domingo, 14 de junho de 2020

A marca de Aubrey Beardsley no decadentismo fin-de-siècle.

O artista gráfico Aubrey Bredsley (1872-1898) era o que muitos, hoje, chamariam de "figura fora da curva". Poucos artistas imprimiram, como ele, a marca de sua personalidade de maneira tão indelével em seu tempo. Esse jovem que morreu prematuramente de tuberculose em 1898, com apenas 25 anos, já havia se tornado um dos artistas mais celebrados da Europa no fim do século XIX. Chocou e encantou os anos derradeiros da Londres vitoriana com seus extraordinários desenhos em preto e branco criados com uma técnica admirável e um estilo inconfundível. Explorou o erótico e o elegante, o humorístico e o grotesco, conquistando admiradores de todo o mundo e personirficando a essência do decadentismo da década de 1890.

Aubrey Beardsley - 'Autorretrato' - 1892
Museu Britânico - Londres
O GÊNIO ADOLESCENTE

A carreira artística de Beardsley foi breve, durando pouco menos de sete anos, entre 1891 e 1898. Quando tinha 18 anos, ele conheceu o pintor pré-rafaelita Edward Burne-Jones, o qual admirava profundamente. Ao ver o portfólio de Beardsley, Burne-Jones, que de bobo não tinha nada, comentou: "Eu raramente ou nunca aconselho alguém a assumir a arte como profissão, mas no seu caso não posso fazer mais nada." Não poderia ter sido mais profético. Por recomendação de seu ídolo, o jovem artista assistiu, durante um tempo, às aulas na Westminster School of Art.

Beardsley ansiava por fama e reconhecimento e cultivou, como ninguém, uma autoimagem de dândi e esteta. Esse caráter é identificado em seus inúmeros autorretratos e também em retratos do artista realizados por seus contemporâneos. Espirituoso, alto, "impecavelmente limpo e bem arrumado", Beardsley logo se destacou por seu dandismo. Caracterizado pelo culto ao refinamento e por uma certa artificialidade, tanto nos trajes quanto nos modos, o dandismo era uma postura inerente à estética decadentista. Alguns contemporâneos, inclusive, relacionaram a extrema magreza e a aparência física frágil do artista a ideias de morbidade também associadas ao espírito decadente do fin de siècle. Embora Beardsley rejeitasse esse rótulo, seu trabalho explora muitos desses aspectos, como o fascínio pelo "antinatural" e o bizarro, pela liberdade sexual e a fluidez de gênero.

Aquilo que o mundo de hoje identifica como estética LGBTQIA+ estava apenas começando a se delinear naquele tempo. Beardsley se sentia atraído pelas mulheres, mas foi pioneiro em representar o que muitos atualmente denominariam como queer. Embora fosse fascinado por todos os aspectos da sexualidade, é provável que suas experimentações nesse sentido tenham ocorrido principalmente na literatura e na arte.

Foto de Beardskey por Frederick Evans - 1893
Wilson Centre for Photography - Londres 
A INDEPENDÊNCIA FINANCEIRA

No início de 1892, Beardsley recebeu sua primeira encomenda importante. Um amigo, o fotógrafo e livreiro Frederick H. Evans, o apresentou a J.M. Dent, editor enérgico e empreendedor que procurava um ilustrador para Le Morte D'Arthur, a versão do século XV de Sir Thomas Malory das lendas do Rei Arthur. Dent planejava uma edição robusta, ao estilo dos livros da Kelmscott Press, a editora de William Morris que se caracterizava pelo alto padrão artístico do design e da tipologia. Entre o outono de 1892 e junho de 1894, Beardsley produziu 353 desenhos, incluindo ilustrações de página inteira e dupla, elaborados desenhos de bordas e numerosos títulos ornamentais para capítulos do livro. Recebeu pelo trabalho a quantia de 250 libras, o que lhe deu liberdade para abandonar um odiado emprego de balconista e se concentrar em sua arte.

