Alguns meses após visitar uma ótima exposição de Portinari na
Galeria Almeida e Dale, chegou a vez do mestre Di Cavalcanti (1897-1976), que está com uma bela
mostra no local. Estive lá numa manhã de sábado e, assim como ocorreu em
minha visita anterior, estranhei encontrar pouquíssimos visitantes em se
tratando de uma exposição tão significativa e ainda por cima com entrada
franca. A Galeria Almeida e Dale, aliás, tem uma generosa tradição de promover exposições
de alto nível nas quais o público pode apreciar, gratuitamente, obras dos mais renomados
artistas, em sua maioria do período modernista brasileiro.
A galeria Almeida e Dale naquela manhã de sábado... cadê os visitantes? - Foto: Simone Catto |
Com curadoria de Denise Mattar, a exposição Di Cavalcanti – Conquistador de Lirismos contou com a consultoria
de Elisabeth Di Cavalcanti, filha do artista, e reúne 54 obras do período
compreendido entre 1925 e 1949. Há cerca de treze anos Elisabeth vem
desenvolvendo uma extensa pesquisa sobre o pai e está criando o Instituto Di
Cavalcanti, que terá, como primeira iniciativa, o lançamento de um livro sobre
o artista no dia 8 de abril, durante a SP-Arte. Com mais de 200 imagens de
obras, esse livro virá em boa hora, já que existem poucas publicações sobre o
mestre e, além disso, a maioria é antiga e já está esgotada nas livrarias.
Um outro detalhe que explica a importância da exposição é que as
obras são todas provenientes de coleções particulares de São Paulo, Rio de
Janeiro, Fortaleza e Salvador, de modo que o público dificilmente teria a
oportunidade de apreciá-las em outro contexto. Não dá para perder!
Além de ser um dos mais importantes representantes do modernismo
brasileiro, Di Cavalcanti foi um artista singular por muitas razões.
Uma delas é que ele foi o único que manteve uma ativa produção do início ao fim
do período modernista e não parou de criar até sua morte, em 1976. Além disso,
ao contrário de seus colegas modernistas, ele precisava trabalhar para se
sustentar, o que de certa forma o aproximou da vida real, dos tipos comuns
e das mulheres que retratava em suas obras.
Di Cavalcanti - 'Abigail' (1940) - óleo s/ tela - Coleção Particular - RJ - Foto: Divulgação |
Autodidata, ilustrador, desenhista, caricaturista e pintor, Di
foi o pintor que melhor captou as nuances, o caráter e o lirismo do povo brasileiro. Nascido Emiliano de Albuquerque e Mello em 6 de setembro de
1897, no Rio de Janeiro, passou a infância no bairro de São Cristóvão. Embora sua
família não fosse rica, o artista teve muita sorte: sua tia Maria Henriqueta foi
casada com o abolicionista José do Patrocínio, o que o levou a conviver, desde criança, com a música e a
literatura. Seu pai faleceu em 1914 e, aos 17 anos, ele se viu obrigado a ganhar
seu sustento, trabalhando como caricaturista e ilustrador para a imprensa. Graças
a seu talento, logo conseguiu se inserir nos círculos intelectuais vinculados
aos jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro.
Di Cavalcanti decidiu tornar-se artista em 1918, estudando
pintura no ateliê de George Fischer Elpons, onde tomou contato com os
movimentos europeus. Consta que o famoso cronista João do Rio apresentou o
jovem ao submundo carioca, com seus boêmios, bêbados e prostitutas. Mal sabia João do Rio que estava prestando um serviço de valor inestimável à arte brasileira!
Foto: Simone Catto |
Após ajudar a convencer Anita Malfatti a realizar uma exposição em
1917 que seria considerada a gênese da Semana de Arte Moderna de 1922, o
próprio Di se tornaria um dos principais articuladores e participantes do
evento que abalou a arte de São Paulo e do Brasil. Produziu o catálogo e o
programa da Semana, organizou a participação de Villa-Lobos e convidou vários
artistas, sendo que ele mesmo participou com doze obras.
Ilustração de 1922 - Foto: Simone Catto |
Di Cavalcanti - 'Pierrôs' (década de 1920) - guache e nanquim s/ papel - Coleção Particular - RJ Foto: Simone Catto |
O período abordado na exposição da Almeida e Dale marca o
amadurecimento de Di Cavalcanti após retornar de sua primeira viagem à Europa,
em 1925, tendo vivido dois anos em Paris como jornalista. Lá ele frequentou a
Academia Ranson, visitou museus e exposições e ficou vivamente impressionado
com o expressionismo alemão. Além disso, conheceu gente do porte de Picasso,
Léger, Matisse, Eric Satie, Jean Cocteau e outros intelectuais franceses, além
de viajar à Itália para estudar de perto obras de Ticiano, Michelangelo e Leonardo
Da Vinci. Esse contato com a vanguarda europeia e com os velhos mestres seria
determinante para sua obra, e o artista retornou ao Brasil sabendo exatamente qual
caminho trilhar.
