Paisagens naturais têm um poder que, felizmente, não pouca gente
tem capacidade de reconhecer. E paisagens naturais admiradas do alto, do topo
de uma montanha ou colina, reafirmam a convicção de muitos de que o mundo foi
orquestrado por mãos divinas comandadas por uma força mágica cuja magnitude e
capacidade de produzir beleza ultrapassa (ainda) nossa compreensão. É chegar,
sentir e, no caso de alguns privilegiados, se transformar.
Há pouco, ao fazer uma incursão por cidades da Provence, na
França, tive essa sensação inúmeras vezes. E espero, humildemente, que esse
poder transformador seja mais do que uma simples sensação em meu caso, se bem
que muitas vezes sensações confundem-se com intuições. Seja lá o que for, um
dos locais onde tive esse insight foi
Ménerbes, antiga vila no topo de uma
colina que faz parte do Parc Naturel Régional du Lubéron e é considerada uma
das mais belas aldeias da França.
A comuna de pouco mais de mil habitantes é conhecida por sua
beleza natural, suas construções históricas e também por ter recebido Pablo Picasso (1881-1973), que em 1944 trocou
uma de suas pinturas por uma casa do
século XVIII e a deu à amante Dora
Maar (1907-1997) como presente de despedida após o fim do relacionamento.
Dora e Picasso tornaram-se amantes em 1936 e assim permaneceram por quase dez
anos, quando o artista a trocou por Françoise Gilot. Em tempo: Mme Gilot ainda
vive, quase centenária! (Nasceu em 1921).
A vista em frente à casa, lá do alto, já vale a visita ao
lugarejo. Há belas e ordenadas plantações em primeiro plano, uma vegetação rebelde
mais atrás e os montes do Vaucluse repousando placidamente ao fundo, em um
horizonte a perder de vista.
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Vista do alto de Ménerbes - Foto: Simone Catto |
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Foto: Selma |
A casa de Dora não está aberta à visitação pública, mas atualmente
abriga artistas de um programa de residência artística do Texas. Subi a rampa
lateral que dá acesso a ela e, ao me aproximar da fachada, descobri que a musa
de Picasso viveu lá por mais de 50 anos.
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Acesso à casa de Dora Maar - Foto: Simone Catto |
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Foto: Simone Catto |
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A casa de Dora Maar, ao alto - Foto: Selma |
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Foto: Simone Catto |
Dora posou para várias obras de Picasso, mas era muito mais do
que simplesmente amante e modelo do pintor: consta que era uma mulher culta e
inteligente, foi fotógrafa, amiga dos surrealistas na juventude e, posteriormente,
tornou-se ela mesma pintora. Fiquei imaginando como deveria ser a vida dessa mulher nessa casa e nesse lugar incrível.
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Casa de Dora Maar - Foto: Simone Catto |
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Dora Maar à sua porta - Foto: James Lord |
Depois de retornar à rua, continuei a subir até chegar à Praça do Relógio, onde fica a
prefeitura e a torre com o dito cujo, que foi restaurada no final do século XVI
e é coroada por um sino de ferro circundado por cinco cruzes. Lá descobri que o
mecanismo do relógio se constituía em um sistema de pesos que eram arranjados
por um funcionário contratado especialmente para essa função, denominado "conducteur de l'horloge" (condutor do relógio).
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A Praça do Relógio - Foto: Simone Catto |
As ruas de Ménerbes guardam uma rica herança cultural e, assim
como outros villages da Provence, têm
casas da Idade Média integradas a outras da época do Renascimento. Alguns
detalhes são extremamente graciosos, como os nichos contendo santos e as janelas
reforçadas por uma haste de metal simulando folhagem, que vi em várias comunas
da Provence.
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Foto: Simone Catto |
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Esse cantinho é um charme! - Foto: Simone Catto |
E andando pelas ruas, eis que topo com a Virgem Maria e o Menino Jesus! Sempre um prazer reencontrá-los.
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Foto: Simone Catto |
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Essa haste metálica nas janelas pequenas, simulando folhagem, é típica da região! - Foto: Simone Catto |
Na Idade Média, o acesso à cidadela fortificada, então repleta
de passagens subterrâneas, era feito somente através de seus dois portais,
Saint-Sauveur e Notre-Dame, que faziam parte da muralha que protegia Ménerbes.
O portal de Notre-Dame infelizmente foi demolido no século XIX, mas o de Saint-Sauveur, assim batizado devido a
uma igreja que existiu no local no século XIII, resiste bravamente. A julgar
pelo tipo de sua alvenaria e o estilo da construção, que inclui alguns buracos
destinados à pontaria de canos de armas, foi construído no século XVI, segundo especialistas. Vale ressaltar que esse foi o século das guerras
religiosas e por cinco anos Ménerbes foi capital do movimento protestante
depois que os huguenotes a sitiaram e invadiram pelo portal de Saint-Sauveur.
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Porte Saint-Sauveur - Foto: Simone Catto |
Em uma ruela perto do portal topei com a construção abaixo e
achei-a bem interessante. Pela imponência e estilo, logo imaginei que se tratava de
um prédio importante ou a residência de alguém muito rico. Não me enganei. Descobri
que se trata até hoje de uma residência particular que os habitantes locais
chamam La Carméjane, porque em fins
do século XV abrigou a numerosa família Carméjane, vinda de Gascogne, sudoeste
da França, e que teve uma vida próspera em Ménerbes até a Revolução Francesa.
