quinta-feira, 14 de junho de 2012

Ciclo Cinema e Psicanálise. A cada domingo, um novo mergulho nas profundezas da psique.

É inacreditável a riqueza de associações que a mente de um esquizofrênico pode suscitar. Uma profusão de imagens e símbolos inunda a psique dessas pessoas e, quando mediados pela análise de um profissional competente, eles surpreendem pela frequência com que o inconsciente coletivo se manifesta. 

Domingo pude, mais uma vez, conferir isso pessoalmente no Ciclo Cinema e Psicanálise TRADIÇÃO-INVENÇÃO, que vai até 7 de outubro na Cinemateca. Assisti ao terceiro e último filme da trilogia Imagens do Inconsciente, de Leon Hirszman: A Barca do Sol (1983-1986, 70), que relata mais um caso clínico da grande psiquiatra Nise da Silveira. Desta vez, o foco era Carlos Pertuis, um carioca com pai e avós franceses que, a exemplo de Adelina Gomes, paciente abordada no primeiro filme do Ciclo, foi internado com diagnóstico de esquizofrenia.

Carlos Pertuis - www.ccs.saude.gov.br

Carlos nasceu em 4 de dezembro de 1910 e era o único filho homem da família, em meio a três irmãs. Curiosamente, assim como Adelina, consta que também era muito apegado à mãe (será que essa é uma característica dos esquizofrênicos ou trata-se de simples coincidência?). Fisicamente frágil e psicologicamente imaturo, Carlos possuía uma natureza sensível e religiosa. Sua instrução era primária, mas ele gostava de ler. Com a morte do pai, entretanto, deixou de estudar e foi trabalhar numa fábrica de calçados.

Carlos Pertuis em foto do
 Museu Imagens do Inconsciente - RJ
Numa manhã de setembro de 1939, raios de sol incidiram sobre um pequeno espelho de seu quarto. Carlos ficou deslumbrado com aquele brilho extraordinário e teve uma espécie de visão cósmica: viu algo que, segundo suas palavras, designou como '"O Planetário de Deus". Ele gritou e chamou a família, pois queria compartilhar com todos aquela visão celestial. No mesmo dia foi internado como louco. Tinha 29 anos.

Em 1946, Carlos começou a frequentar o ateliê da Seção de Terapêutica Ocupacional do Centro Psiquiátrico Pedro II, levado pelo artista plástico Almir Mavignier, que ajudou a Dra. Nise da Silveira a montá-lo. Almir tomou essa iniciativa ao saber que Carlos guardava os desenhos que fazia em caixas de sapatos na enfermaria.

A visão do "Planetário de Deus" havia ficado gravada em sua mente. Assim que teve a oportunidade de pintar, oito anos depois, Carlos sentiu forte necessidade de representá-la sobre papel. Ele, que nunca havia frequentado escolas de pintura, conseguiu o feito com os meios simples de que dispunha. Veja o resultado abaixo: a representação do universo numa espantosa mandala macrocósmica. O centro é uma flor de ouro, símbolo do sol e da divindade.

Carlos Pertuis - Planetário de Deus - sem data - óleo s/ papel 36,5 cm X 55 cm 
Foto: www.museuimagensdoinconsciente.org.br

Carlos amava o museu, o ateliê de pintura e a oficina de encadernação. Sentia-se verdadeiramente em casa e inclusive fazia pequenos serviços no local, como consertar os tacos soltos. Ao final do expediente, sempre verificava se as janelas estavam fechadas. Essas atitudes surpreendiam a equipe do hospital, pois sua expressão verbal era praticamente ininteligível. Ele criava, inclusive, muitos neologismos que dificultavam ainda mais a compreensão de sua linguagem.

A arte era a única forma pela qual Carlos conseguia dar certa ordem a seu caos psíquico, pois a imagem é uma forma direta de expressar os processos inconscientes profundos. Com a palavra isso não era possível, pois, segundo a Dra. Nise, "a linguagem verbal é, por excelência, o instrumento do pensamento lógico, das elaborações e do raciocínio". Curiosamente, porém, quando um cão ao qual Carlos era muito afeiçoado machucou a pata (o contato com animais de estimação fazia parte da terapêutica dos pacientes), ele foi até uma farmácia e conseguiu verbalizar perfeitamente o que desejava para os balconistas, comprando os itens necessários para fazer um curativo no cãozinho. Daí concluirmos que a necessidade movida por vínculos afetivos pode ajudar pacientes esquizofrênicos a elaborar uma linguagem ordenada.