No entanto, Beardsley gradualmente se cansou desse empreendimento extenuante e detalhes subversivos começaram a pipocar em seus desenhos. Personagens incongruentes como sereias, sátiros e criaturas híbridas com pernas de cabra, alusivas à mitologia clássica, passaram a aparecer nos trabalhos.

Suas ilustrações foram reproduzidas por um processo de impressão em bloco de linha, relativamente novo e econômico, no qual os desenhos são transferidos para chapas de impressão de maneira fotográfica. Inicialmente, Beardsley ficou desapontado com o resultado, mas rapidamente adaptou seu estilo para esse processo de impressão que podia reproduzir as linhas com precisão e também grandes áreas planas de preto.

"ALGO QUE LEMBRA O JAPÃO”

A partir da década de 1860, os europeus tinham desenvolvido um gosto pela cultura visual japonesa por causa do restabelecimento das relações comerciais com o Japão, e Beardsley cresceu cercado por interpretações ocidentais da arte nipônica. No verão de 1891, junto de sua irmã Mabel, visitou a mansão londrina do magnata da navegação Frederick Leyland e lá viu a Peacock Room, uma fabulosa sala criada quinze anos antes pelo artista americano expatriado James McNeill Whistler. Decorada com motivos japoneses retrabalhados, essa obra-prima tornou-se um dos interiores mais célebres de Londres à época. Hipnotizado por essa visão, Beardsley começou a introduzir detalhes orientais em seus próprios desenhos.

A 'Peacock Room' que encantou Beardsley na casa do magnata Frederyck Leyland, em Londres.

As xilogravuras japonesas (Ukiyo-e) também foram uma influência importante e Beardsley adotou suas convenções gráficas, passando a incluir áreas de padrão plano contrastadas com figuras desenhadas com precisão contra fundos abstratos ou vazios. Como vários artistas da época, Beardsley também gostava do formato elegante, alto e estreito dos tradicionais rolos japoneses de kakemono, a pintura sobre rolos de seda. Em uma carta a um amigo, se gabou: "Criei para mim um método totalmente novo de desenho e composição, algo que lembra o Japão... Os temas eram bastante loucos e um pouco indecentes".

Aubrey Beardsley - 'A Capa Negra' - 1893 - Princeton University Library - Princeton, EUA

DESENHAR PARA PROVOCAR

A arte de Beardsley veio a público em abril de 1893, quando se tornou tema do artigo principal - A New Illustrator - da primeira edição da nova revista de arte The Studio. Nele, o especialista em artes gráficas Joseph Pennell elogiou o trabalho de Beardsley afirmando que ele era "tão notável em sua execução quanto em sua inventividade: uma combinação muito rara". O artigo destacou como a impressão fotográfica de bloco de linhas tinha o poder de revelar a verdadeira qualidade do traço de um artista.

As reproduções no artigo da The Studio incluíam ilustrações medievais e pré-rafaelitas realizadas para Le Morte D'Arthur, que seria publicado em breve, e exemplos do trabalho de Beardsley inspirado em xilogravuras japonesas. Isso mostrou sua versatilidade e fez com que ele recebesse novas encomendas para livros e revistas populares, como a Pall Mall Magazine. J.M. Dent, editor de Le Morte D'Arthur, receando que Beardsley se cansasse daquele projeto monumental, e para mantê-lo interessado, convidou-o a criar centenas de pequenas ilustrações "grotescas" para a série Bon-Mots (Boas Palavras), composta de três livros em miniatura de ditos espirituosos. Nesse contexto, o termo "grotesco" se refere à distorção ou exagero das formas para criar um efeito de fantasia ou estranheza. Uma ideia coerente com o modo como Beardsley via o mundo, uma vez que mais tarde ele próprio afirmaria, a respeito de sua arte: "Não sou nada se não for grotesco".

