domingo, 25 de agosto de 2019

Ménerbes, a Toscana francesa.

Paisagens naturais têm um poder que, felizmente, não pouca gente tem capacidade de reconhecer. E paisagens naturais admiradas do alto, do topo de uma montanha ou colina, reafirmam a convicção de muitos de que o mundo foi orquestrado por mãos divinas comandadas por uma força mágica cuja magnitude e capacidade de produzir beleza ultrapassa (ainda) nossa compreensão. É chegar, sentir e, no caso de alguns privilegiados, se transformar.

Há pouco, ao fazer uma incursão por cidades da Provence, na França, tive essa sensação inúmeras vezes. E espero, humildemente, que esse poder transformador seja mais do que uma simples sensação em meu caso, se bem que muitas vezes sensações confundem-se com intuições. Seja lá o que for, um dos locais onde tive esse insight foi Ménerbes, antiga vila no topo de uma colina que faz parte do Parc Naturel Régional du Lubéron e é considerada uma das mais belas aldeias da França.

A comuna de pouco mais de mil habitantes é conhecida por sua beleza natural, suas construções históricas e também por ter recebido Pablo Picasso (1881-1973), que em 1944 trocou uma de suas pinturas por uma casa do século XVIII e a deu à amante Dora Maar (1907-1997) como presente de despedida após o fim do relacionamento. Dora e Picasso tornaram-se amantes em 1936 e assim permaneceram por quase dez anos, quando o artista a trocou por Françoise Gilot. Em tempo: Mme Gilot ainda vive, quase centenária! (Nasceu em 1921).

A vista em frente à casa, lá do alto, já vale a visita ao lugarejo. Há belas e ordenadas plantações em primeiro plano, uma vegetação rebelde mais atrás e os montes do Vaucluse repousando placidamente ao fundo, em um horizonte a perder de vista.

Vista do alto de Ménerbes - Foto: Simone Catto

Foto: Selma

A casa de Dora não está aberta à visitação pública, mas atualmente abriga artistas de um programa de residência artística do Texas. Subi a rampa lateral que dá acesso a ela e, ao me aproximar da fachada, descobri que a musa de Picasso viveu lá por mais de 50 anos.

Acesso à casa de Dora Maar - Foto: Simone Catto

Foto: Simone Catto
 
A casa de Dora Maar, ao alto - Foto: Selma

Foto: Simone Catto

Dora posou para várias obras de Picasso, mas era muito mais do que simplesmente amante e modelo do pintor: consta que era uma mulher culta e inteligente, foi fotógrafa, amiga dos surrealistas na juventude e, posteriormente, tornou-se ela mesma pintora. Fiquei imaginando como deveria ser a vida dessa mulher nessa casa e nesse lugar incrível.

Casa de Dora Maar - Foto: Simone Catto

Dora Maar à sua porta - Foto: James Lord

Depois de retornar à rua, continuei a subir até chegar à Praça do Relógio, onde fica a prefeitura e a torre com o dito cujo, que foi restaurada no final do século XVI e é coroada por um sino de ferro circundado por cinco cruzes. Lá descobri que o mecanismo do relógio se constituía em um sistema de pesos que eram arranjados por um funcionário contratado especialmente para essa função, denominado "conducteur de l'horloge" (condutor do relógio).

A Praça do Relógio - Foto: Simone Catto

As ruas de Ménerbes guardam uma rica herança cultural e, assim como outros villages da Provence, têm casas da Idade Média integradas a outras da época do Renascimento. Alguns detalhes são extremamente graciosos, como os nichos contendo santos e as janelas reforçadas por uma haste de metal simulando folhagem, que vi em várias comunas da Provence.

Foto: Simone Catto

Esse cantinho é um charme! - Foto: Simone Catto

E andando pelas ruas, eis que topo com a Virgem Maria e o Menino Jesus! Sempre um prazer reencontrá-los.  

Foto: Simone Catto

Essa haste metálica nas janelas pequenas, simulando
folhagem, é típica  da região! - Foto: Simone Catto

Na Idade Média, o acesso à cidadela fortificada, então repleta de passagens subterrâneas, era feito somente através de seus dois portais, Saint-Sauveur e Notre-Dame, que faziam parte da muralha que protegia Ménerbes. O portal de Notre-Dame infelizmente foi demolido no século XIX, mas o de Saint-Sauveur, assim batizado devido a uma igreja que existiu no local no século XIII, resiste bravamente. A julgar pelo tipo de sua alvenaria e o estilo da construção, que inclui alguns buracos destinados à pontaria de canos de armas, foi construído no século XVI, segundo especialistas. Vale ressaltar que esse foi o século das guerras religiosas e por cinco anos Ménerbes foi capital do movimento protestante depois que os huguenotes a sitiaram e invadiram pelo portal de Saint-Sauveur.

Porte Saint-Sauveur - Foto: Simone Catto

Em uma ruela perto do portal topei com a construção abaixo e achei-a bem interessante. Pela imponência e estilo, logo imaginei que se tratava de um prédio importante ou a residência de alguém muito rico. Não me enganei. Descobri que se trata até hoje de uma residência particular que os habitantes locais chamam La Carméjane, porque em fins do século XV abrigou a numerosa família Carméjane, vinda de Gascogne, sudoeste da França, e que teve uma vida próspera em Ménerbes até a Revolução Francesa.

