Este é o último de uma série de três
posts sobre a exposição 'Cícero Dias –
Um percurso poético 1907-2003', no Centro Cultural Banco do Brasil - SP, que
abarca a trajetória do artista pernambucano que nasceu no engenho e
conquistou o Velho Mundo.
Cícero teve uma vida longa, produtiva e
feliz, marcada por muito trabalho e cercada por muitos afetos. Afeto por sua
terra natal, por sua esposa Raymonde, pela filha Sylvia, pelos incontáveis e
ilustres amigos e por sua própria arte, por ela se tornar o canal pelo qual
podia expressar todo esse amor que explodia dentro dele.
No primeiro post, falei sobre a
fase inicial e figurativa do artista, ainda no Brasil. No segundo, contei como sua
carreira se desenvolveu após sua mudança para a Europa, em 1937.
Agora é hora de falar da produção de
Cícero após o final da Segunda Guerra Mundial, quando ele já estava definitivamente
estabelecido em Paris. Sabemos que, durante a guerra, o artista mudou-se para Lisboa para ter um pouco de paz, e
lá se casou com Raymonde. Quando a guerra acabou, Picasso, que era muito seu amigo,
pediu-lhe que voltasse a Paris lhe enviando um exemplar de sua peça de teatro surrealista "Le Désir Attrapé par la Queue" ("O Desejo Capturado pelo Rabo"), com a seguinte dedicatória: "Para Dias, cuja presença
em Paris é necessária." E assim, Cícero voltou à França, ligando-se em seguida à
Escola de Paris e ao grupo de artistas abstratos que expunha na Galerie Denise
René. Alguns de seus amigos e admiradores, como Manuel Bandeira, não gostaram
muito do novo estilo artístico do mestre. Gilberto Freyre, por outro lado, teve
um olhar mais compreensivo para a nova arte do amigo que havia ilustrado a capa
da primeira edição de seu clássico "Casa Grande e Senzala", em 1933.
Em Paris, Cícero teve uma vida cultural agitada.
(Mas cá entre nós: como não ter uma vida cultural agitada em Paris? É
matematicamente impossíve, rs...) O fato é que Cícero adotou a abstração plena, criando
pinturas vibrantes, quentes, com cores intensas que evocam a luminosidade dos
trópicos. Sua arte tornou-se ainda mais livre e instintiva. Os europeus, enfeitiçados
com tanta vida, adoraram e aplaudiram.
Cícero Dias - 'Composição' (década de 40) - óleo s/ tela - Coleção Flávia e Waldir Simões de Assis Filho Foto: Simone Catto |
Embora nunca mais tivesse residido no
Brasil, em 1948 o artista fez uma viagem para cá e pôde matar um pouco a saudade
de sua terra. Na ocasião, executou várias pinturas murais abstratas na sede da
Secretaria de Finanças do Estado de Pernambuco, no Recife. Essas obras foram consideradas
as primeiras pinturas abstratas na América Latina e causaram celeuma à época.
Ainda no Brasil, ele aproveitou para
fazer uma viagem ao Nordeste ao lado de um time para lá de respeitável: Rubem
Braga, Mário Pedrosa, Orígenes Lessa e José Lins do Rego. Queria ter ouvido as conversas
dessa turma!
Aqui no Brasil, o movimento
construtivista só começou no final da década de 40. Cícero Dias foi o pioneiro
que, em Paris, começou a pintar telas geométricas. Porém, mesmo fazendo parte
da Escola de Paris, nunca renegou suas raízes brasileiras.
Cícero Dias - 'Sem título' (1951) - óleo s/ tela - Coleção MAC/USP Foto: Simone Catto |
No final dos anos 50 e início dos 60, o artista parece ter sentido uma espécie de nostalgia e fez um retorno
à figuração, com imagens de sua juventude e lembranças do Recife. Mais do que simplesmente
retornar às origens, porém, ele enriqueceu essas memórias afetivas incorporando
as descobertas e aprendizados artísticos que acumulou ao longo de toda a vida. Nessa
fase, as narrativas são menos fantasiosas, mas a cor torna-se ainda mais densa.
A obra a seguir exemplifica bem essa
nova etapa. Conforme a inscrição que acompanha a pintura no CCBB, "...o artista
rememora uma festa de família ao ar livre, com mesa farta e muita música. Ao
fundo, uma igreja branca pousa sobre a colina de areia muito clara, tendo no
seu flanco uma fileira de casas coloridas recortadas sobre o mar. Todos os
elementos caros ao artista se reúnem nesse trabalho cujo título, não por acaso,
é Nostalgia."
Cícero Dias - 'Nostalgia' (década de 50) - óleo s/ tela - Coleção Instituto São Fernando - Foto: Simone Catto |
Cícero Dias - 'Infância em Boa Viagem' (década de 50) - óleo s/ tela Coleção Beatriz e Fernando Xavier Ferreira - Foto: Simone Catto |
Cícero dias - 'Figuras no Pátio' (década de 50) - óleo s/ tela Coleção Flávia e Waldir Simões de Assis Filho - Foto: Simone Catto |
Abaixo temos uma "composição idílica,
sensual e musical" na qual uma vegetação exuberante se funde ao colorido
casario, destacando a alvura de uma mulher seminua que está de costas para o
seresteiro.
Cícero Dias - 'Seresta' (1950-69) - óleo s/ tela - coleção particular - Foto: Simone Catto |
A partir de 1960, Cícero começou a
desenvolver uma pesquisa geométrica denominada "Entropias", na qual fez um
mergulho nas possibilidades do uso da tinta, sem nenhum planejamento formal
prévio. Nessas obras, ele deixava a tinta escorrer e se misturar com as outras,
até se esvair - veja a obra abaixo. A propósito, uma das definições de "entropia", segundo o dicionário
Houaiss, é a medida da "desordem em um sistema", ou medida da "imprevisibilidade
da informação". Mais uma marca da liberdade do artista que não se prendia a
nenhuma escola!
Cícero Dias - 'Sem título' (década de 60) - óleo s/ tela - Coleção Maxime Dautresme, Hong Kong - Foto: Simone Catto |
Cícero Dias - 'Composição IV' (1962) - óleo s/ tela - Museu Oscar Niemeyer - Foto: Simone Catto |
Cícero Dias - 'Interior' (década de 70´) - óleo s/ tela - coleção particular, Curitiba - Foto: Simone Catto |
Cícero Dias e sua filha Sylvia no ateliê, 1996 |
Conheça as outras matérias do blog sobre a exposição Cícero Dias no
CCBB!
Ainda não visitou a exposição? Corra que só vai até o dia 3 de julho!
Anote: 'CÍCERO DIAS – UM PERCURSO POÉTICO 1907-2003' - Centro Cultural Banco
do Brasil – R. Álvares Penteado, 112 – Centro – São Paulo. Tel.: 3113-3671/3652
- de quarta a segunda, das 9h às 21h. Entrada franca. Até 3/7.
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