Aubrey Beardsley - 'A Mulher Gorda' - 1894 - Tate Britain, Londres

Aubrey Beardsley - 'A Dama das Camélias' - 1894 - Tate Britain, Londres

Além de se inspirar na arte pré-rafaelita e nas gravuras japonesas, Beardsley também ficou impressionado com os vasos gregos que viu no Museu Britânico e com a arte renascentista. Vale lembrar que as figuras alongadas que incluía em seus desenhos também estavam presentes na arte de seu primeiro mentor, o pré-rafaelita Edward Burne-Jones. A combinação de todas essas fontes contribuiu para moldar seu estilo e, com apenas 21 anos, Beardsley já era aclamado como um grande ilustrador.

Aubrey Beardsley - 'Ave Atque Vale' - 1896 - coleção particular

DANÇA DOS SETE VÉUS

Em 1892, Beardsley fez por conta própria um desenho para Salomé, peça de Oscar Wilde originalmente escrita em francês e baseada no famoso relato bíblico. Salomé se apaixona por Iokanaan (João Batista) e, quando este a rejeita, ela exige sua cabeça ao padrasto, Herodes Antipas, como recompensa por dançar a dança dos sete véus. Beardsley ilustrou Salomé prestes a beijar a cabeça decepada de Iokanaan, Wilde gostou do desenho e, ao lado de seu editor, John Lane, convidou-o para ilustrar a tradução em inglês da peça. As ilustrações tecem temas de sensualidade e morte e exploram uma ampla gama de desejos sexuais. Como era de se esperar, a publicação da peça gerou furor, trazendo em seu rastro a publicidade tão desejada por Wilde e seu jovem ilustrador.

Beardsley adorava ocultar elementos provocativos em seus desenhos. Lane certa vez afirmou que "era preciso colocá-los sob um microscópio e olhá-los de cabeça para baixo" a fim de descobrir suas "provocações". Ao ver os desenhos para Salomé, censurou detalhes que considerou "problemáticos" na folha de rosto e na ilustração criadas por Beardsley, além de rejeitar completamente dois projetos da primeira edição. Mesmo assim, Lane falhou em perceber muitos detalhes eróticos ocultos e, surpreendentemente, permitiu a publicação de desenhos que incluíam caricaturas de Wilde.

O desenho abaixo, denominado 'Herodias Entra', mostra o momento em que a mãe de Salomé entra no palco. No canto inferior direito, há uma caricatura de Oscar Wilde segurando uma cópia do texto da peça. Embora Herodias esteja coberta por uma grande capa, seus seios estão expostos. John Lane exigiu que Beardsley cobrisse a genitália da personagem à direita com uma folha de figueira, mas não percebeu as velas no primeiro plano desenhadas em formato de pênis e a ereção da figura à esquerda. Sim, podemos dizer que Beardsley "pregou peça na peça".

Aubrey Beardsley - 'Entrada de Herodias' - 1893 (publicada em 1907) - coleção particular

No total foram criadas dezoito ilustrações, mas apenas dez apareceram na primeira impressão da peça.

PARIS EM CARTAZ

Ao viajar pela primeira vez a Paris, em 1892, o jovem artista ficou encantado com a multiplicidade de pôsteres e cartazes que adornavam a cidade. Os pôsteres franceses mostravam as possibilidades desse novo formato outdoor produzido em massa e o potencial de reprodução de cores em larga escala. Mais do que depressa, Beardsley passou a criar seus pôsteres também. Entendendo que eles seriam vistos pelas pessoas de passagem, muitas vezes a distância, concebeu projetos com formas arrojadas e simplificadas e sólidos blocos de cores. Considerava a publicidade essencial para a vida moderna e uma oportunidade de integrar a arte à experiência cotidiana. Como ele mesmo afirmou, "a beleza tomou conta da cidade".