La Carméjane - Foto: Simone Catto

Localizada onde antes havia um antigo castelo feudal cujas origens remontam a 1081, La Carméjane tem preservados até hoje traços medievais na fachada. A varanda cercada é típica do final da Idade Média e sustenta uma balaustrada de estilo clássico. Várias janelas datam do Renascimento e do século XVII. No século XVIII, a casa sofreu profundas transformações que alteraram a fachada principal e acrescentaram, no topo, uma pequena torre de vigilância com função apenas simbólica. Não sei quem é o feliz proprietário da Carméjane atualmente, mas não me surpreenderia se ela fosse o refúgio de algum escritor, magnata ou celebridade milionária. Sabemos que a casa, totalmente restaurada, tem belíssimos jardins mediterrâneos localizados no lado norte da propriedade, mas, como se trata de uma residência privada, infelizmente não tive acesso a eles. Quem sabe um dia não faço amizade com os proprietários? (rs)

Andando mais um pouco, encontrei essa igrejinha – Igreja Saint-Luc – e o velho cemitério anexo. A igreja foi reconstruída no século 16 após as guerras de religião, presumivelmente no local da antiga igreja Saint-Sauveur, que batizou o portal da cidade e é mencionada nos arquivos eclesiásticos desde o século XIII, quando era gerida por uma poderosa abadia beneditina. Ainda hoje é possível ler a data de 1594 no alto do campanário, construído algumas décadas depois da reconstrução da igreja. Tanto ela quanto a base que sustenta a cruz de ferro forjado, no pátio, foram construídas em calcário branco, abundante na região, trazido de pedreiras das redondezas. 

Igreja Saint-Luc - Foto: Simone Catto

Campanário da Igreja Saint-Luc - Foto: anônima/Internet

Até hoje algumas famílias enterram seus mortos no velho cemitério ao lado da igreja.

Foto: Simone Catto

Já na volta, passando novamente perto da casa de Dora Maar, encontrei outra construção que chamou minha atenção por um detalhe curioso: um pequeno relevo em metal entalhado na fachada. Mostra um ambiente com uma cadeira de frente para uma estrutura que parece ser um cavalete de pintura, mais uma mesa e um banco ao fundo.

Foto: Simone Catto

A tal escultura em relevo pertence ao Hôtel Tingry, que na verdade não tem nada de hotel. Ocorre que, em francês, a palavra "hôtel" pode se referir também a um edifício público e, antigamente, nomeava residências de grandes senhores. Este é o caso aqui. O Hôtel Tingry é uma elegante residência do século XVIII que foi construída por um certo Joseph Balthazard de Laurents. Os Laurents eram uma poderosa família de origem piemontesa que se estabeleceu no século XVI em Avignon e esta era sua casa de veraneio. A última herdeira e moradora da casa foi Eléonore Joséphe Pulchérie des Laurents (1745-1829), esposa do príncipe de Tingry, que deu nome à construção. Gostaria de ter conhecido essa senhora.

Hôtel Tingry - Foto: Wikipedia

Voltando à escultura entalhada na parede... confesso que não consegui descobrir o nome do artista, a data da obra e muito menos o porquê de ela estar lá. Se alguém souber e puder me dizer, agradeço!

Mas a aventura não terminou. Cheguei a um belo jardim e, ao fundo, visualizei uma construção de pedra com uma torre redonda. Trata-se de parte da Citadelle, a muralha fortificada construída para proteger a cidade entre os séculos XII e XVI.

O jardim que precede esse trecho da Citadelle é um lugar superagradável! - Foto: Simone Catto

Basta andar alguns metros para chegar à antiga prisão, um cubículo de pedra desesperadamente claustrofóbico. Pergunto-me quantas pessoas foram encarceradas lá dentro, sobretudo durante as guerras religiosas!

A velha prisão - Foto: Simone Catto

Depois de tanto bater perna, foi um alento encontrar um restaurante que não fechava entre o almoço e o jantar, coisa rara nos vilarejos da França: Bistrot le 5. E ainda por cima um lugar civilizadamente animado, com mesas dispostas em um delicioso terraço que dava para a linda paisagem do Lubéron. Pedi uma massa com salmão, um vinho rosé da região e... voilà! Ménerbes me conquistou para todo o sempre.

Santé! - Foto: Simone Catto

Como resistir a um almoço em um cenário destes? - Foto: Bistrot le 5

Na volta, já na estrada, de estômago cheio e alma plena, resolvi procurar o Dolmen de la Pitchoune, vestígio da ocupação pré-histórica na região e único dólmen existente no Vaucluse. Vi placas indicativas na estrada, rodei, procurei, peguei as vicinais, retornei e... nada. Pudera. O tal dólmen fica abaixo do nível do solo, conforme mostra a foto a seguir.

Onde está o dólmen??? - Foto: anônima/Internet

Lembro-me de até ter visualizado essa placa à beira da estrada, mas, como não vi nada, achei que o dólmen estivesse escondido em algum lugar inacessível no meio do mato. E eu aqui esperando encontrar imponentes blocos de pedra empilhados, ao estilo que vi em Stonehenge! (rs) Estou rindo até agora. Dado seu tamanho, aquilo está mais para "dolminúsculo" do que para dólmen, rs. Mas os franceses, e com TODA razão, o preservam aguerridamente. De qualquer modo, o "dolminúsculo" vai ficar para a próxima!

 Dolmen de la Pitchoune - Foto: anônima/Internet

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