terça-feira, 5 de março de 2019

‘Paul Klee - Equilíbrio Instável’. A descoberta de um talento polifônico no CCBB.

Há determinadas obras de arte que capturam o olhar das pessoas e apaixonam de imediato, mesmo que a falta de repertório, por quem as contempla, impeça que sejam compreendidas em sua totalidade. É o caso das pinturas impressionistas nos dias de hoje, já que à época em que foram produzidas sofreram o mais absoluto desprezo e escárnio por parte de crítica e público. Há outras obras, porém, que demoram mais para quebrar nossa resistência – seja pelo fato de serem abstratas ou excessivamente herméticas, não permitindo, portanto, uma analogia imediata com um universo percebido, seja por se distanciarem daquilo que o senso comum denomina como "belo". E como temos uma tendência natural para buscar referências sobre aquilo que nos agrada e negligenciar aquilo que não exerce grande apelo sobre nossos sentidos, muitas vezes "deixamos para lá" determinados artistas plásticos. É o que ocorreu, no meu caso – confesso - com o artista suíço Paul Klee (1879-1940), que está com mais de 100 obras exibidas na mostra 'Equilíbrio Instável', no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), em São Paulo.

E é exatamente por não ter grande conhecimento sobre a trajetória de Klee que se tornou uma questão de honra, para mim, visitar essa exposição o quanto antes para tentar sanar essa lacuna e compreender um pouco do que se passava em sua mente polimorfa. Devo dizer que o feriadão de Carnaval revelou-se a oportunidade perfeita, já que a cidade fica bem mais vazia nos locais que  interessam, isto é, aqueles que oferecem uma programação atraente para criaturas que conseguem memorizar sequências minimamente mais complexas que "alalaô ôôô ôôô". Fui ao CCBB numa manhã clara e agradável, livre do risco de ser surpreendida por um dos temporais que têm inundado as tardes de verão e, embora não tivesse adquirido o ingresso com antecedência pela Internet, não peguei nenhuma fila e pude apreciar a exposição com a tranquilidade que ela exige.

Paul Klee

Mas vamos a Klee. Descobri, em primeiro lugar, que ele era um artista multitalento, isto é, além de ser um desenhista de primeiríssima, seguindo uma longa linhagem de artistas gráficos alemães, era bom também na literatura e na música. Talvez isso se explique, em grande parte, pelo fato de ter nascido em uma família com manifesta sensibilidade para as artes. Desde pequeno, Klee recebeu estímulo para desenhar, especialmente da avó Catharina Rosina Frick, que não reprimia o uso da mão esquerda pelo menino em uma época que as crianças eram forçadas a utilizar a mão direita. Além disso, tocava violino desde a infância, incentivado pelo pai, Hans, que ministrava aulas de música, e pela mãe, Ida, que estudara canto e piano. O fato é que ele tinha um bom ouvido e, se quisesse, acredito que também poderia ter sido um excelente músico. Não é à toa que, mais tarde, o artista tenha feito tentativas de transpor a trama musical para várias de suas pinturas, sobrepondo cores e tons com se estivesse criando uma composição polifônica. Trabalhou a relação entre música e imagem e, frequentemente, utilizou conceitos musicais como "tonalidade", "polifonia", "harmonia" e "ritmo" para explicar suas obras.

