No entanto, caro leitor, eu lhe
asseguro que nenhuma cidade, mas nenhuminha mesmo, é igual à outra. As
percepções e impressões que cada uma delas me causou foram totalmente
diferentes, até porque cada uma tem um passado e uma geografia. Sem falar, é
claro, que suas energias também diferem. Todas, porém, têm algo em comum: são
fascinantes com suas histórias, suas paisagens, seus dramas, seus personagens.
Por tudo isso, se você, assim como
eu, gosta de história, de arte, arqueologia e cultura, tudo regado a doses
generosas de natureza, acredito que vá gostar do que tenho a contar nesta
segunda matéria sobre Arles. Até porque a cidade abrigou Vincent Van Gogh durante
um período e inspirou o artista a criar algumas de suas pinturas mais
conhecidas. E isso, por si só, já a torna suficientemente interessante - pelo menos para mim.
Então vamos lá. No post anterior,
falei sobre minha visita aos dois teatros romanos e às Termas de Constantino, que estão entre as principais heranças arqueológicas de Arles.
Também comentei que, no sul da França, não raro o patrimônio cultural das cidades
pode ser muito maior do que imaginamos – e é aí que reside grande parte da
graça em conhecê-las. Tudo bem que, planejadora que sou, havia preparado um
roteiro razoavelmente cuidadoso destacando os lugares que pretendia visitar. No
entanto, devo dizer que é preciso estarmos abertos para o inesperado e o
imponderável, porque ótimas surpresas podem nos espreitar virando a esquina. Desviar
da rota, sair um pouco da curva e se aventurar faz parte. Às vezes, eu traçava
um caminho na estrada e, no meio dela, avistava ao longe algo que me
interessava: a ponta de uma torre, o crucifixo de uma igreja, ou mesmo um
vinhedo exuberante... Aí eu parava o carro e ia conferir de perto para ver se
era tudo aquilo mesmo. E já na cidade, caminhando rumo às atrações que havia programado,
muitas vezes acabava me entretendo com outra coisa pelo caminho. Na foto
abaixo, por exemplo, achei interessante o padrão geométrico formado com o arco
e a sombra.
Foto: Simone Catto |
Rua de Arles perto do anfiteatro romano - Foto: Simone Catto |
Na foto a seguir, está um café que
achei charmoso. Não hesitei em virar o celular para conseguir enquadrá-lo todo,
inclusive a lanterna na parede. Peço desculpas se a foto desencadeia uma labirintite!
Foto: Simone Catto |
Mas o café que estava no meu roteiro
e que eu não sairia de Arles de jeito nenhum sem conferir pessoalmente é este
abaixo, na Place du Forum. Consegue reconhecê-lo? Foi imortalizado em uma das
mais belas e famosas pinturas de Vincent Van Gogh, o 'Terraço do Café na Praça
do Fórum, Arles, à Noite', de 1888, que está
em um museu da Holanda. A única coisa que destoou no visual foi o toldo
amarelo exageradamente grande estendido sobre a fachada, que não tem nada a
ver com a contenção do discreto toldo da pintura do artista. Além de feio, o
toldo do século XXI aumentou ainda mais a sensação de calor num dia em que a
temperatura ultrapassou fácil os 30°C. Talvez um tipo como Donald Trump
sentisse certa identificação com aquele topete de lona amarela, mas o pobre
Vincent certamente engoliria os pincéis com tinta e tudo de tanto desgosto.
Café Van Gogh - Foto: Selma |
Van Gogh - 'Terraço do Café na Praça do Fórum, Arles, à Noite', 1888 - óleo s/ tela 80,7 X 65,3 cm - Museu Kröller-Müller - Otterlo, Holanda |
O fato é que o famoso café eternizado
pelo mestre holandês virou uma espécie de "pega-turista" mas, mesmo assim,
sentei em uma das mesas para tomar um sorvete – o qual, aliás, chegou
semiderretido. Van Gogh merecia mais. Peguei na Wikipedia uma foto em que o tal toldo não estava
estendido, e o café me pareceu bem mais aprazível. Enfim...
Café Van Gogh, Arles - Foto: Wikipedia |
As alusões à estada de Van Gogh em
Arles estão aqui e ali, como na vitrine abaixo. A pintura da mulher no pôster azul, aliás, está em nosso MASP.
Trata-se de 'A Arlesiana', executada pelo mestre holandês em 1890.
Foto: Simone Catto |
Van Gogh - 'A Arlesiana', 1890 - óleo s/ tela - 65 X 54 cm - MASP - São Paulo |
Felizmente, minha experiência
gastronômica em Arles não se resumiu ao sorvete derretido. Procurando um lugar
para almoçar nas ruas sinuosas da parte antiga, encontrei um restaurante e bar delicioso
encravado na curva de uma ladeira. Peguei uma mesa bem gostosa no terraço
que, embora pequenino, era ao ar livre e tinha uma atmosfera superagradável.
A vista de minha mesa do restaurante - Foto: Simone Catto |
Com aquele calor todo, preferi comer
alguma coisa leve e saborear um vinho branco da região. A tábua de queijos,
patês e tapenade caiu maravilhosamente bem com o pãozinho. Saí feliz da vida
para continuar minha jornada.