No outono de 1894, foi aberta em Londres a primeira exposição inglesa de pôsteres. Cartazes pictóricos desfrutavam então um boom na Grã-Bretanha e começaram a ser reconhecidos como uma forma de arte. A exposição contou com obras de artistas franceses famosos como Jules Chéret e Henri de Toulouse-Lautrec, conhecidos como os "pais" do pôster moderno, e não por acaso incluiu também vários trabalhos de Beardsley. Além de colocar seus pôsteres em pé de igualdade com a arte que o inspirara, essa exposição atestou a importância de Beardsley no desenvolvimento do design de pôsteres britânicos.

Abaixo está uma ilustração para a ópera Siegfried, de Richard Wagner. Minuciosamente detalhada, ela mostra o estilo de desenho de Beardsley em linhas extremamente finas.

Aubrey Beardsley - 'Siegfried', Ato II' - 1892-3 - Victoria and Albert Museum, Londres

GLÓRIA ENTRE AMIGOS

O brilhante artigo na revista The Studio e o sucesso com Le Morte D’Arthur revelaram Beardsley ao público quando tinha apenas 20 anos. Depois disso, uma sequência de encontros fortuitos com importantes figuras culturais da época o levou ao coração da vanguarda dos círculos literários e artísticos londrinos na década de 1890.

Espirituoso, talentoso e culto, Beardsley foi rapidamente adotado por um grupo de jovens artistas e escritores que se identificavam como estetas, extremamente sensíveis à arte e à beleza. Entre eles estavam o pintor de retratos William Rothenstein, o ensaísta e caricaturista Max Beerbohm e o crítico e negociante de arte Robert Ross, amigo e ex-amante de Oscar Wilde. A fama de Beardsley cresceu com a publicação de suas ilustrações em Salomé, de Wilde, e seu envolvimento com a popular e elegante revista The Yellow Book. A partir dali, seu grupo de amigos começou a se expandir rapidamente. Porém, com a queda de Oscar Wilde no início de 1895, Beardsley mudou-se para Dieppe e passou pouco tempo na Inglaterra.

O ILUSTRADOR ROUBA A CENA

Foi em 1894 que Beardsley tornou-se editor de arte da The Yellow Book, uma revista que se tornaria a publicação mais icônica da década, com seu design elegante e sofisticado. O amarelo era moderno, urbano, irônico e ousado, lembrando os invólucros amarelos dos populares romances eróticos franceses. O primeiro volume foi um sucesso instantâneo e controverso, colocando arte e literatura em pé de igualdade. Mas foram os desenhos de Beardsley que roubaram a cena e deram à revista sua reputação de vanguarda. Seu estilo arrojado e sua ousada modernidade receberam elogios e desprezo na mesma medida e, a cada nova edição, a notoriedade do ilustrador aumentava. Para muitos, a publicação incorporou o espírito decadente da época e, como bem observou um crítico, "para a maioria, Aubrey Beardsley É a Yellow Book".

No entanto, o sucesso meteórico de Beardsley teve vida curta. Em 1895, Oscar Wilde foi julgado por manter relações sexuais com homens e processado por "grave indecência". Enquanto o escândalo atravessava Londres, a reação se voltou para a famosa revista e seu audacioso editor de arte. Na opinião do público, Beardsley estava vinculado a Wilde por causa de suas ilustrações para Salomé e, para piorar, Wilde foi visto na prisão carregando um livro amarelo (na verdade, um romance francês, não a Yellow Book) e o público erroneamente imaginou uma associação romântica entre o escritor e o artista. Após multidões ultrajadas quebrarem as janelas da editora, John Lane, o editor, sucumbiu à pressão e demitiu Beardsley.

Capa do primeiro número da revista Yellow Book, com ilustração de Beardsley - 1894.

