quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Ruínas de Glanum: dos celtas aos romanos num piscar de olhos.

Cheguei a Saint-Remy-de-Provence, no sul da França, movida pelo desejo de conhecer os locais pelos quais Van Gogh havia passado e contemplar as paisagens que ele havia transformado em arte. Contudo, ao pesquisar o roteiro, acabei descobrindo que a cidade tinha muito mais atrativos do que o fato de ter abrigado e inspirado o gênio holandês dos pincéis.

Foi assim que, antes de sair ao encalço do artista, acabei parando em Glanum, um magnífico sítio arqueológico dentro do território de Saint-Rémy que remonta aos séculos VII e VI a.C. Os primeiros habitantes locais foram os Salyens, gauleses celtas da Provence, que se estabeleceram na encosta da cadeia de montanhas dos Alpilles até o século II a.C. Esse povo cultuava um deus chamado Glan e acreditava que ele habitava uma fonte sagrada na companhia de um séquito de bondosas "Deusas-mãe", também chamadas "Glanicae" (talvez essa palavra seja o equivalente celta a "Glanetes", rs). O povoado cresceu em torno dessa fonte, cujas águas eram consideradas terapêuticas, e sofreu influência dos gregos de Marselha.

A paisagem no entorno de Glanum é linda - Foto: Simone Catto

Glanum - Foto: Simone Catto

A partir do século I a.C., os romanos conquistaram a região e impuseram seus modelos arquitetônicos, como os templos geminados dedicados ao culto do imperador, o fórum (praça pública) e as termas. A fonte sagrada, que até então era simplesmente esculpida em uma rocha, ganhou o reforço de uma construção. Foi no período romano, aliás, que Glanum alcançou sua maior pujança.

Fonte sagrada - Foto: Chris Hellier

Nesta vista assinalei, em vermelho, os degraus que levam à fonte sagrada - Foto: Simone Catto

Posteriormente, em 260 d.C., o povoado foi destruído por invasões bárbaras e depois abandonado, para ser redescoberto somente em 1920. O fato é que caminhar pelo sítio arqueológico, que preserva resquícios das épocas celta, helenística e romana, é como mergulhar no passado dos povos que se sucederam – nem sempre pacificamente - na região. A imagem abaixo é um bom exemplo. A parede de pedra, na parte de trás, é do tempo dos celtas. E logo à sua frente, dá para reconhecer uma estrutura com coluna visivelmente romana. Tão longa convivência deu em casamento.

A parede celta e o pilar romano, felizes para sempre - Foto: Simone Catto

Detalhe da parede celta coroada por uma árvore majestosa.
Foto: Simone Catto
 
Foto: Simone Catto

Os romanos construíram, no entorno da fonte sagrada, um santuário a Hércules e um templo a Valetudo, deusa da saúde.

Ruínas do templo Valetudo - Foto: Simone Catto

Entorno do templo Valetudo enfeitado pelas papoulas, que se insinuam timidamente - Foto: Simone Catto

Dois templos de arquitetura idêntica, mas de tamanhos diferentes, foram erigidos para homenagear a família do imperador romano. Romanos adoravam templos, deuses e imperadores, o que foi ótimo para o legado arquitetônico que deixaram para nós.

Os templos geminados - Foto: Simone Catto

Os templos geminados no original - Foto: Simone Catto

Os trabalhos arqueológicos identificaram várias estruturas e ambientes que possuíam funções muito específicas. O fórum era uma praça pública que reunia a população para as atividades econômicas e políticas e cerimônias religiosas. Era lá que se situava o mercado. Na foto abaixo, realizada a partir de um mirante, dá para ver o pátio retangular do fórum romano com um poço redondo.

Vista a partir do mirante - a praça do fórum é bem evidente no átrio aberto - Foto: Simone Catto

Santuário de Hércules - Foto: Simone Catto

Detalhe ornamental romano - Foto: Simone Catto

Abaixo temos a estrutura de uma piscina, denominada "natatio", que provavelmente fazia parte do complexo das termas. Acredita-se que a escultura de carranca na borda, à direita, represente Dionísio, deus do vinho, das festas e do teatro.

O "natatio", ou piscina - Foto: Simone Catto

A cúria, reconhecível por sua abside, era onde se reuniam os políticos eleitos e gestores locais. Uma outra sala, anexa, servia de tribunal.

Aqui a abside arredondada da cúria se destaca na paisagem - Foto: Simone Catto

O ambiente a seguir mostra um defumador de vinhos. Os romanos tinham por hábito defumar a bebida, a fim de conservá-la melhor e por mais tempo. Espertos, esses romanos. Já sabiam o que é bom.

Detalhe dos defumadores de vinhos - Foto: Simone Catto

Abaixo está a Casa das Antas, típica residência mediterrânea em que os cômodos ficavam distribuídos em torno de um tanque. E antes que você pense que as antas fizessem parte da família, aviso que a casa recebeu seu nome devido a duas pilastras encimadas por capitéis coríntios, também chamadas de "antas".

Casa das Antas - Foto: Simone Catto

Nas imediações de Glanum estão um Arco do Triunfo e o mausoléu "Julii", construídos entre 30 e 20 a.C. Sim, romanos também adoravam arcos. Não duvido que tenham inventado o arco-íris.

O mausoléu Julii e o Arco do Triunfo - Foto: Jean C.

O mausoléu foi erguido por três irmãos aristocratas da família Julii em homenagem ao avô e ao pai Caius, mas o gesto nobre também escondia uma motivação bem mais mundana: ostentar aos quatro ventos a riqueza da família. Os Julii foram agraciados com uma grande honraria: devem seu nome a Júlio César porque o avô, ao tornar-se soldado do imperador na Guerra dos Gaules (a partir de 58 a.C.), ganhou a cidadania romana.

A base do mausoléu é decorada com relevos de cenas da batalha de Zela (47 a.C.), durante a qual Júlio César teria pronunciado a célebre frase "veni, vidi, vici; vim, vi, venci". É a única representação conhecida dessa batalha.

Detalhe do mausoléu - Foto: Patrick

Fiquei longas horas em meio às ruínas de Glanum. A graça de visitar um lugar desses, pelo menos para mim, é sentar, respirar fundo, sentir a atmosfera e tentar recriar, em minha imaginação, como devia ser a vida das pessoas que viveram lá. Em determinado momento criei em minha mente a imagem dos celtas felizes, dançando em torno da fonte sagrada e cantando para o deus Glan. Imaginei as "Glanetes" – ops, as "Glanicae", rs - saltitando alegremente a seu redor, como em um quadro de Fragonard. Até parece que estou vendo tudo aquilo agora. O bom dessas viagens, aliás, é que a alegria não se limita ao momento da visita: ela continua a viajar com a gente pela vida.

Aqui dá para ver o topo do mausoléu bem pequenininho ao fundo, à esquerda da árvore arredondada - Foto: Simone Catto

Se você também quiser saber sobre minha jornada no rastro de Van Gogh em Saint-Rémy-de-Provence, clique aqui.

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