Salto para 1943. Luce (Céline Sallette) agora é uma jovem
freira, enfermeira, e cuida dos feridos em um hospital de Périgueux, sob a
ocupação alemã, na II Guerra Mundial. É uma religiosa exemplar, devotada e
detentora de uma fé inabalável. Até que, certo dia, é chamada pelo doutor para
cuidar de um capelão ferido – seu nome é Martial (Eric Caravaca). O homem, que
faz parte da resistência francesa, tem sua fé abalada e está fortemente
inclinado a abandonar a vida religiosa. Por algum motivo misterioso, Irmã Luce
sente-se atraída por esse paciente, algo que nunca havia lhe acontecido antes. Sem
entender direito o que está havendo, a freira tenta lutar contra esse
sentimento com todas as forças, mas é em vão. O capelão recupera a saúde, mas
em nenhum momento dá sinais de reciprocidade em relação ao amor de Luce.
Pouco depois, Martial é chamado por seus camaradas da
resistência para uma missão em Bergerac. Ao mesmo tempo, a madre superiora, preocupada
com o ar distante e disperso de sua pupila, concede-lhe três dias de licença
para que possa descansar e rever sua família em... Bergerac. Luce interpreta
essa coincidência geográfica como um sinal divino de que seu sentimento teria eco e que
deveria ir atrás de seu amor. Só que, muitas vezes, aquilo que interpretamos
como "sinal divino" ou "conspiração do universo" – Jung que me perdoe! - nada
mais é do que uma simples coincidência ou o próprio universo nos pregando uma
peça.
Luce vai atrás do homem e, como seria de se esperar, não recebe
nenhuma palavra, nenhum gesto de carinho, nenhum sinal de amor. Na crença cega
de sua fé, no entanto, é incapaz de enxergar a gélida indiferença de Martial. O homem chega a lhe afirmar que ela
não deveria esperar nada dele, mas, mesmo assim, num ímpeto bestial de extrema
brutalidade, praticamente estupra a freira. Tira sua virgindade de repente, sem
seu consentimento, a seco, do nada. Luce, por sua vez, continua a acreditar
piamente que uma espécie de "amor" os une e que estão predestinados um ao outro. Contra todas as evidências, acredita
que o homem possa vir a amá-la simplesmente porque ELA é capaz de amá-lo
verdadeiramente. E assim a mulher vai se autoludibriando, recusando-se a
enxergar a verdade. É de partir o coração.
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Irmã Luce (Céline Sallette) e Martial (Eric Caravaca). |
Uma vez que esse sentimento vai contra os dogmas de sua vocação
religiosa, Luce acaba por abandonar o convento e suas Irmãs para ir atrás do
homem. Ao chegar até onde ele está, subitamente o vê através de uma vidraça, num
gesto de carinho que prenuncia um ato de amor para com uma de suas companheiras
da resistência. Chocada, ferida e destruída em suas convicções, a freira sente-se abandonada pelos homens e, o que é pior, traída por seu Deus, precipitando-se
para a autodestruição.
Exibido no Festival Varilux de Cinema Francês, Aqui
Embaixo é um filme perturbador. Sim, porque a humanidade tem fé. Aliás,
eu diria que a humanidade "precisa" ter fé para suportar sua existência. Fé em
Deus, em alguma crença, em algo superior. E incomoda profundamente constatar que
a fé pode facilmente perder a razão, sobretudo se essa perda for vivenciada por
uma religiosa tão segura de suas convicções e de sua vocação. Irmã Luce era uma
criatura pura, genuinamente boa, devotada a Deus e a fazer o bem. Nunca havia
experimentado o amor de um homem. Não pertencia a esse mundo. Porém, por alguma
razão, julgou que o novo sentimento que passou subitamente a nutrir por um
desconhecido fosse esse tal "amor". No entanto, a freira mal conhecia o homem.
Com base em que julgou amá-lo e ser amada, a não ser por sua fantasia?
Esse filme me levou a refletir sobre a tendência que certas pessoas
têm de idealizar um amor, um sentimento e, sobretudo, uma outra pessoa, muitas vezes
sem sequer conhecê-la direito. Posso até estar errada, mas eu tenho, cá comigo, que o amor é um sentimento
muito simples. Não vem acompanhado de sofrimento. Amor se sente, se reconhece e,
sobretudo, não provoca dor nem tormento. Amor de verdade traz paz de espírito,
alegria e, sobretudo, aquela sensação aconchegante de nunca estarmos sozinhos,
de sabermos que o outro sempre estará lá para compartilhar conosco os momentos bons
e de nos consolar naqueles que não são tão bons assim. Nada a ver com aquilo
que Irmã Luce julgou sentir no filme. Amor verdadeiro existe? Sim, claro que existe!
Mas está longe das falsas ilusões ou fantasias. O amor verdadeiro é 'pé-no-chão' e deliciosamente real.
AQUI
EMBAIXO é um filme dramático, bem construído, e a atriz Céline Sallette é simplesmente maravilhosa em sua interpretação de Irmã Luce. O filme faz parte do Festival Varilux de Cinema Francês e, se você quiser conferir, a
próxima (e última) exibição será no Cine Livraria Cultura, dia 23/8
(quinta-feira), às 13h30. O horário é ingrato, mas vale a pena dar uma escapada
no almoço!
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