guerra Mundial e o período nazista", afirmou ao 'Times' de Israel Rein Wolfs, diretor do Bundeskunsthalle e membro do comitê consultivo de exposições do Museu de Israel. "Há muitas perguntas delicadas referentes à restituição". Pena que a possibilidade de que essas obras sejam expostas no Brasil um dia seja tão remota quanto as chances de eu vir a ter um Monet na parede de casa.

Fonte: Artnet

sábado, 23 de novembro de 2019

Arles, a cidade que atravessou séculos para abrigar o café mais famoso do mundo.

Se você leu meu post anterior, deve se lembrar que este é a continuação, isto é, a segunda parte da matéria que escrevi sobre Arles, cidade do sul da França com um expressivo patrimônio arqueológico e cultural. E se você realmente tem acompanhado meus posts do segundo semestre de 2019, deve ter notado também que publiquei vários relatos sobre essa viagem à Provence que muito enriqueceu meus conhecimentos sobre o mundo e os franceses. Talvez, você possa até achar repetitivas as atrações das cidades sobre as quais discorri anteriormente, já que todas, invariavelmente, têm um castelo, ou ruínas arqueológicas, ou alguma herança medieval, ou - o que é mais comum - tudo isso junto.

No entanto, caro leitor, eu lhe asseguro que nenhuma cidade, mas nenhuminha mesmo, é igual à outra. As percepções e impressões que cada uma delas me causou foram totalmente diferentes, até porque cada uma tem um passado e uma geografia. Sem falar, é claro, que suas energias também diferem. Todas, porém, têm algo em comum: são fascinantes com suas histórias, suas paisagens, seus dramas, seus personagens.

Por tudo isso, se você, assim como eu, gosta de história, de arte, arqueologia e cultura, tudo regado a doses generosas de natureza, acredito que vá gostar do que tenho a contar nesta segunda matéria sobre Arles. Até porque a cidade abrigou Vincent Van Gogh durante um período e inspirou o artista a criar algumas de suas pinturas mais conhecidas. E isso, por si só, já a torna suficientemente interessante - pelo menos para mim.

Então vamos lá. No post anterior, falei sobre minha visita aos dois teatros romanos e às Termas de Constantino, que estão entre as principais heranças arqueológicas de Arles. Também comentei que, no sul da França, não raro o patrimônio cultural das cidades pode ser muito maior do que imaginamos – e é aí que reside grande parte da graça em conhecê-las. Tudo bem que, planejadora que sou, havia preparado um roteiro razoavelmente cuidadoso destacando os lugares que pretendia visitar. No entanto, devo dizer que é preciso estarmos abertos para o inesperado e o imponderável, porque ótimas surpresas podem nos espreitar virando a esquina. Desviar da rota, sair um pouco da curva e se aventurar faz parte. Às vezes, eu traçava um caminho na estrada e, no meio dela, avistava ao longe algo que me interessava: a ponta de uma torre, o crucifixo de uma igreja, ou mesmo um vinhedo exuberante... Aí eu parava o carro e ia conferir de perto para ver se era tudo aquilo mesmo. E já na cidade, caminhando rumo às atrações que havia programado, muitas vezes acabava me entretendo com outra coisa pelo caminho. Na foto abaixo, por exemplo, achei interessante o padrão geométrico formado com o arco e a sombra.

Foto: Simone Catto

Rua de Arles perto do anfiteatro romano - Foto: Simone Catto

Na foto a seguir, está um café que achei charmoso. Não hesitei em virar o celular para conseguir enquadrá-lo todo, inclusive a lanterna na parede. Peço desculpas se a foto desencadeia uma labirintite!

Foto: Simone Catto

Mas o café que estava no meu roteiro e que eu não sairia de Arles de jeito nenhum sem conferir pessoalmente é este abaixo, na Place du Forum. Consegue reconhecê-lo? Foi imortalizado em uma das mais belas e famosas pinturas de Vincent Van Gogh, o 'Terraço do Café na Praça do Fórum, Arles, à Noite', de 1888, que está em um museu da Holanda. A única coisa que destoou no visual foi o toldo amarelo exageradamente grande estendido sobre a fachada, que não tem nada a ver com a contenção do discreto toldo da pintura do artista. Além de feio, o toldo do século XXI aumentou ainda mais a sensação de calor num dia em que a temperatura ultrapassou fácil os 30°C. Talvez um tipo como Donald Trump sentisse certa identificação com aquele topete de lona amarela, mas o pobre Vincent certamente engoliria os pincéis com tinta e tudo de tanto desgosto.

Café Van Gogh - Foto: Selma

Van Gogh - 'Terraço do Café na Praça do Fórum, Arles, à Noite', 1888 - óleo s/ tela
80,7 X 65,3 cm - Museu Kröller-Müller - Otterlo, Holanda

O fato é que o famoso café eternizado pelo mestre holandês virou uma espécie de "pega-turista" mas, mesmo assim, sentei em uma das mesas para tomar um sorvete – o qual, aliás, chegou semiderretido. Van Gogh merecia mais. Peguei na Wikipedia uma foto em que o tal toldo não estava estendido, e o café me pareceu bem mais aprazível. Enfim...

Café Van Gogh, Arles - Foto: Wikipedia

As alusões à estada de Van Gogh em Arles estão aqui e ali, como na vitrine abaixo. A pintura da mulher no pôster azul, aliás, está em nosso MASP. Trata-se de 'A Arlesiana', executada pelo mestre holandês em 1890.

Foto: Simone Catto

Van Gogh - 'A Arlesiana', 1890 - óleo s/ tela - 65 X 54 cm - MASP - São Paulo

Felizmente, minha experiência gastronômica em Arles não se resumiu ao sorvete derretido. Procurando um lugar para almoçar nas ruas sinuosas da parte antiga, encontrei um restaurante e bar delicioso encravado na curva de uma ladeira. Peguei uma mesa bem gostosa no terraço que, embora pequenino, era ao ar livre e tinha uma atmosfera superagradável.

