terça-feira, 29 de março de 2016

Di Cavalcanti na Galeria Almeida e Dale: retrato imperdível da alma brasileira.

Alguns meses após visitar uma ótima exposição de Portinari na Galeria Almeida e Dale, chegou a vez do mestre Di Cavalcanti (1897-1976), que está com uma bela mostra no local. Estive lá numa manhã de sábado e, assim como ocorreu em minha visita anterior, estranhei encontrar pouquíssimos visitantes em se tratando de uma exposição tão significativa e ainda por cima com entrada franca. A Galeria Almeida e Dale, aliás, tem uma generosa tradição de promover exposições de alto nível nas quais o público pode apreciar, gratuitamente, obras dos mais renomados artistas, em sua maioria do período modernista brasileiro.

A galeria Almeida e Dale naquela manhã de sábado... cadê os visitantes? - Foto: Simone Catto

Com curadoria de Denise Mattar, a exposição Di Cavalcanti – Conquistador de Lirismos contou com a consultoria de Elisabeth Di Cavalcanti, filha do artista, e reúne 54 obras do período compreendido entre 1925 e 1949. Há cerca de treze anos Elisabeth vem desenvolvendo uma extensa pesquisa sobre o pai e está criando o Instituto Di Cavalcanti, que terá, como primeira iniciativa, o lançamento de um livro sobre o artista no dia 8 de abril, durante a SP-Arte. Com mais de 200 imagens de obras, esse livro virá em boa hora, já que existem poucas publicações sobre o mestre e, além disso, a maioria é antiga e já está esgotada nas livrarias.

Um outro detalhe que explica a importância da exposição é que as obras são todas provenientes de coleções particulares de São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza e Salvador, de modo que o público dificilmente teria a oportunidade de apreciá-las em outro contexto. Não dá para perder!

Além de ser um dos mais importantes representantes do modernismo brasileiro, Di Cavalcanti foi um artista singular por muitas razões. Uma delas é que ele foi o único que manteve uma ativa produção do início ao fim do período modernista e não parou de criar até sua morte, em 1976. Além disso, ao contrário de seus colegas modernistas, ele precisava trabalhar para se sustentar, o que de certa forma o aproximou da vida real, dos tipos comuns e das mulheres que retratava em suas obras.

Di Cavalcanti - 'Abigail' (1940) - óleo s/ tela - Coleção Particular - RJ - Foto: Divulgação

Autodidata, ilustrador, desenhista, caricaturista e pintor, Di foi o pintor que melhor captou as nuances, o caráter e o lirismo do povo brasileiro. Nascido Emiliano de Albuquerque e Mello em 6 de setembro de 1897, no Rio de Janeiro, passou a infância no bairro de São Cristóvão. Embora sua família não fosse rica, o artista teve muita sorte: sua tia Maria Henriqueta foi casada com o abolicionista José do Patrocínio, o que o levou  a conviver, desde criança, com a música e a literatura. Seu pai faleceu em 1914 e, aos 17 anos, ele se viu obrigado a ganhar seu sustento, trabalhando como caricaturista e ilustrador para a imprensa. Graças a seu talento, logo conseguiu se inserir nos círculos intelectuais vinculados aos jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro.


Foto: Simone Catto
Di Cavalcanti decidiu tornar-se artista em 1918, estudando pintura no ateliê de George Fischer Elpons, onde tomou contato com os movimentos europeus. Consta que o famoso cronista João do Rio apresentou o jovem ao submundo carioca, com seus boêmios, bêbados e prostitutas. Mal sabia João do Rio que estava prestando um serviço de valor inestimável à arte brasileira!

Após ajudar a convencer Anita Malfatti a realizar uma exposição em 1917 que seria considerada a gênese da Semana de Arte Moderna de 1922, o próprio Di se tornaria um dos principais articuladores e participantes do evento que abalou a arte de São Paulo e do Brasil. Produziu o catálogo e o programa da Semana, organizou a participação de Villa-Lobos e convidou vários artistas, sendo que ele mesmo participou com doze obras.

Ilustração de 1922 - Foto: Simone Catto

Di Cavalcanti - 'Pierrôs' (década de 1920) - guache e nanquim s/ papel - Coleção Particular - RJ
Foto: Simone Catto

O período abordado na exposição da Almeida e Dale marca o amadurecimento de Di Cavalcanti após retornar de sua primeira viagem à Europa, em 1925, tendo vivido dois anos em Paris como jornalista. Lá ele frequentou a Academia Ranson, visitou museus e exposições e ficou vivamente impressionado com o expressionismo alemão. Além disso, conheceu gente do porte de Picasso, Léger, Matisse, Eric Satie, Jean Cocteau e outros intelectuais franceses, além de viajar à Itália para estudar de perto obras de Ticiano, Michelangelo e Leonardo Da Vinci. Esse contato com a vanguarda europeia e com os velhos mestres seria determinante para sua obra, e o artista retornou ao Brasil sabendo exatamente qual caminho trilhar.