As cartas de Beardsley revelam que ele se sentia atraído por prostitutas, mas pouco se sabe sobre sua sexualidade. No entanto, o artista frequentemente representava a atração pelo mesmo sexo e a fluidez de gênero em suas obras, o que era raro na era vitoriana. Na obra abaixo, Black Coffee, vemos duas mulheres sentadas uma ao lado da outra. A mulher de preto está escondendo as mãos, talvez cobrindo a mão da companheira, que também tem a mão no colo. A mulher de preto tem um chifre de diabo, mais uma dica para os contemporâneos sobre seu comportamento supostamente "pecaminoso". Embora muitas pessoas que viram essa ilustração na época ficassem chocadas com a exibição de uma relação entre pessoas do mesmo sexo, não há nenhum julgamento de valor por parte do artista. Black Coffee é apenas uma das muitas ilustrações de Beardsley que retratam mulheres desafiadoras e livres para agir como bem entendessem.

Aubrey Beardsley - 'Black Coffee' - 1895 - Harvard Museums / Fogg Museum


































TRANSGRESSÃO EM REVISTA 

Demitido da The Yellow Book, Beardsley enfrentou a perda de sua renda e uma atmosfera agora hostil em Londres. Apesar de sua fama internacional, sua situação financeira era precária e ele foi forçado a vender sua casa. Partiu então para Dieppe, o balneário francês preferido dos escritores e artistas ingleses. Lá encontrou Leonard Smithers, um editor empreendedor (e ocasionalmente pornógrafo) que lhe propôs criar uma nova revista para rivalizar com a The Yellow Book.

Com Beardsley como editor de arte e o poeta Arthur Symons a cargo da literatura, The Savoy foi lançada em 1896, inicialmente com periodicidade trimestral. No entanto, após somente duas edições, Smithers imprudentemente decidiu tornar a revista mensal, mas a pressão financeira fez com que The Savoy desaparecesse após apenas um ano. Mesmo assim, com apenas oito números, tornou-se uma das "revistas pequenas " mais significativas e belas do período.

The Savoy foi publicada na Grã-Bretanha, mas o conservadorismo social e artístico estava em ascensão no país após o julgamento de Wilde. Smithers era o único editor que se dispunha a imprimir trabalhos de Wilde ou Beardsley naquele momento. Alguns livreiros, como W.H. Smith, recusaram-se a exibir obras de Beardsley em suas vitrines e W.B. Yeats sustentou que The Savoy havia valentemente declarado uma "guerra contra o público britânico em um momento em que tínhamos todos contra nós".

A propósito, os colegas da The Savoy, como Yeats e Symons, bem como o pintor Charles Conder, foram amigos constantes de Beardsley em seus últimos anos de vida. O rico poeta e escritor franco-russo Marc-André Raffalovich tornou-se um importante apoiador e patrono, mas seu principal amigo nesse período foi o editor Leonard Smithers, tido como um homem cativante, porém sem escrúpulos.

O ROUBO DA MECHA

Beardsley também foi um grande admirador do poeta Alexander Pope (1688-1744), embora Oscar Wilde ridicularizasse seu gosto poético, alegando que "existem duas maneiras de não gostar de poesia: uma maneira é não gostar, e a outra é gostar de Pope". Assim, em 1896, Beardsley pôs-se a ilustrar o poema épico-satírico de Pope O Roubo do Cacho (The Rape of the Lock), de 1712. No título de Pope, a palavra "rape", que atualmente significa "estupro", é usada em seu sentido original de "roubo" ou "sequestro", e não de agressão sexual. O poema zomba de um incidente real durante o qual lord Petre (renomeado "Barão") corta uma mecha do cabelo de Arabella Fermor ("Belinda", no poema) sem a permissão da moça, causando um conflito entre as famílias. Inspirado pelas gravuras francesas em chapa de cobre do século XVIII, as quais admirava e colecionava, Beardsley desenvolveu um novo estilo altamente decorativo. O texto da folha de rosto, em tom arguto e bem-humorado, menciona que Beardsley "bordou" as ilustrações, dada a complexidade da trama de seus desenhos.