Durante sua formação escolar, em Berna, o menino Klee costumava copiar folhas de calendários de pintores suíços e, durante os passeios no campo, registrava suas impressões da natureza em esboços. Creio que a oportunidade, para uma criança, de fazer passeios junto à natureza desde pequena amplia todo um universo mental de possibilidades e descortina novos mundos. Já rapazinho, entre 1898 e 1901, Klee foi para Munique, uma vez que a capital bávara era o centro artístico da Alemanha no momento. Frequentou a escola particular de desenho de um artista chamado Heinrich Knirr (1862-1944), onde começou a desenvolver habilidades para representar o nu e, de volta a Berna, aprofundou seus conhecimentos do corpo humano em aulas de anatomia no Instituto de Medicina da Universidade de Berna. Ou seja: mesmo após encontrar seu caminho artístico por meio da abstração, Klee tinha por trás o respaldo de uma sólida formação técnica, isto é, aprendeu a desenhar e muito bem. O oposto do que ocorre com inúmeros "artistas" atuais autoproclamados "abstratos", quando a única coisa realmente abstrata que apresentam é o talento - de "concreto", mesmo, só a preguiça de estudar. Por trás de tudo o que Klee fizesse, portanto, havia sempre muito estudo e experimentação. Metódico e disciplinado, ele trabalhava sem descanso em várias telas ao mesmo tempo e catalogou meticulosamente suas obras - acredita-se que tenha superado o impressionante número de nove mil.

Paul Klee - 'Sem título', 1899 - lápis s/ papel - Foto: Simone Catto

A música devia estar tão enraizada na família do artista que não deve ter sido por acaso que ele acabou se casando com uma pianista profissional, Lily Stumpf (1876-1946), em 1906. No ano seguinte, nasceria Felix, seu único filho. Naquela época, Klee ainda não havia consolidado sua carreira de artista e os papéis em casa se inverteram: quem pagava as contas era a esposa, ministrando aulas de piano, e Klee cuidava da casa e do menino, enquanto desenhava e pintava na cozinha. Modernos, não? Em pleno início do século XX... Enfim, eram artistas. Quem posava de modelo, então, eram os membros da família. Embora não esteja assinalado, é provável que o bebê retratado abaixo seja Felix.

Paul Klee - 'Retrato de uma criança', 1908 - aquarela s/ papel - Foto: Simone Catto

É bom dizer que, mesmo tendo optado pelas artes plásticas, Klee nunca abandonou a música. Antes de começar a pintar, tinha o hábito de tocar violino por uma hora todos os dias e, por vezes, acompanhava a esposa ao piano. Embora posteriormente tivesse tido contato com músicos vanguardistas na escola de Bauhaus, onde viria a lecionar, suas preferências musicais recaíam sobre compositores alemães tradicionais, como Mozart, Bach, Beethoven e Schubert.

Mas não era só a música que fazia os olhos de Klee brilharem. Apaixonado pelo teatro sob todas as formas, inclusive o teatro popular de fantoches, ele criou bonequinhos para divertir o filho Felix utilizando materiais como gesso, caixas de fósforo e tomadas elétricas, entre outros. Mais tarde, Felix, que viria a se tornar diretor de ópera e devia possuir uma boa dose de humor, usava os fantoches que o pai havia criado e um palco que ele mesmo construiu com marcenaria para encenar, a uma plateia de amigos e familiares, histórias divertidas sobre o cotidiano da Bauhaus, onde o pai dava aulas. Alguns desses bonecos fazem parte da exposição.

Não raro, a obra de Klee também é povoada por figuras como acrobatas e equilibristas em arriscadas exibições de equilíbrio e em risco iminente, o que muitos interpretam como uma metáfora da própria insegurança de sua vida artística. Mas essas figuras não eram dispostas aleatoriamente sobre uma superfície: elas obedeciam a leis da física, pacientemente estudadas pelo pintor. Sim, ele era um investigador nato, o que de certa forma me fez lembrar Leonardo da Vinci, guardadas as devidas proporções. O fato é que Klee associava a fantasia mais livre ao rigor mais austero.

