domingo, 26 de janeiro de 2020

A história de Kafka e a boneca perdida.

Lidar com as perdas é sempre algo complicado para todos nós, mas, para algumas pessoas, pode significar a diferença entre a vida e a morte – mesmo que seja a morte em vida. A esse respeito, uma psicoterapeuta chamada May Benatar publicou, no Huffington Post, um relato muito inspirador sobre um fato que teria ocorrido com o escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924), autor de "A Metamorfose" e o "Processo", entre outras obras. Segue a tradução: 

"Diz a história que, um dia, o escritor Franz Kafka encontrou uma menininha no parque onde costumava caminhar diariamente. Ela estava chorando, desolada, porque havia perdido sua boneca. Kafka se ofereceu para ajudá-la a procurar e marcou um encontro com a menina no dia seguinte, no mesmo lugar. Incapaz de encontrar o brinquedo, ele escreveu uma carta como se ela tivesse sido redigida pela própria boneca e a leu para a garotinha quando se encontraram: "Por favor, não se lamente por mim, parti numa viagem para ver o mundo. Escreverei a você sobre minhas aventuras". Esse foi o início de muitas cartas. Quando ele e a menininha se encontravam, ele lia as cartas redigidas cuidadosamente com as aventuras imaginadas da amada boneca. A garotinha se confortava. Quando os encontros chegaram ao fim, Kafka presenteou a menina com outra boneca. Como a nova boneca era diferente da original, uma carta anexa explicava: "minhas viagens me transformaram…". Muitos anos depois, a garota, agora crescida, encontrou uma carta enfiada numa abertura escondida da querida boneca substituta. Em resumo, dizia: "Tudo o que você ama, você eventualmente perderá, mas, no fim, o amor retornará sob uma forma diferente".

Existem muitas versões para a história de Kafka e da boneca. Ouvi essa de Tara Brach, psicóloga e professora de meditação budista em Washington DC.

Somente depois de muitas narrativas sou capaz de relatá-la sem chorar. E descobri que, quando a conto a outras pessoas, jovens ou velhas, meu interlocutor fica invariavelmente comovido, às vezes explodindo em lágrimas.

Quando procurei a confirmação da história na Internet, encontrei uma fonte que se referia a ela como uma "história de cura". Parece correto. Se ela realmente aconteceu, é real, verdadeira e fornece um modelo para a cura.

Para mim, há duas lições sábias nessa história: luto e perda são onipresentes, mesmo para uma criança pequena. E o caminho para a cura é procurar como o amor retorna de outra forma.

Acho que há vantagens em ver o luto como onipresente, como parte inevitável da experiência de ser humano. O luto é muito mais do que a perda de um ente querido, embora essa talvez seja sua manifestação mais profunda. A perda da boneca na história é devastadora para a menina e é isso que estimula Kafka a criar as maravilhosas histórias de viagens e aventuras. Ele percebeu a profundidade de sua dor. Diz-se que ele dedicou tanto tempo e cuidado à criação dessas cartas para a menininha quanto a outros escritos.
Manter a perspectiva da universalidade da perda nos ajuda a lidar com a vergonha e a solidão. Se uma profunda reação de luto com um divórcio, ou a saída dos filhos de casa, uma gravidez abortada, o desemprego, a aposentadoria, as limitações dos filhos, o envelhecimento ou a perda de saúde é algo que compartilhamos com nossos semelhantes, ficamos menos solitários. E não é preciso ter vergonha de nos sentirmos assim porque a vergonha é legado do isolamento.

E quanto ao amor voltar de uma forma diferente? Acredito que as cartas de Kafka constituíram um verdadeiro presente de amor, e o que acabou por curar a garotinha foi o relacionamento de ambos, que funcionou como um verdadeiro bálsamo. Alguém se importou o suficiente com sua dor a ponto de escrever as encantadoras histórias das aventuras da boneca perdida. Um grande escritor, nesse sentido.

É confortante manter a convicção de que o amor retornará e é nossa missão reconhecê-lo sob sua nova forma.

Publicado no Huffington em 10/3/2011 - por May Benatar, psicoterapeuta e escritora.

Clique aqui para conferir o original em inglês.

Nenhum comentário:

Postar um comentário