Aubrey Beardsley - 'A Caverna de Spleen' (ilustração para o poema 'O Roubo da
Mecha', de A. Pope) - 1896 - Museum of Fine Arts, Boston - EUA

MADEMOISELLE DE MAUPIN

Entre fevereiro e outubro de 1897, Beardsley trabalhou nas ilustrações do romance Mademoiselle de Maupin (1835), de Théophile Gautier, para Leonard Smithers. O herói da história, D'Albert, está à procura da mulher perfeita, mas, em vez disso, acaba irremediavelmente atraído por um rapaz. O objeto de seu desejo é finalmente revelado como Madelaine de Maupin, uma mulher que não se enquadra nas expectativas de gênero da época, sobretudo no vestuário, e é atraída por homens e mulheres. O enredo reflete sobre uma unificação ideal de atributos masculinos e femininos, ideia amplamente discutida nos círculos literários e artísticos da Europa do século XIX.

Em seu prefácio, Gautier promove a "arte pela arte", a doutrina do "movimento estético" que surgiu na Inglaterra no final do século XIX para promover a beleza acima de tudo, inclusive do significado ou da moralidade na arte. O encontro sexual entre D'Albert e a mademoiselle é descrito em termos de perfeição estética, mas a moça abandona o amante logo depois.

Beardsley também fez desenhos em aquarela para criar um novo estilo decorativo mais suave e seu amigo Robert Ross inclusive sugeriu que essa técnica era "menos exigente" no momento em que sua saúde estava em franco declínio. Mas tarde, porém, o artista voltou a adotar uma abordagem mais detalhada, mostrando que estava simplesmente explorando novos modos de expressão.

FASCÍNIO ERÓTICO

Enquanto se recuperava no sul da Inglaterra durante o verão de 1896, Beardsley iniciou suas duas séries de desenhos mais explícitos até então, ambas inspiradas em fontes clássicas. A primeira foi um conjunto de oito desenhos para a antiga comédia grega Lysistrata, de Aristófanes. Na famosa peça satírica, as mulheres atenienses e espartanas acabam com o conflito ao se recusarem a fazer sexo com seus homens em guerra até que a paz fosse restabelecida entre as duas cidades. O outro conjunto de desenhos igualmente escandalosos de Beardsley foi criado para a Sexta Sátira de Juvenal, um ataque misógino à moral e aos hábitos sexuais das mulheres da Roma Antiga.

Esses temas condiziam com o humor irreverente e o fascínio de Beardsley por todos os aspectos da sexualidade - e, talvez, com suas próprias frustrações sexuais. Smithers, que se orgulhava de "publicar o que todos os outros têm medo de tocar", sem dúvida o encorajou. Combinando com o erotismo exuberante dos textos, Beardsley adotou um estilo totalmente linear nesses desenhos, um inovador e ousado direcionamento inspirado em seu conhecimento da pintura de vasos da Grécia Antiga e de gravuras eróticas japonesas.

Muito poucos contemporâneos de Beardsley tiveram acesso a esses desenhos. Sua suposta "indecência" significava que eles não podiam ser publicados ou divulgados da forma usual, sendo disponibilizados por Smithers apenas para um seleto grupo de colecionadores por meio de uma assinatura particular. Em determinado momento, porém, Beardsley parece ter sentido um certo arrependimento por ter criado tais desenhos, talvez motivado por sua crescente fé católica. No leito de morte, escreveu a Smithers implorando para que ele destruísse todos os seus "desenhos obscenos", um pedido que o outro simplesmente ignorou.