Paul Klee - 'Equilibrfista', 1923 - litografia - Foto: Simone Catto

Além da arquitetura, Klee era fascinado pela natureza, que também inspirou sua linguagem abstrata. Para ele, a contemplação da natureza era uma revelação, "um olhar sobre o ateliê de Deus", segundo suas próprias palavras. Essas revelações muitas vezes ocorriam durante longas caminhadas contemplativas (descobri que ele era "dos meus"! rs), já que o artista era um andarilho incansável e um observador minucioso do mundo que o cercava. Talvez sua frase mais famosa seja: "A arte não reproduz o visível, ela torna visível". Klee sabia que era nos detalhes que encontraria o que procurava. Isso me lembrou outra frase, cuja autoria desconheço: "Deus está nos detalhes". O artista chegou a afirmar, mesmo, que uma obra podia “nascer, se desenvolver e se organizar como uma planta".

Foto: Simone Catto

A questão da abstração pictórica começou a se tornar importante para Klee a partir de 1910. Em Munique, ele se uniu ao grupo expressionista 'O Cavaleiro Azul', cujo membro principal era Wassily Kandinsky (1866-1944), iniciando ali uma longa amizade com o artista russo. Sabemos também que Cézanne, Picasso e Braque exerceram forte impressão sobre Klee, principalmente Cézanne, mas quem mais o fascinou foi o multicolorido Robert Delaunay (1885-1941), cujo ateliê visitou em Paris (sempre ela!), e para o qual a cor era o próprio "assunto" da obra. Mas foi em uma viagem à Tunísia, em 1914, que Klee foi "tomado pela cor", conforme afirmou certa vez. Contudo, embora tenha explorado incansavelmente as possibilidades cromáticas, Klee não colocou a luz e a cor em primeiro plano, ao contrário dos impressionistas. Nessa época, criou várias aquarelas, talvez porque a técnica se prestasse melhor a experimentos que possibilitassem uma transição entre figuração e abstração.

Paul Klee - 'Nas casas de St Germain', 1914 - aquarela s/ papel s/ cartão
(Obs.: como minha foto não saiu boa, peguei essa imagem na Internet)

Com tanta criatividade e técnica, Klee foi convidado, em 1921, a lecionar teoria da forma no curso básico da vanguardista Bauhaus, em Weimar, na Alemanha. Lá reencontrou o amigo Kandinsky. Quando a escola foi transferida para Dessau, em 1926, ele passou a dar aulas nessa outra cidade. Vale lembrar que a Bauhaus foi criada em 1919 pelo arquiteto Walter Gropius (1883-1969), num esforço para integrar a pintura, a escultura e a arquitetura aplicadas no cotidiano das pessoas. Em suas aulas, Klee usou seus conhecimentos da natureza para trabalhar questões ligadas à geometria, o que incluía a planimetria (estudo das figuras planas) e a estereometria (estudo do volume dos sólidos). Em 1931, o artista fez várias séries de desenhos construtivos, com linhas geométricas, seguindo modelos que montava a partir de varetas, elásticos e fios. Sabe-se que criava até 15 variações de um mesmo modelo. Afinal, não podemos esquecer que, embora se destacasse pela fantasia e pela imaginação, a obra de Klee nunca prescindia do desenho preciso, calculado e cerebral que caracteriza a grande tradição alemã.

Paul Klee - 'Harmonia da flora setentrional', 1927 - óleo s/ cartão revestido s/ compensado - Foto: Simone Catto

Paul Klee - 'Sem título' (Composição com flores e folhas), 1932 - óleo s/ cartão - Foto: Simone Catto

Foto: Simone Catto

Na década de 30, porém, as coisas começaram a ficar sombrias na Alemanha. O Partido Nacional Socialista de Hitler ganhou poder, tornando a atmosfera cada vez mais ameaçadora para o artista. Em 1931, quando trocou a Bauhaus pela Academia de Artes de Dusseldorf, Klee comentou, em cartas a sua esposa Lily, sobre como detestava Hitler e sua demagogia populista e primitiva. Observador crítico e irônico da realidade, na ocasião ele criou 250 desenhos a lápis, com traços extremamente nervosos e energéticos, nos quais manifestava seu descontentamento com a atmosfera violenta e opressiva que o fez emigrar para a Suíça em 1933. Não demorou para que sua obra fosse ridicularizada e classificada pelos nazistas como "arte degenerada" e, em 1937, cem obras suas foram retiradas dos museus alemães.

