Domingo
pude, mais uma vez, conferir isso pessoalmente no Ciclo Cinema e Psicanálise TRADIÇÃO-INVENÇÃO, que vai até 7 de
outubro na Cinemateca. Assisti ao terceiro e último filme da trilogia Imagens do Inconsciente, de Leon Hirszman:
A Barca do Sol (1983-1986, 70), que
relata mais um caso clínico da grande psiquiatra Nise da Silveira. Desta vez, o foco era Carlos Pertuis, um carioca com pai e avós franceses que, a exemplo
de Adelina Gomes, paciente abordada no primeiro filme do Ciclo, foi
internado com diagnóstico de esquizofrenia.
Carlos Pertuis - www.ccs.saude.gov.br |
Carlos nasceu em 4 de dezembro de 1910 e era o único filho homem da
família, em meio a três irmãs. Curiosamente, assim como Adelina, consta que
também era muito apegado à mãe (será que essa é uma característica dos esquizofrênicos
ou trata-se de simples coincidência?). Fisicamente frágil e psicologicamente
imaturo, Carlos possuía uma natureza sensível e religiosa. Sua instrução era
primária, mas ele gostava de ler. Com a morte do pai, entretanto, deixou de
estudar e foi trabalhar numa fábrica de calçados.
Carlos Pertuis em foto do Museu Imagens do Inconsciente - RJ |
Numa manhã de setembro de 1939, raios de sol incidiram sobre um pequeno
espelho de seu quarto. Carlos ficou deslumbrado com aquele brilho
extraordinário e teve uma espécie de visão cósmica: viu algo que, segundo suas
palavras, designou como '"O Planetário de
Deus". Ele gritou e chamou a família, pois queria compartilhar com todos
aquela visão celestial. No mesmo dia foi internado como louco. Tinha 29 anos.
Em 1946, Carlos começou a frequentar o ateliê da Seção de Terapêutica
Ocupacional do Centro Psiquiátrico Pedro II, levado pelo artista plástico Almir Mavignier, que ajudou a Dra. Nise da Silveira a montá-lo. Almir
tomou essa iniciativa ao saber que Carlos guardava os desenhos que fazia em
caixas de sapatos na enfermaria.
A
visão do "Planetário de Deus" havia
ficado gravada em sua mente. Assim que teve a oportunidade de pintar, oito anos
depois, Carlos sentiu forte necessidade de representá-la sobre papel. Ele, que
nunca havia frequentado escolas de pintura, conseguiu o feito com os meios simples
de que dispunha. Veja o resultado abaixo: a representação do universo numa
espantosa mandala macrocósmica. O centro é uma flor de ouro, símbolo do sol e
da divindade.
Carlos Pertuis - Planetário de Deus - sem data - óleo s/ papel 36,5 cm X 55 cm Foto: www.museuimagensdoinconsciente.org.br |
Carlos amava o museu, o ateliê de pintura e a oficina de encadernação. Sentia-se
verdadeiramente em casa e inclusive fazia pequenos serviços no local, como
consertar os tacos soltos. Ao final do expediente, sempre verificava se as
janelas estavam fechadas. Essas atitudes surpreendiam a equipe do hospital,
pois sua expressão verbal era praticamente ininteligível. Ele criava,
inclusive, muitos neologismos que dificultavam ainda mais a compreensão de sua
linguagem.
A arte era a única forma pela qual Carlos conseguia dar certa ordem a
seu caos psíquico, pois a imagem é uma
forma direta de expressar os processos inconscientes profundos. Com a
palavra isso não era possível, pois, segundo a Dra. Nise, "a linguagem verbal é, por excelência, o instrumento do
pensamento lógico, das elaborações e do raciocínio". Curiosamente,
porém, quando um cão ao qual Carlos era muito afeiçoado machucou a pata (o
contato com animais de estimação fazia parte da terapêutica dos pacientes), ele
foi até uma farmácia e conseguiu verbalizar perfeitamente o que desejava para
os balconistas, comprando os itens necessários para fazer um curativo no
cãozinho. Daí concluirmos que a
necessidade movida por vínculos afetivos pode ajudar pacientes esquizofrênicos
a elaborar uma linguagem ordenada.