Di Cavalcanti - 'Josephine Baker' (década de 1920) - guache s/ cartão - Coleção Particular - SP
Foto: Simone Catto

Na década de 30, Di Cavalcanti teve problemas políticos: em São Paulo, foi preso como getulista, e no Rio, como comunista. Era mais ou menos como no dito popular: "Se ficar o bicho pega, se correr o bicho come!" Mas Di não poderia ter encontrado solução melhor: em 1936, conseguiu fugir para Paris, onde permaneceu por outros quatro anos, trabalhando para a Radio Diffusion Française. Iria voltar em 1940 devido à Segunda Guerra Mundial, deixando em Paris 27 pinturas a óleo e treze desenhos.

Di Cavalcanti - 'Vênus' (1938) - óleo s/ tela - Coleção Particular - Foto: Simone Catto

Nesse período, que se estende por toda a década de 1940, o lirismo e a sensualidade se revelaram com toda a pujança na obra do artista. Suas pinturas mostram os tipos suburbanos, os homens comuns retratados nas favelas, nos botecos, nas docas, nos bordéis e nas festas populares, e as mulheres – muitas, de todas as cores, perfis e classes sociais: mulatas, negras, brancas, ricas e pobres, morenas e loiras, retratadas num clima lírico, sensual, langoroso. Di contrapunha o lirismo à sensualidade, o real ao fantástico, a razão à emoção, compondo um universo artístico que ele mesmo classificava como "realismo mágico".

Di Cavalcanti - 'Gafieira' (década de 1940) - óleo s/ tela - Coleção Particular - SP - Foto: Divulgação

Conforme escreveu o grande crítico de arte Mário Pedrosa no Jornal do Brasil, em 6 de setembro de 1957, "Di foi o primeiro a trazer para a pintura a gente dos morros, a gente dos subúrbios, onde nasceu o samba. Sendo o mais brasileiro dos artistas, foi o primeiro a sentir que entre o interior, a roça, o sertão e a avenida, o 'centro civilizado', havia uma zona de mediação - o subúrbio. No subúrbio vive o verdadeiro autóctone da grande cidade. Já não é caipira, mas ainda não é cosmopolita. O que lá se passa é autêntico, de origem e de sensibilidade."

Abaixo, temos duas versões de pinturas sobre o mesmo tema, a "seresta", porém o caráter de cada uma é bem divergente: na primeira, da década de 20, a conotação é puramente sexual. E na segunda, temos um Di Cavalcanti menos "safadinho" (rs), por assim dizer, e mais romântico.

Di Cavalcanti - 'Seresta' (década de 1920) - pastel s/ papel - Coleção Particular - SP
Foto: Simone Catto

Di Cavalcanti - 'Seresta' (década de 1930) - óleo s/ tela -  Coleção Fundação Edson Queiroz - CE
Foto: Simone Catto

Note que a posição da assinatura do artista tem um charme à parte:


Foto: Simone Catto

Em 1949, Di Cavalcanti viajou ao México, teve contato com pintores e muralistas como Diego Rivera (1886-1957) e, a partir de 1950, essa influência também se refletiu na criação de painéis e murais que atendiam ao anseio da arrojada arquitetura moderna brasileira. Formas ondulantes, estampados e estilizações, compondo uma estética colorida e vibrante, marcam sua obra nesse período.

A riqueza temática de elementos brasileiros que saem da paleta de Di Cavalcanti é imensa: temos uma verdadeira festa que reúne trabalhadores, marinheiros, jogadores, músicos, cafetões, naturezas-mortas, casarios, paisagens, mas... é inegável que são elas, as mulheres, a grande paixão do artista que tem o poder de capturar nosso olhar para sua obra e transmitir essa paixão para nós.

A exposição é tão rica que não dá mesmo para esgotá-la em um post.

Clique aqui para conhecer algumas mulheres de Di Cavalcanti que estão na Galeria Almeida e Dale, e aqui para ver outras obras do artista retratando nossa gente.

Se você gosta de arte, essa exposição é imperdível. 'DI CAVALCANTI – CONQUISTADOR DE LIRISMOS' estará na Galeria Almeida e Dale até o dia 28 de maio. Endereço: Rua Caconde, 152 – Jardins - São Paulo. Tel.: (11) 3887-7130 – www.galeriaalmeidaedale.com.br. Abre de segunda a sexta, das 10h às 18h, e sábado das 10h às 14h. Entrada franca.

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