segunda-feira, 26 de junho de 2017

Cícero Dias no CCBB (parte1): Fantasia e lirismo com engenho e arte.

Ele nasceu em Pernambuco, mas ganhou Paris. Cresceu em meio a um engenho de cana-de-açúcar, mas se integrou como poucos artistas brasileiros à vanguarda artística europeia. O pintor considerado pioneiro da abstração no Brasil é tema da exposição 'Cícero Dias – Um percurso poético 1907-2003', no Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo. Visitei a mostra há alguns dias e me surpreendi com sua riqueza e abrangência. Toda a trajetória de Cícero está lá: o início da carreira na década de 20, com arte figurativa, passando pela figuração da fase europeia, seu caminho rumo à abstração até o retorno ao figurativo nostálgico, no final dos anos 50 e início dos 60. Lá estão mais de 120 obras de grandes coleções públicas e privadas brasileiras e de outros países como Austrália, China e França. E cada uma revela uma nova parcela de sua genialidade.

Cícero Dias viveu em Paris de 1937 até o fim da vida e, ao que tudo indica, a mudança de país foi a melhor decisão que poderia ter tomado: na França ele foi acolhido, teve seu valor reconhecido, desenvolveu uma carreira longa e produtiva e ficou próximo de personalidades como Picasso e o poeta Paul Éluard, dentre muitas outras. E para coroar tudo isso, foi na França que Cícero conheceu Raymonde, a esposa dedicada que lhe daria a filha Sylvia, companheira de todos os momentos.

A exposição do CCBB está dividida em três módulos: Brasil, Europa e Paris. Cada fase apresenta características distintas, em cada uma o artista experimenta novas linguagens, mas o Brasil sempre esteve presente em sua obra. O que fica evidente, sobretudo, é que Cícero trabalhou com total liberdade e sempre foi fiel a si mesmo, não se prendendo nunca a nenhum "ismo" ou escola específica.

Como a exposição é muito rica e tirei muitas fotos, vou abordá-la em três posts diferentes, para não "afogar" o leitor em informações. Seguirei a ordem cronológica e, neste primeiro, falarei da primeira fase do artista, ainda no Brasil. Neste módulo, denominado "Brasil", predominam as aquarelas produzidas entre 1925 e 1933. Elas mostram os devaneios eróticos do jovem senhor de engenho que convivia diariamente com as criadas da casa e também memórias da vida urbana no Recife e no Rio de Janeiro.

Obs.: como algumas aquarelas estão protegidas por vidros, infelizmente muitas fotografias saíram com reflexo. Mesmo assim, preferi postar as imagens para que você possa ter uma ideia da riqueza do que vi por lá! 

As fantasias eróticas do artista em sua juventude afloram na sensualidade da mulher abaixo, ao mesmo tempo opulenta e doce, com o seio e o sexo à mostra. Ele distorceu a mulher numa espécie de "contorcionismo" e o efeito ficou muito interessante.

Cícero dias - 'Sem título' (1929) - aquarela s/ papel - Coleção Sylvia Dias Dautresme, Paris - Foto: Simone Catto

A seguir, está uma das obras mais renomadas do artista: vemos uma prostitua recostada na cama, numa pose que lembra a da "Olympia", de Manet. A moça parece quase recatada em sua nudez, destacando as meias com ligas. Os objetos do toucador em primeiro plano, tipicamente femininos, contrastam com a força do São Jorge que a protege na diagonal oposta. Aliás, só mesmo São Jorge para salvar uma rapariga dessa vida!! (rs) E ao longe, na janela, vemos as casas da rua Gamboa do Carmo, no bairro de Santo Antônio, Recife.

Cícero Dias - 'Gamboa do Carmo no Recife' (1929) - óleo s/ tela - Coleção Dora Rosset, São Paulo
Foto: Simone Catto

Cícero Dias - 'O Sonho' (1931) - aquarela s/ papel - Coleção Maxime Dautresme, Hong Kong - Foto: Simone Catto

A foto abaixo saiu tremida - peço desculpas, mas não pude deixar de postá-la, pois achei muito harmônica a forma como o artista dispôs as cores e distribuiu os elementos na composição.

Cícero Dias - 'Cena rural' (década de 20) - aquarela s/ papel - Coleção Maxime Dautresme, Hong Kong
Foto: Simone Catto

Cícero Dias - 'Freiras e Menina' (década de 20) - aquarela s/ papel - coleção particular - Foto: Simone Catto

O poeta romântico Gonçalves Dias (1823-1864), autor da célebre Canção do Exílio ("Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá...") era primo do artista, faleceu muito antes de seu nascimento, mas também foi imortalizado em seus pincéis.

Cícero Dias - 'Gonçalves Dias, primo do pintor' (década de 20) - aquarela s/ papel - Acervo Banco Itaú
Foto: Simone Catto

As obras dessa primeira fase tinham um caráter lírico, onírico e, ao olhar para algumas, foi inevitável fazer uma associação com Marc Chagall e suas figurinhas voadoras, algumas pairando entre as nuvens.