Paul Klee - 'Perseguição', 1932 - bico de pina s/ papel s/ cartão - Foto: Simone Catto

Paul Klee - 'Acusação na rua', 1933 - giz s/ papel s/ cartão - Foto: Simone Catto

Paul Klee - 'Mulher jovem', 1933 - aquarela s/ papel revestido s/ cartão
Foto: Simone Catto

Essa fase sombria da política alemã coincidiu com a precarização da saúde do artista, que no fim de 1935 foi acometido de esclerodermia, uma rara doença autoimune que endurece os tecidos conjuntivos, a pele e, por vezes, também os órgãos internos. Apesar disso, Klee continuou trabalhando e criou uma obra multifacetada e rica, caracterizada pela libertação da forma e da composição e por intensa espontaneidade gestual. Nessa época, fez desenhos com pincel utilizando traços simplificados e elementos arcaicos, por vezes francamente grotescos, lembrando pinturas infantis feitas com os dedos. A obra abaixo, por exemplo, lembra uma pintura rupestre.

Paul Klee - 'Soldado', 1938 - tinta de cola s/ algodão s/ cartão
Foto: Simone Catto

O trabalho a seguir pode ser interpretado como a representação de uma dupla desintegração: do próprio organismo do artista, pela doença física, e da Alemanha, pela doença moral acarretada pela ascensão do nazismo.

Paul Klee - 'Um acesso de raiva', 1939 - giz s/ papel s/ cartão
Foto: Simone Catto

Paul Klee - 'Um rosto também do corpo', 1939 - cola colorida e óleo s/ papel-cartão
Foto: Simone Catto

Paul Klee - 'Reconstrução de uma dançarina, uma tentativa', 1939
Aquarela s/ papel s/ cartão - (Obs.: foto da Internet)

Em sua última fase, mais precisamente a partir de 1938, Klee criou também uma perturbadora série de 40 representações de anjos, com formas em que o diabólico e o celestial se fundem. Carregados de forte carga simbólica, esses anjos, em minha opinião, são sintomáticos de um estado de espírito caracterizado pela percepção da proximidade do fim, devido à doença, agravada pela intuição de que a sinistra nuvem negra que encobria a Alemanha de então era só o início de uma catástrofe que estava prestes a se disseminar por toda a Europa.

Paul Klee - 'Anjo cheio de esperança', 1939 - lápis s/ papel s/ cartão
(Obs.: foto da Internet)

Paul Klee - 'Anjo incompleto', 1939 - lápis s/ papel s/ cartão
Foto: Simone Catto


Paul Klee - 'Anjo feio', 1939 - giz s/ papel s/ cartão - Foto: Simone Catto

Embora o trabalho de Klee continue não exercendo um fascínio especial sobre mim, em se tratando de gosto pessoal, é inquestionável que o artista merece todo o respeito por ter mostrado, inquestionavelmente, um talento interdisciplinar que o tornou um dos mais inventivos de sua geração. 

Antes de visitar a exposição, vale a pena assistir ao vídeo abaixo, uma produção francesa de 2005 intitulada ‘Diário de um artista’, sobre a trajetória de Paul Klee. Assisti ao vídeo pela primeira vez no próprio CCBB, mas, como tive vontade de revê-lo, arrisquei uma busca no Google e o encontrei. Felizmente, muitos desses vídeos de arte são de domínio público e o YouTube tem verdadeiros tesouros a serem descobertos. É só procurar!



Organizada por Fabienne Eggelhöfer, curadora-chefe do Zentrum Paul Klee, em Berna, Suíça, a exposição é obrigatória para todo mundo que se interessa por arte e estará em São Paulo até 29/4, com entrada franca. Mais informações aqui: http://culturabancodobrasil.com.br/portal/sao-paulo

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