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La Carméjane - Foto: Simone Catto |
Localizada onde antes havia um antigo castelo feudal cujas
origens remontam a 1081, La Carméjane
tem preservados até hoje traços medievais na fachada. A varanda cercada é
típica do final da Idade Média e sustenta uma balaustrada de estilo clássico. Várias
janelas datam do Renascimento e do século XVII. No
século XVIII, a casa sofreu profundas transformações que alteraram a fachada
principal e acrescentaram, no topo, uma pequena torre de vigilância com função
apenas simbólica. Não sei quem é o feliz proprietário da Carméjane atualmente, mas
não me surpreenderia se ela fosse o refúgio de algum escritor, magnata ou
celebridade milionária. Sabemos que a casa, totalmente restaurada, tem
belíssimos jardins mediterrâneos localizados no lado norte da propriedade, mas,
como se trata de uma residência privada, infelizmente não tive acesso a eles.
Quem sabe um dia não faço amizade com os proprietários? (rs)
Andando mais um pouco, encontrei essa igrejinha – Igreja Saint-Luc – e o velho cemitério
anexo. A igreja foi reconstruída no século 16 após as guerras de religião,
presumivelmente no local da antiga igreja Saint-Sauveur, que batizou o portal
da cidade e é mencionada nos arquivos eclesiásticos desde o século XIII, quando
era gerida por uma poderosa abadia beneditina. Ainda hoje é possível ler a data
de 1594 no alto do campanário, construído algumas décadas depois da
reconstrução da igreja. Tanto ela quanto a base que sustenta a cruz de ferro
forjado, no pátio, foram construídas em calcário branco, abundante na região,
trazido de pedreiras das redondezas.
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Igreja Saint-Luc - Foto: Simone Catto |
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Campanário da Igreja Saint-Luc - Foto: anônima/Internet |
Até hoje algumas famílias enterram seus mortos no velho
cemitério ao lado da igreja.
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Foto: Simone Catto |
Já na volta, passando novamente perto da casa de Dora Maar,
encontrei outra construção que chamou minha atenção por um detalhe curioso: um
pequeno relevo em metal entalhado na fachada. Mostra um ambiente com uma
cadeira de frente para uma estrutura que parece ser um cavalete de pintura,
mais uma mesa e um banco ao fundo.
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Foto: Simone Catto |
A tal escultura em relevo pertence ao Hôtel Tingry, que na verdade não tem nada de hotel. Ocorre que, em
francês, a palavra "hôtel" pode se referir também a um edifício público e,
antigamente, nomeava residências de grandes senhores. Este é o caso aqui. O
Hôtel Tingry é uma elegante residência do século XVIII que foi construída por
um certo Joseph Balthazard de Laurents. Os Laurents eram uma poderosa família
de origem piemontesa que se estabeleceu no século XVI em Avignon e esta era sua
casa de veraneio. A última herdeira e moradora da casa foi Eléonore Joséphe Pulchérie des Laurents
(1745-1829), esposa do príncipe de Tingry, que deu nome à construção. Gostaria de ter conhecido essa senhora.
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Hôtel Tingry - Foto: Wikipedia |
Voltando à escultura entalhada na parede... confesso que não consegui
descobrir o nome do artista, a data da obra e muito menos o porquê de ela estar
lá. Se alguém souber e puder me dizer, agradeço!
Mas a aventura não terminou. Cheguei a um belo jardim e, ao
fundo, visualizei uma construção de pedra com uma torre redonda. Trata-se de
parte da Citadelle, a muralha fortificada construída para proteger a
cidade entre os séculos XII e XVI.
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O jardim que precede esse trecho da Citadelle é um lugar superagradável! - Foto: Simone Catto |
Basta andar alguns metros para chegar à antiga prisão, um cubículo de pedra desesperadamente
claustrofóbico. Pergunto-me quantas pessoas foram encarceradas lá dentro,
sobretudo durante as guerras religiosas!
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A velha prisão - Foto: Simone Catto |
Depois de tanto bater perna, foi um alento encontrar um
restaurante que não fechava entre o almoço e o jantar, coisa rara nos vilarejos
da França: Bistrot le 5. E ainda por
cima um lugar civilizadamente animado, com mesas dispostas em um delicioso terraço que
dava para a linda paisagem do Lubéron. Pedi uma massa com salmão, um vinho rosé
da região e... voilà! Ménerbes me conquistou para todo o sempre.
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Santé! - Foto: Simone Catto |
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Como resistir a um almoço em um cenário destes? - Foto: Bistrot le 5 |
Na volta, já na estrada, de estômago cheio e alma plena, resolvi
procurar o Dolmen de la Pitchoune, vestígio da ocupação pré-histórica na
região e único dólmen existente no Vaucluse. Vi placas indicativas na estrada,
rodei, procurei, peguei as vicinais, retornei e... nada. Pudera. O tal dólmen
fica abaixo do nível do solo, conforme mostra a foto a seguir.
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Onde está o dólmen??? - Foto: anônima/Internet |
Lembro-me de até ter
visualizado essa placa à beira da estrada, mas, como não vi nada, achei que o dólmen estivesse escondido em algum lugar inacessível no meio do mato. E eu aqui
esperando encontrar imponentes blocos de pedra empilhados, ao estilo que vi em Stonehenge! (rs) Estou rindo até agora. Dado seu tamanho, aquilo está mais para "dolminúsculo" do que para dólmen, rs. Mas os franceses, e com TODA razão, o preservam
aguerridamente. De qualquer modo, o "dolminúsculo" vai ficar para a próxima!
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Dolmen de la Pitchoune - Foto: anônima/Internet |
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