segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

'Além das Montanhas'. Obsessão e fanatismo numa Romênia desoladora.

A maioria dos filmes contemporâneos costuma apresentar desfechos previsíveis apresentados com soluções fáceis. Definitivamente, não é o caso de Além das Montanhas ('Dupa Dealuri'), excelente drama franco-belgo-romeno exibido na última Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e que estreou nesse fim de semana na cidade. Lá não há nada de previsível, apesar de os espíritos mais sensíveis já poderem antever que boa coisa - leia-se: um 'final feliz' - não pode sair dali. Podemos até imaginar diferentes desfechos para a trama, mas certamente todos trágicos. Escrito e dirigido pelo romeno Cristian Mungiu, o filme tem uma atmosfera opressora. A fotografia escura, a paisagem desoladora e a carga dramática do elenco majoritariamente feminino reforçam a convicção de que, a qualquer momento, algo de muito terrível pode acontecer ali.


Além das Montanhas se passa numa gélida Romênia, país visivelmente depauperado por décadas de atraso do Leste Europeu. O cenário é uma espécie de monastério ortodoxo de freiras, situado no meio do nada, dirigido com parcos recursos por um padre (Valeriu Andriuta) e uma madre superiora (Dana Tapalaga).

Voichita (Cosmina Stratan), ao centro, em cena típica do monastério.

O filme começa quando uma das noviças, Voichita (Cosmina Stratan), vai à estação ferroviária receber sua amiga Alina (Cristina Flutur), colega do orfanato onde ambas cresceram juntas. Alina, uma jovem de 25 anos que até então estava morando na Alemanha, vai para a Romênia firmemente decidida a buscar a amiga para que continuem a viver juntas. Fica claro, desde o princípio, que a moça agiu movida por um sentimento que vai muito além da amizade, mas que a amiga, se um dia lhe correspondera, havia agora escolhido outro caminho – a renúncia de uma vida mundana para servir a Deus. E é aí que começam os problemas.

Voichita (Cosmina Stratan) e Alina (Cristina Flutur) em sua cela no monastério. 

O convento tem regras rígidas impostas a mão de ferro pelo padre e endossadas pela madre superiora, e as moças dividem entre si diversas tarefas de uma pesada rotina de trabalho: tirar água do poço, limpar, cozinhar, fazer consertos, rezar etc. Alina, hospedada no lugar, não se conforma com o fato de Voichita ter escolhido aquela vida e começa a se rebelar contra os indícios de fanatismo religioso e os dogmas nos quais claramente não acredita. A moça não consegue guardar para si suas convicções e, num crescendo de tensão, acaba por se descontrolar e surtar, fazendo com que os religiosos a considerem "possuída pelo demônio". Não é difícil prever que as consequências são as mais nefastas possíveis.

O padre (Valeriu Andriuta) tenta expiar Alina (Cristina Flutur) de seus pecados na capela do monastério.

Alguém poderia afirmar que, se a personagem de Voichita havia optado por aquela vida de privações, é porque teoricamente estaria feliz ali e a amiga não tinha o direito de interferir em sua escolha. Bastaria que fosse embora e procurasse outra forma de também ser feliz.

Por outro lado, é inevitável questionar até que ponto aquelas moças haviam optado pela vida monástica por uma vocação genuína ou se não o haviam feito por mera falta de perspectivas, já que a maioria não teria chances de assegurar uma existência digna e aplacar sua solidão de outra maneira numa Romênia árida e hostil. Vale lembrar que Voichita é órfã e não possui ninguém no mundo além de Alina, de forma que o convívio com as colegas do convento, de certa forma, é aquilo que mais se aproxima de uma vida em família. Apesar de toda a lavagem cerebral doutrinária e da alienação a que as jovens estão submetidas, portanto, somos levados a concluir que consideram ser ali o lugar "menos ruim" onde poderiam estar.


Merecidamente, Além das Montanhas ganhou dois prêmios no último Festival de Cinema de Cannes: roteiro, do também diretor Cristian Mungiu, e atriz principal, prêmio que foi dividido entre as intérpretes das duas amigas: Cosmina Stratan (Voichita) e Cristina Flutur (Alina), simplesmente soberbas. Nem preciso dizer que o filme vale cada um de seus 155 minutos, os quais nem sentimos passar pela constante tensão que permeia a trama e que nos deixa sempre na expectativa do pior.

Por enquanto, ALÉM DAS MONTANHAS está em cartaz em apenas dois cinemas que, não por acaso, estão entre os meus preferidos: Espaço Itaú de Cinema Augusta (Sala 3) e Reserva Cultural (Sala 4). Se você é daqueles(as) que gosta de cinema da melhor qualidade, não deixe de assistir! Mas vá preparado(a) para um filme pesado.

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