Aubrey Beardsley - 'Duas Mulheres Atenienses Aflitas' - 1896 - Victoria and Albert Museum,
Londres

Aubrey Beardsley - 'Messalina e sua Acompanhante' - 1895 - Tate Britain,
Londres

TRAÇO INTERROMPIDO

Após uma viagem a Bruxelas, na primavera de 1896, Beardsley sofreu uma hemorragia pulmonar muito mais grave, da qual nunca se recuperou completamente. Dolorosamente consciente de sua própria finitude, ele passou a se mudar de um lugar para outro em busca do ar "mais saudável" recomendado pelos médicos. Embora o avanço de sua condição fosse implacável, a cada mudança de local surgia nova inspiração. Seus últimos anos são caracterizados por um entusiasmo em assumir novos projetos, mas ele não conseguia conclui-los devido ao cansaço e às más condições de saúde. Enquanto seu foco e energia diminuíam gradualmente, seus últimos trabalhos mostram que o mesmo não acontecia com sua ambição, seu intelecto, sua imaginação e o poder de sua técnica.

Beardsley morreu em Menton, no sul da França, em 16 de março de 1898. A seu lado, estavam a mãe e a irmã Mabel, companheiras constantes ao longo de toda a sua breve vida. Segundo as palavras de seu amigo Robbie Ross, "não é preciso haver tristeza por uma possível não realização. A velhice não é um complemento mais necessário para a realização do gênio do que a morte prematura. Durante seis anos, ele produziu obras de arte que poderia até ter repetido, mas jamais superado."

O FIM DE UMA ERA

A queda de Oscar Wilde foi um golpe do qual o mundo artístico e literário decadente do fin de siècle europeu nunca se recuperou completamente. Mas foi a morte de Beardsley, em 1898, que realmente marcou o fim de uma era. Seu amigo Max Beerbohm percebeu essa atmosfera ao escrever sobre si mesmo: "pertenço à era Beardsley". Os desenhos de Beardsley foram muito imitados quando ele ainda vivia e, após sua morte, muitos jovens ilustradores tentaram ocupar seu lugar. Alguns imitavam seu estilo e outros ainda fizeram falsificações deliberadas de seu trabalho, mas poucos manifestaram sua habilidade como desenhista ou a riqueza de sua prodigiosa imaginação.

Edições dos desenhos de Beardsley publicadas após sua morte divulgaram seu trabalho a um público ainda mais amplo, influenciando artistas não apenas na Grã-Bretanha, mas também no resto da Europa, Rússia e Japão.

BEARDSLEY REVIVE

No início do século 20, a maioria dos contemporâneos de Beardsley foi esquecida e seus trabalhos descartados por não representarem valor no mundo moderno. Porém, a obra de Beardsley continuou a ter relevância para muitos artistas mais jovens e, na década de 1960, a era vitoriana foi "redescoberta". Uma grande exposição de Beardsley em 1966, no Victoria and Albert Museum, gerou uma crescente onda de interesse pela arte do século XIX em geral e especialmente do fin de siècle. O Art Nouveau reconquistou os ingleses. A mostra atraiu um público jovem que descobriu, nos desenhos de Beardsley, ideias que combinavam com seus próprios valores anti-establishment, lembrando que estilos de vida ditos experimentais e "alternativos" passaram a ser valorizados naquela década. Trabalhos de Beardsley começaram a decorar pôsteres, capas de discos e revistas underground e psicodélicas, tendo influenciado também a publicidade convencional, o design comercial e a decoração de interiores. Seus desenhos pareciam estar em toda parte.

As estranhas figuras de cabelos longos em trajes extravagantes, presentes em tantas de suas ilustrações, também tiveram um impacto na moda dos anos 1960. Butiques independentes surgiram para atender à demanda de jovens "liberadas", bem como uma nova moda masculina que rejeitava as convenções. Assim como na "era Beardsley", estilo e imagem tornaram-se novamente a expressão essencial de uma sensibilidade subversiva que caracterizou a contracultura.

Atualmente, em boa parte da arte contemporânea, parece que sobram protestos e subversão, porém a beleza e o refinamento passam longe. Que falta um Beardsley faz.



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