Algumas obras surpreendem pela harmonia cromática e a beleza da
composição. Carlos participou de diversas exposições coletivas e individuais,
no Brasil e no exterior, e até sua morte, em 21 de março de 1977, havia
produzido cerca de 21.500 trabalhos, entre desenhos, pinturas, modelagens,
xilogravuras e escritos.
Carlos Pertuis - Foto: www.museuimagensdoinconsciente.org.br |
Ao
estudar a produção artística de seus pacientes, a Dra. Nise notou a abundância
de imagens circulares muito
semelhantes àquelas utilizadas para meditação ou à representação da divindade
em religiões orientais (mandalas), lembrando que o círculo é símbolo de unidade
e ordenação. Não por acaso, inúmeras obras de Carlos apresentam essas mandalas – a começar pela representação
de sua visão cósmica, o "Planetário de Deus", mostrada anteriormente. Quando a Dra.
Nise consultou Carl Jung sobre o significado dessas imagens, ele respondeu que eram
mesmo mandalas e que "correspondiam ao potencial autocurativo da psique, em
oposição à dissociação (...) uma
manifestação do inconsciente para compensar a situação caótica vivida por esses
indivíduos".
Carlos Pertuis - Mandala - Foto: www.ccs.saude.gov.br |
Carlos Pertuis - Mandala - www.ccs.saude.gov.br |
Abaixo, Jung observa mandalas criadas por pacientes na exposição "A Esquizofrenia em Imagens", apresentada pelo Museu de Imagens do Inconsciente durante o 2o. Congresso Internacional de Psiquiatria, em Zurique - 1957.
As
composições com forte presença de figuras
geométricas dispostas simetricamente também se configuram como outra
tentativa do inconsciente para organizar seu caos.
Carlos Pertuis - Imagem mostrada no filme 'A Barca do Sol' |
Os
rituais também são repetidos pelo
homem através dos tempos como uma tentativa de domar as forças desconhecidas e o
imponderável. Presentes em vários trabalhos de Carlos, eles também constituíam
um esforço de sua psique para lidar com seu lado mais obscuro.
Carlos Pertuis - belíssima imagem de ritual! - óleo s/ papelão (1951) - 50 cm X 67.5 cm Foto: www.museuimagensdoinconsciente.org.br |
No último
período da vida de Carlos, suas pinturas giraram cada vez mais em torno do tema mítico do sol. É impressionante
como muitas dessas imagens têm figuras masculinas de grandes proporções munidas
de coroas e outros atributos divinos muito próximos das descrições de Mithra, um deus indo-persa, feitas por
seus adeptos. Mithra é um deus solar e herói, cujo mito narra a "dolorosa
procura da consciência que o homem de todos os tempos vem representando sob mil
faces".
Carlos Pertuis - Sem título (1975) - lápis de cera s/ papel - 51 cm X 30 cm Foto: www.museuimagensdoinconsciente.org.br |
Carlos Pertuis - Barca do Sol (1976) - lápis de cera s/ papel - 33 cm X 48 cm Foto: www.museuimagensdoinconsciente.org.br |
Ao analisarmos tudo isso, constatamos, com espanto, que os símbolos
e mitos do inconsciente coletivo são recorrentes através dos tempos e
resgatados das profundezas para suprir determinadas necessidades de nossa
psique.
A
transmissão do filme foi seguida de debate com a psicanalista Nilde Parada
Franch e o psiquiatra e psicanalista Plínio Montagna, com mediação da
psicanalista Inês Sucar.
O próximo encontro do Ciclo Cinema e Psicanálise vai acontecer
no dia 24 de junho, às 18h, com a transmissão do filme 'E Deus Criou a Mulher',
de Roger Vadim, e debate com outros profissionais.
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