As comidinhas com vinho branco... miam... - Foto: Simone Catto |
Repare na foto abaixo. Estou até agora me perguntando como e por que aquela janela foi parar ali. O mais provável é que a construção que a sustenta já existisse e o prédio ao lado, mais moderno e atrevido, a canibalizou sem piedade. Folgado.
Perto do café de Van Gogh, ainda na Place du Forum, há um resquício de um templo romano preservado que foi anexado a um hotel de construção bem mais moderna. Ou, melhor dizendo: o hotel é que foi anexado a ele. Achei bem pitoresca essa simbiose arquitetônica - me lembrou aquelas plantas parasitas, como as orquídeas, que vivem agarradas às árvores.
Foto: Simone Catto |
Perto do café de Van Gogh, ainda na Place du Forum, há um resquício de um templo romano preservado que foi anexado a um hotel de construção bem mais moderna. Ou, melhor dizendo: o hotel é que foi anexado a ele. Achei bem pitoresca essa simbiose arquitetônica - me lembrou aquelas plantas parasitas, como as orquídeas, que vivem agarradas às árvores.
Resto de templo romano na Place du Forum - Foto: Wikipedia |
A principal praça da cidade, porém, é sem
dúvida a Place de la République. É lá que fica o prédio da Prefeitura (Hôtel de
Ville), um triunfo da arquitetura clássica construído entre 1673 e 1676 e
inspirado no estilo de Jules Hardouin-Mansart, nomeado arquiteto de Luís XIV em
1676. Pouco depois que o prédio foi concluído, um obelisco egípcio de 15 metros
de altura encontrado no anfiteatro romano foi transportado para lá numa
operação que deve ter gerado um transforno danado. Se esse transporte já seria difícil hoje, imagine mais de três séculos atrás!
Place de la République com o obelisco egípcio, o prédio da Prefeitura ao fundo e a Igreja Saint-Trophime à direita. Foto: Melvin |
Ainda na Place de la République, entrando
pelo prédio da Prefeitura, visitei os Cryptoportiques,
uma extensa galeria subterrânea com arcadas em formato de ferradura, construída
no ano 40 a.C., que fazia parte do antigo Fórum Romano. A esse respeito, vale
lembrar que toda cidade romana que se prezasse tinha um fórum. A iluminação
fraca não favorecia fotos e achei o lugar um tanto opressor, de forma que não
via a hora de sair dali para ver a luz do sol. E por falar em
opressão, em um pátio atrás do prédio da Prefeitura, topei com um lugar que me remeteu
a desespero e desolação. Conforme a inscrição na placa, tratava-se de três celas de prisão onde foram
encarcerados arlesianos antes de serem deportados, pelos nazistas, aos campos
de concentração. Um passado triste e assustadoramente recente.
As celas de prisão onde foram aprisionados os pobres arlesianos deportados para os campos de concentração nazistas. Foto: Simone Catto |
Foto: Simone Catto |
Um dos monumentos que estavam na
minha lista de visitas era a famosa Igreja
de Saint-Trophime, na Place de la République, que eu já conhecia dos livros
de história da arte e que integra os estilos românico e gótico.
Fachada da Igreja Saint-Trophime - Foto: Simone Catto |
A igreja começou a ser construída por
volta do ano 1100, mas sua bela fachada ladeada de estátuas dos Apóstolos e o
frontão que representa Cristo cercado pelos quatro Evangelistas (Mateus, Lucas,
Marcos e João) data de 1180-1190.
Detalhe dos Apóstolos de Cristo esculpidos na fachada da igreja - Foto: Simone Catto |
Foto: Simone Catto |
O sino e o transepto também são do
período românico, assim como a nave e os corredores abobadados de meados do
século XII.
A nave em estilo românico de Saint-Trophime Foto: Simone Catto |
Detalhe do interior da igreja - Foto: Simone Catto |
Na metade do século XIV, a cabeceira
da igreja, que compreende o coro, o altar e belas capelas adjacentes, foi construída já no estilo gótico, mais extravagante, para substituir o austero altar românico.
Capela de Saint-Trophime no estilo gótico. Foto: Simone Catto |
Neste altar, havia várias relíquias de santos. Foto: Simone Catto |
Em minhas andanças pela cidade, encontrei
também a Igreja
Notre-Dame-de-la-Major atrás do anfiteatro romano, a qual tem um altar dedicado a Nossa Senhora e teve a palavra "Major" acrescentada ao nome por se localizar no topo da colina de Arles. Segundo descobertas arqueológicas de 1758, a igreja foi construída no século XII no
local onde antes havia um templo romano, mas sofreu alterações sucessivas até o
século XVII. Como o quarteirão foi bombardeado em 1944, durante a II Guerra
Mundial, a abóbada e o sino da igreja foram danificados e posteriormente restaurados.
Igreja Notre-Dame-de-la-Major, do séc. XII. Foto: Simone Catto |
E já que estamos falando de igrejas,
é bom ressaltar que na Provence os símbolos de religiosidade dão sinal de vida a
todo momento. Eles estão nas casas, nas ruas, nas praças. A imagem abaixo, por exemplo, com moldura dourada,
representa Saint-Roch, santo nascido em Montpellier durante a Guerra dos Cem
Anos e homenageado na praça de Arles que leva seu nome. Pergunto-me se essa moldura não desbota, assim exposta às intempéries do clima. Ou será um milagre de Saint-Roch?
Imagem do santo na Place Saint-Roch - Foto: Simone Catto |
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