Cícero Dias - 'Procissão' (década de 20) - aquarela s/ papel - coleção particular - Foto: Simone Catto

Cícero Dias - 'Os sobrinhos do Prof. Piccard' (década de 20) - aquarela s/ papel - coleção particular, Paris
Foto: Simone Catto

Cícero Dias - 'Sem título' (c.1929-29) - óleo s/ tela - Coleção Charles Dautresme, Melbourne - Foto: Simone Catto

Cícero estreou no cenário artístico nacional em 1928, quando fez uma exposição de aquarelas no Rio de Janeiro. Foi muito elogiado pelos críticos e artistas modernistas, mas gerou estranhamento entre o público leigo. A exposição foi realizada na Policlínica da cidade, que abrigava um congresso internacional de psicanálise, e a intelectualidade compareceu em peso à abertura. Muita gente encarou sua obra como uma manifestação de "loucura", pois era diferente de tudo o que se produzia no Brasil à época. No entanto, aquilo que tantos consideraram uma sandice nada mais era do que a explosão de uma grande imaginação, inventividade e talento.


O poeta Manuel Bandeira é um dos intelectuais que compareceram ao vernissage e ficou vivamente impressionado com a arte de Cícero. Numa carta a Mário de Andrade, de 27 de junho de 1928, ele descreveu a obra do jovem artista:

"A novidade aqui é a exposição de um rapaz de Pernambuco que vive no Rio – Cícero Dias. Uma arte profundamente sarcástica e deformadora; por exemplo, uma entrada da Barra com o fio do carrinho elétrico do Pão de Açúcar preso na outra extremidade ao galo da torre da igrejinha da Glória, e a igrejinha toda torta. Acho muita imaginação e verve nele. Entre os que entendem e pintam, está cotado. No meio modernista, claro. Assim como o Goeldi; o Di e o Nery gostaram muito. O trabalho tem uma dedicatória ao artista Lasar Segall: 'Ao meu amigo Lazar Segall, com grande admiração, o abraço de Cícero Dias'”.

A obra mencionada na carta de Manuel Bandeira a Mário de Andrade está no CCBB – veja abaixo – ao lado de outras que fizeram parte da exposição de 28. A foto não saiu muito boa, mas dá para ter uma ideia da inventividade do artista!  

Cícero Dias - 'Cena Imaginária com Pão de Açúcar' (1928) - aquarela s/ papel - coleção particular
Foto: Simone Catto

Cícero Dias - 'Cabra-Cega' (1928) - aquarela s/ papel - coleção particular, São Paulo - Foto: Simone Catto


A composição abaixo reflete bem o momento de euforia que Cícero viveu no Rio de Janeiro. Imagine um jovem cheio de vida participando da vida boêmia da cidade! Foi assim que ele tentou capturar essa vertigem de sensações num cenário onde tudo se misturava. Do lado direito, temos o Pão de Açúcar e a Baía de Guanabara vistos do bairro de Santa Teresa, onde o artista morou. Temos também um casario típico do bairro, um campinho de futebol e a entrada de um bordel com uma mulher nua vista parcialmente. Essa simultaneidade de imagens, dispostas com tanta liberdade e fantasia, não era comum na arte brasileira do período e tornou a obra de Cícero única entre os modernistas.

Cícero Dias - 'Bagunça' (1928) - aquarela s/ papel - coleção particular - Foto: Simone Catto

Entre 1930 e 1939, o artista criou principalmente pinturas a óleo, e sua produção tornou-se mais narrativa e lírica, com lembranças da infância no Engenho Juquiá. Na mudança da aquarela para o óleo, Cícero criou obras mais densas, estáticas e narrativas, porém igualmente ricas no cromatismo.

Cícero Dias - 'Jangada/Jangadinhas' (década de 30) - óleo s/ tela - Museu do Estado de Pernambuco, Recife
Foto: Simone Catto

Ao lado de 'Gamboa do Carmo no Recife', mostrada mais acima, a obra a seguir está entre as maiores do artista.

Cícero Dias - 'Sonoridade na Gamboa do Carmo' (década de 30) - óleo s/ tela - coleção particular
Foto: Simone Catto

Cícero Dias - 'Autorretrato' (década de 30) - óleo s/ tela - coleção particular - Foto: Simone Catto

Cícero Dias - 'Casal com Criança' (década de 30) - Museu da Casa Brasileira - MAB/FAAP, São Paulo
Foto: Simone Catto

O trabalho abaixo ilustrou a capa do livro "Casa-Grande e Senzala", a convite do autor Gilberto Freyre, muito amigo de Cícero. Os dois visitaram juntos o Engenho Noruega, já em ruínas, e conversaram sobre as histórias daquela casa, que pertencia à família do artista. Ele tirou as medidas do que restava da construção e as enviou ao arquiteto Carlos Leão, no Rio, para que este fizesse uma planta. A partir dela, Cícero criou imagens que trouxeram o Engenho de volta à vida. O livro foi lançado em 1933 e marcou época, tornando-se conhecido aqui e no exterior por sua abordagem inovadora da relação entre escravos e senhores no Brasil.

Cícero Dias - 'Casa Grande do Engenho Noruega' (1933) - gravura aquarelada - Coleção Flávia e Waldir Simóes de Assis Filho
Foto: Simone Catto

Nem as cartas escapavam à fantasia e à imaginação do artista, como atesta a carta de Cícero para Mário de Andrade, abaixo, decorada com graciosos desenhos.

Carta de Cícero Dias a Mário de Andrade - fac-símile - Foto: Simone Catto

E aqui, você confere sua última fase em Paris!

Visite: 'CÍCERO DIAS – UM PERCURSO POÉTICO 1907-2003' - Centro Cultural Banco do Brasil – R. Álvares Penteado, 112 – Centro – São Paulo. Tel.: (11) 3113-3671/3652 - de quarta a segunda, das 9h às 21h. Entrada franca. Até 3/7.

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