Mas do que trata esse "passado"? Bem, Nelson nasceu em Santos, em
1961, filho de um advogado bem-sucedido. Tinha mais cinco irmãos e sua mãe
faleceu ao concebê-lo, durante o parto. Por isso, seu aniversário, 1º de setembro
(ontem!) nunca foi comemorado em casa. Ninguém falava no assunto e o pobrezinho
do menino, que não tinha culpa alguma, ficava sem bolo e sem velinhas. Por aí
já dá para ver que, em termos de relações humanas, o pai não era lá essas coisas.
Quando Nelson tinha cerca de dois anos de idade, o homem casou-se novamente com
uma viúva que tinha três filhos. A família ficou enorme e as brigas eram
constantes. Não raro, o casal viajava para a Europa e deixava as crianças
sabe-se lá com quem. Não é preciso ser especialista para perceber que pai e
madrasta não eram exatamente as figuras mais amorosas e responsáveis do mundo.
O ator Marcos Felipe, que interpreta Luis Antonio 'Gabriela'. |
Nelson tinha um irmão quase dez anos mais velho: Luis Antonio.
Dizem que, certo dia, seu pai chegou em casa com aquela criança, ainda bebê, afirmando
tê-la adotado. Desde pequeno, Luis
Antonio manifestava trejeitos e gostos de menina, deixando patente sua
homossexualidade. Por causa disso, apanhou muito do pai, e com uma violência absurdamente
irracional. Em tempos de ditadura, chegou inclusive a parar na delegacia por
sua "conduta imoral". Naqueles repressivos anos 60, a família era apontada na
rua como "a família do sem-vergonha", do "pervertido". No entanto, Luis Antonio
nunca guardou mágoa do pai. Sempre se mostrou doce e alegre, apesar
das surras homéricas que levou em casa e das humilhações que sofrera. A condição homossexual
devia ser muito triste naqueles tempos.
Verônica Gentilin interpreta Nelson Baskerville. |
Já adolescente, Luis Antonio abusou sexualmente do irmão Nelson,
que contava, então, com apenas seis ou sete anos de idade. A peça revela,
aliás, que o menino tinha o hábito de molestar crianças pequenas. Não sabemos
se ele tinha noção da dimensão ou da gravidade desse tipo de ato, mas, como seria
de se esperar, sua vítima, Nelson, nunca mais iria se esquecer do episódio. Talvez isso
explique por que, mais tarde, nunca mais faria questão de se aproximar do
irmão.
A cenografia causa estranhamento. |
Ainda jovem, Luis Antonio começou a se vestir de mulher. Saiu
de casa e foi morar numa república de travestis, em Santos, adotando o nome de "Gabriela".
Até o dia em que se mudou para a cidade de Bilbao, na Espanha, e nunca mais
voltou. Um hiato de quase trinta anos separou-o da família, que o perdeu de vista.
Até que, no início dos anos 2000, surgiu o boato de que Luis
Antonio havia morrido. A família, alarmada, entrou em contato com o Consulado
da Espanha e foi atrás de notícias suas para saber o que havia ocorrido. Descobriu-se,
então, que Luis Antonio estava vivo. A irmã Maria Cristina foi encontrá-lo na
Espanha e viu que ele havia vivido como uma verdadeira estrela nas noites de
Bilbao, brilhando com seu show de travestis. Ganhou muito dinheiro, teve vários
amantes, mas também levava uma vida de excessos, com muita bebida e muitas
drogas. Maria Cristina descobriu, também, seu apelido: "Bolota", por causa das
bolas disformes que o silicone industrial, injetado pelo travesti, havia formado
em seu corpo. (Aliás, é deprimente ver a automutilação que tantos travestis
cometem contra si mesmos, injetando silicone líquido em seus corpos. Será que a
vontade de ser mulher é tão grande que eles ficam cegos para o fato de que essa
prática criminosa os transforma em figuras grotescas, além de trazer complicações
imensuráveis para a saúde? Enfim...) Maria Cristina impressionou-se, também,
com a semelhança entre Luis Antonio e sua avó paterna, reforçando a suspeita de
que ele fosse, mesmo, filho biológico de seu pai. Tudo indica que o menino era fruto
de um caso amoroso do pai, que havia traído a esposa com uma mulata.
Aquilo que já representa um drama no século XXI devia ser uma tragédia nos anos 60! |
Quando a irmã foi a seu encontro na Espanha, porém, Luis Antonio
deu-se conta de que não estava sozinho. Sentiu ainda ter uma família, mesmo que
longe. Veio a falecer em 2006, aos 53 anos, em decorrência de uma encefalopatia
hepática. Maria Cristina estava a seu lado. Pouco antes, já doente, havia
manifestado o desejo de retornar ao Brasil, mas a irmã dissuadiu-o da ideia
porque, aqui, ele não teria condições de receber o mesmo tratamento médico e os
cuidados que estava recebendo na Espanha.
O verdadeiro Luis Antonio, em foto do passaporte. |
Nelson compreendeu que, à época em que tudo aconteceu, no
Brasil, ninguém soube lidar com Luis Antonio. Fica claro que o pai, embora detentor
de certa cultura, era um homem bruto, com uma visão estreita e preconceituosa
da vida. A madrasta, pode-se dizer, era aquilo que chamamos de "cuca fresca": se
não conseguia dar conta de seus próprios filhos, o que dizer, então, dos filhos
dos outros? Vê-se, hoje, que Luis Antonio poderia ter conduzido sua vida de
forma diferente, se tivesse recebido apoio e carinho da família. Poderia ter
vivido sua homossexualidade de maneira mais saudável, sem automutilar-se com
injeções de silicone e sem entregar-se aos excessos.
Um dado curioso: na peça é dito que, nos anos 60, os gays que
não se caracterizassem como mulheres não eram procurados pelos outros homens. Naquela
época eu ainda não existia, mas, pelo que parece, tudo era muito
compartimentado, maniqueísta. Homem gay tinha que ser "mulherzinha" e,
provavelmente, mulher gay tinha que ser "machona". Ou seja: devia ser tudo ou preto
ou branco, e esqueciam-se as múltiplas variações de cinza no meio do caminho.
A peça é formada por recortes de depoimentos do próprio Luis
Antonio, da irmã Maria Cristina, da madrasta e outros. Para isso, foi levantada
farta documentação de Luis Antonio "Gabriela", incluindo cartas da irmã e do
pai e até seu álbum de bebê. Nelson é representado por uma atriz, Verônica
Gentilin, que também participou da montagem. Luis Antonio é interpretado por
Marcos Felipe, também um excelente ator.
A cenografia, fora do convencional e propositalmente feia, integra
elementos como bolsas de soro pendendo do teto, cadeiras plásticas e objetos cenográficos
áridos a projeções de vídeos e letreiros eletrônicos. Tudo isso gera uma
sensação de estranhamento e até de repulsa, certamente para aguçar, no
espectador, a percepção do drama de seus personagens reais.
Se
você quiser ir, prepare-se. A peça é forte e dá o que pensar. LUIS ANTONIO
GABRIELA está em cartaz no Teatro João Caetano – Rua Borges Lagoa, 650 – V.
Clementino – tel.: 3083-4475. Quinta a sábado: 21h. Domingo: 19h. O preço do
ingresso é R$ 20,00.
Em
tempo: parabéns, Nelson! Feliz aniversário!
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