Di Cavalcanti - 'Josephine Baker' (década de 1920) - guache s/ cartão - Coleção Particular - SP Foto: Simone Catto |
Na década de 30, Di Cavalcanti teve problemas políticos: em São
Paulo, foi preso como getulista, e no Rio, como comunista. Era mais ou menos como no dito popular: "Se ficar o bicho pega, se correr o bicho come!" Mas Di não poderia ter encontrado solução melhor: em 1936, conseguiu
fugir para Paris, onde permaneceu por outros quatro anos, trabalhando para a
Radio Diffusion Française. Iria voltar em 1940 devido à Segunda Guerra Mundial,
deixando em Paris 27 pinturas a óleo e treze desenhos.
Di Cavalcanti - 'Vênus' (1938) - óleo s/ tela - Coleção Particular - Foto: Simone Catto |
Nesse período, que se estende por toda a década de 1940, o
lirismo e a sensualidade se revelaram com toda a pujança na obra do artista. Suas
pinturas mostram os tipos suburbanos, os homens comuns retratados nas favelas, nos botecos, nas docas, nos bordéis e nas festas populares, e as mulheres – muitas, de todas as cores, perfis
e classes sociais: mulatas, negras, brancas, ricas e pobres, morenas e loiras,
retratadas num clima lírico, sensual, langoroso. Di contrapunha o lirismo
à sensualidade, o real ao fantástico, a razão à emoção, compondo um universo
artístico que ele mesmo classificava como "realismo mágico".
Di Cavalcanti - 'Gafieira' (década de 1940) - óleo s/ tela - Coleção Particular - SP - Foto: Divulgação |
Conforme escreveu o grande crítico de arte Mário Pedrosa no
Jornal do Brasil, em 6 de setembro de 1957, "Di foi o primeiro a trazer para a
pintura a gente dos morros, a gente dos subúrbios, onde nasceu o samba. Sendo o
mais brasileiro dos artistas, foi o primeiro a sentir que entre o interior, a
roça, o sertão e a avenida, o 'centro civilizado', havia uma zona de mediação -
o subúrbio. No subúrbio vive o verdadeiro autóctone da grande cidade. Já não é
caipira, mas ainda não é cosmopolita. O que lá se passa é autêntico, de origem
e de sensibilidade."
Abaixo, temos duas versões de pinturas sobre o mesmo tema, a "seresta", porém o caráter de cada uma é bem divergente: na primeira, da década de 20, a conotação é puramente sexual. E na segunda, temos um Di Cavalcanti menos "safadinho" (rs), por assim dizer, e mais romântico.
Di Cavalcanti - 'Seresta' (década de 1920) - pastel s/ papel - Coleção Particular - SP Foto: Simone Catto |
Di Cavalcanti - 'Seresta' (década de 1930) - óleo s/ tela - Coleção Fundação Edson Queiroz - CE Foto: Simone Catto |
Note que a posição da assinatura do artista tem um charme à parte:
Foto: Simone Catto |
Em 1949, Di Cavalcanti viajou ao México, teve contato com pintores e muralistas como Diego Rivera (1886-1957) e, a partir de 1950, essa influência também se refletiu na criação de painéis e murais que atendiam ao anseio da arrojada arquitetura moderna brasileira. Formas ondulantes, estampados e estilizações, compondo uma estética colorida e vibrante, marcam sua obra nesse período.
A riqueza temática de elementos brasileiros que saem da paleta
de Di Cavalcanti é imensa: temos uma verdadeira festa que reúne trabalhadores,
marinheiros, jogadores, músicos, cafetões, naturezas-mortas, casarios, paisagens,
mas... é inegável que são elas, as mulheres, a grande paixão do artista que tem
o poder de capturar nosso olhar para sua obra e transmitir essa paixão para nós.
A exposição é tão rica que não dá mesmo para esgotá-la em um post.
Clique aqui para conhecer algumas mulheres de Di Cavalcanti que estão na Galeria Almeida e Dale, e aqui para ver outras obras do artista retratando nossa gente.
Clique aqui para conhecer algumas mulheres de Di Cavalcanti que estão na Galeria Almeida e Dale, e aqui para ver outras obras do artista retratando nossa gente.
Se
você gosta de arte, essa exposição é imperdível. 'DI CAVALCANTI –
CONQUISTADOR DE LIRISMOS' estará na Galeria Almeida e Dale até o dia 28 de
maio. Endereço: Rua Caconde, 152 – Jardins - São Paulo. Tel.: (11) 3887-7130 – www.galeriaalmeidaedale.com.br. Abre de segunda a sexta, das 10h às 18h,
e sábado das 10h às 14h. Entrada franca.
Essa exposição está espetacular!!!
ResponderExcluirSim, recomendo a todos!!
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