E no meio de tantos devaneios, acabei por me flagrar pensando em
minha relação com as pessoas. Ou a falta dela. Nesses últimos meses, apesar da
distância física e social, tive a oportunidade de reforçar os laços com amigos muito queridos. Alguns bem antigos, outros mais recentes, mas todos pessoas que já deixaram, indelevelmente, marcas positivas em
minha vida. É gente que pode contar comigo e com a qual eu sei que posso
contar também. Gente com a qual gosto de estar, conversar, rir e, por vezes, até chorar, quando a vida não se mostra tão gentil. Pessoas que não falham em sua amizade, coerentes no caráter e
constantes no afeto. Algumas delas são do tipo que faz questão de telefonar no
meu aniversário para bater papo em vez de enviar um cumprimento protocolar no
WhatsApp, daqueles em que a mensagem é substituída por um gif engraçadinho. Nada contra gifs, mas, para quem não lembra, celulares foram criados originalmente para as pessoas
conversarem. E para quem também não lembra o que significa "conversa", vale
refrescar a memória: é uma verbalização que envolve troca de palavras e ideias
entre seres humanos. Implica um emissor, um receptor e uma mensagem transmitida
com o auxílio das cordas vocais. Lembrou? Que bom.
'Duas Jovens Lendo' (1890-1891), de Renoir - óleo s/ tela - 56,5 X 48,2 cm - The Los Angeles County Museum of Art (LACMA), EUA. |
Outros amigos, normalmente os mais jovens ou que conheço há
menos tempo, preferem enviar mensagens pelo WhatsApp. Escrevem palavras
carinhosas cuja sinceridade reconheço, recebo com alegria e faço questão de retribuir.
Porém, mais dia, menos dia, a gente acaba se falando ou se encontrando. Em
tempos de pandemia, por motivos óbvios, esses encontros têm acontecido somente
pelas chamadas de vídeo, mas, de uma forma ou de outra, sempre tenho o prazer de
ouvir suas preciosas e tão necessárias vozes.
'The Stepping Stones' (data indefinida), de Thomas Brooks - óleo s/ tela - 89,0 X 63,5 cm coleção particular. |
E reflexão vai, reflexão vem, deparo-me com uma outra categoria
de pessoas, felizmente rara: as que já foram amigas – ou pelo menos que eu julgava
que fossem – mas que, por razões misteriosas e alheias a meu entendimento,
deixaram de ser. É gente que parou de se comunicar, de retornar ligações
ou mensagens, mesmo após minhas tentativas. Um desses casos ocorreu há muito
tempo, mas, como mencionei anteriormente, nesse período dentro de casa temos
mais tempo para remexer as "gavetinhas" do cérebro. E hoje, olhando em
retrospectiva para o referido caso, percebo que mesmo na época em que
tínhamos amizade, a pessoa em questão já dava sinais sutis de possuir uma psique
meio disfuncional, por assim dizer. Reconheço que talvez esteja afirmando,
eufemisticamente, que ela tivesse um distúrbio de personalidade, mas tive esse insight anos atrás, após um episódio incompreensível envolvendo uma brusca mudança de comportamento em um intervalo de menos de 24
horas. Foi muito triste porque se tratava de uma amizade de longa data, mas não vejo
outra explicação a não ser um possível distúrbio psíquico. Afinal, muitas vezes
não é preciso ser psiquiatra ou psicólogo para detectar problemas em alguém
- basta um mínimo de sensibilidade e experiência de vida. Nesse caso, quando
não podemos ajudar a pessoa (como infelizmente não pude), resta-nos lhe desejar
boa sorte.
Porém, excetuando-se os casos supostamente "patológicos", há
também pessoas que são egoístas, pura e simplesmente. Algumas abrem mão de amizades
de anos sabe-se lá por que, talvez embrutecidas por uma certa mesquinhez de
espírito que mine aquela generosidade, delicadeza e disposição internas essenciais à preservação das raízes e vínculos humanos. E outras, ainda, fechadas em seus
mundos virtuais, são incapazes de estabelecer ou sustentar pontes que as
conectem ao outro e à vida real. Uma vida na qual gente de carne e osso
se encontra, troca experiências, ri junto, debate e por vezes discorda, porém criando, na alegria, na tristeza ou na "braveza", um
reservatório mútuo de afetos que minimiza as agruras da existência. Suspeito,
aliás, que muitas vezes a deficiência emocional desse tipo de gente tenha
origem, entre outras razões, no fato de essas pessoas não terem "aprendido o afeto" na
infância com quem tinha o papel e o dever de lhes ensinar: suas mães e pais. É
fato que crianças que não recebem o devido carinho materno durante o período
que os neurologistas denominam "janela de oportunidade", nos primeiros anos de
vida, têm suas conexões cerebrais fechadas para a compreensão e a expressão do sentimento
de amor saudável, ao mesmo tempo em que, como uma forma inconsciente de
autodefesa, tornam-se por vezes apáticas e reativas, quando não francamente rudes ou violentas, dependendo do meio social onde estão inseridas. E antes que você pense
que eu esteja arriscando um "psicologês" de botequim, já adianto que muitas de
minhas reflexões sobre relações de amizade nesse período de quarentena
receberam um input extra do
psiquiatra Norman Doidge, autor de um excelente livro sobre neurociência que estou
tendo o prazer de reler neste momento. Fato é que, independentemente dos
motivos que levem alguém a não corresponder às nossas iniciativas de preservar,
estabelecer ou retomar laços de amizade, apesar de nossa boa-vontade, só nos
resta duas coisas a fazer: esquecer a pessoa e voltar o rosto para quem faz sentido.
'Un Idylle de la Petite Enfance' (1900), de William-Adolphe Bouguereau - óleo s/ tela - 130 X 102 cm - Denver Art Museum, EUA. |
E por falar em gente que faz sentido, essa quarentena também me
permitiu, graças às redes sociais, resgatar o contato com ótimos amigos que
haviam ficado para trás na minha linha do tempo. Como verdadeiros tesouros perdidos
que as ondas do mar tivessem devolvido à
costa pela correnteza, essas pessoas reapareceram afáveis, gentis, exatamente do jeito como
eram quando as conheci há anos, e ávidas para retomar um contato que nunca
deveria ter sido interrompido. E no que depender de mim, não mais será. Um brinde aos novos, antigos e antigos novos amigos!
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