A vista de minha mesa do restaurante - Foto: Simone Catto

Com aquele calor todo, preferi comer alguma coisa leve e saborear um vinho branco da região. A tábua de queijos, patês e tapenade caiu maravilhosamente bem com o pãozinho. Saí feliz da vida para continuar minha jornada.

As comidinhas com vinho branco... miam... - Foto: Simone Catto

Repare na foto abaixo. Estou até agora me perguntando como e por que aquela janela foi parar ali. O mais provável é que a construção que a sustenta já existisse e o prédio ao lado, mais moderno e atrevido, a canibalizou sem piedade. Folgado.


Foto: Simone Catto

Perto do café de Van Gogh, ainda na Place du Forum, há um resquício de um templo romano preservado que foi anexado a um hotel de construção bem mais moderna. Ou, melhor dizendo: o hotel é que foi anexado a ele. Achei bem pitoresca essa simbiose arquitetônica - me lembrou aquelas plantas parasitas, como as orquídeas, que vivem agarradas às árvores.

Resto de templo romano na Place du Forum - Foto: Wikipedia

A principal praça da cidade, porém, é sem dúvida a Place de la République. É lá que fica o prédio da Prefeitura (Hôtel de Ville), um triunfo da arquitetura clássica construído entre 1673 e 1676 e inspirado no estilo de Jules Hardouin-Mansart, nomeado arquiteto de Luís XIV em 1676. Pouco depois que o prédio foi concluído, um obelisco egípcio de 15 metros de altura encontrado no anfiteatro romano foi transportado para lá numa operação que deve ter gerado um transforno danado. Se esse transporte já seria difícil hoje, imagine mais de três séculos atrás!

Place de la République com o obelisco egípcio, o prédio da Prefeitura ao fundo e a Igreja Saint-Trophime à direita.
Foto: Melvin

Ainda na Place de la République, entrando pelo prédio da Prefeitura, visitei os Cryptoportiques, uma extensa galeria subterrânea com arcadas em formato de ferradura, construída no ano 40 a.C., que fazia parte do antigo Fórum Romano. A esse respeito, vale lembrar que toda cidade romana que se prezasse tinha um fórum. A iluminação fraca não favorecia fotos e achei o lugar um tanto opressor, de forma que não via a hora de sair dali para ver a luz do sol. E por falar em opressão, em um pátio atrás do prédio da Prefeitura, topei com um lugar que me remeteu a desespero e desolação. Conforme a inscrição na placa, tratava-se de três celas de prisão onde foram encarcerados arlesianos antes de serem deportados, pelos nazistas, aos campos de concentração. Um passado triste e assustadoramente recente.

As celas de prisão onde foram aprisionados os pobres arlesianos deportados para os campos de concentração nazistas.
Foto: Simone Catto

Foto: Simone Catto

Um dos monumentos que estavam na minha lista de visitas era a famosa Igreja de Saint-Trophime, na Place de la République, que eu já conhecia dos livros de história da arte e que integra os estilos românico e gótico.

Fachada da Igreja Saint-Trophime - Foto: Simone Catto

A igreja começou a ser construída por volta do ano 1100, mas sua bela fachada ladeada de estátuas dos Apóstolos e o frontão que representa Cristo cercado pelos quatro Evangelistas (Mateus, Lucas, Marcos e João) data de 1180-1190.

Detalhe dos Apóstolos de Cristo esculpidos na fachada
da igreja - Foto: Simone Catto

Foto: Simone Catto

O sino e o transepto também são do período românico, assim como a nave e os corredores abobadados de meados do século XII.

A nave em estilo românico de Saint-Trophime
Foto: Simone Catto

Detalhe do interior da igreja - Foto: Simone Catto

Na metade do século XIV, a cabeceira da igreja, que compreende o coro, o altar e belas capelas adjacentes, foi construída já no estilo gótico, mais extravagante, para substituir o austero altar românico.

Capela de Saint-Trophime no estilo gótico.
Foto: Simone Catto

Neste altar, havia várias relíquias de santos.
Foto: Simone Catto

Em minhas andanças pela cidade, encontrei também a Igreja Notre-Dame-de-la-Major atrás do anfiteatro romano, a qual tem um altar dedicado a Nossa Senhora e teve a palavra "Major" acrescentada ao nome por se localizar no topo da colina de Arles. Segundo descobertas arqueológicas de 1758, a igreja foi construída no século XII no local onde antes havia um templo romano, mas sofreu alterações sucessivas até o século XVII. Como o quarteirão foi bombardeado em 1944, durante a II Guerra Mundial, a abóbada e o sino da igreja foram danificados e posteriormente restaurados.

Igreja Notre-Dame-de-la-Major, do séc. XII.
Foto: Simone Catto

E já que estamos falando de igrejas, é bom ressaltar que na Provence os símbolos de religiosidade dão sinal de vida a todo momento. Eles estão nas casas, nas ruas, nas praças. A imagem abaixo, por exemplo, com moldura dourada, representa Saint-Roch, santo nascido em Montpellier durante a Guerra dos Cem Anos e homenageado na praça de Arles que leva seu nome. Pergunto-me se essa moldura não desbota, assim exposta às intempéries do clima. Ou será um milagre de Saint-Roch?

Imagem do santo na Place Saint-Roch - Foto: Simone Catto

Agora que você conheceu um pouco de Arles, quem sabe não se inspira a fazer uma visita por lá? Se ainda quiser saber mais sobre o patrimônio arqueológico da cidade, confira aqui meus passeios às construções e monumentos do período romano.