Algumas obras surpreendem pela harmonia cromática e a beleza da composição. Carlos participou de diversas exposições coletivas e individuais, no Brasil e no exterior, e até sua morte, em 21 de março de 1977, havia produzido cerca de 21.500 trabalhos, entre desenhos, pinturas, modelagens, xilogravuras e escritos.

Carlos Pertuis - Foto: www.museuimagensdoinconsciente.org.br

Ao estudar a produção artística de seus pacientes, a Dra. Nise notou a abundância de imagens circulares muito semelhantes àquelas utilizadas para meditação ou à representação da divindade em religiões orientais (mandalas), lembrando que o círculo é símbolo de unidade e ordenação. Não por acaso, inúmeras obras de Carlos apresentam essas mandalas – a começar pela representação de sua visão cósmica, o "Planetário de Deus", mostrada anteriormente. Quando a Dra. Nise consultou Carl Jung sobre o significado dessas imagens, ele respondeu que eram mesmo mandalas e que "correspondiam ao potencial autocurativo da psique, em oposição à dissociação (...) uma manifestação do inconsciente para compensar a situação caótica vivida por esses indivíduos".

Carlos Pertuis - Mandala - Foto: www.ccs.saude.gov.br

Carlos Pertuis - Mandala - www.ccs.saude.gov.br

Abaixo, Jung observa mandalas criadas por pacientes na exposição "A Esquizofrenia em Imagens", apresentada pelo Museu de Imagens do Inconsciente durante o 2o. Congresso Internacional de Psiquiatria, em Zurique - 1957.


As composições com forte presença de figuras geométricas dispostas simetricamente também se configuram como outra tentativa do inconsciente para organizar seu caos.

Carlos Pertuis - Imagem mostrada no filme 'A Barca do Sol'

Os rituais também são repetidos pelo homem através dos tempos como uma tentativa de domar as forças desconhecidas e o imponderável. Presentes em vários trabalhos de Carlos, eles também constituíam um esforço de sua psique para lidar com seu lado mais obscuro.

Carlos Pertuis - belíssima imagem de ritual! - óleo s/ papelão (1951) - 50 cm X 67.5 cm Foto: www.museuimagensdoinconsciente.org.br

No último período da vida de Carlos, suas pinturas giraram cada vez mais em torno do tema mítico do sol. É impressionante como muitas dessas imagens têm figuras masculinas de grandes proporções munidas de coroas e outros atributos divinos muito próximos das descrições de Mithra, um deus indo-persa, feitas por seus adeptos. Mithra é um deus solar e herói, cujo mito narra a "dolorosa procura da consciência que o homem de todos os tempos vem representando sob mil faces".

Carlos Pertuis - Sem título (1975) - lápis de cera s/ papel - 51 cm X 30 cm
Foto: www.museuimagensdoinconsciente.org.br

Carlos Pertuis - Barca do Sol (1976) - lápis de cera s/ papel - 33 cm X 48 cm
Foto: www.museuimagensdoinconsciente.org.br 

Ao analisarmos tudo isso, constatamos, com espanto, que os símbolos e mitos do inconsciente coletivo são recorrentes através dos tempos e resgatados das profundezas para suprir determinadas necessidades de nossa psique.

A transmissão do filme foi seguida de debate com a psicanalista Nilde Parada Franch e o psiquiatra e psicanalista Plínio Montagna, com mediação da psicanalista Inês Sucar.

O próximo encontro do Ciclo Cinema e Psicanálise vai acontecer no dia 24 de junho, às 18h, com a transmissão do filme 'E Deus Criou a Mulher', de Roger Vadim, e debate com outros profissionais.

A Cinemateca Brasileira fica no Largo Senador Raul Cardoso, 207 - Vila Mariana. Informações: (11) 3512-6111 – ramal 215 – www.cinemateca.org.br. Os ingressos custam R$ 8,00 (inteira) e R$ 4,00 (meia-entrada). Maiores de 60 anos e estudantes do Ensino Fundamental e Médio de escolas públicas têm entrada gratuita mediante a apresentação de documento. Não perca!

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