Um dos vilarejos mais encantadores que visitei é Gordes, que faz parte do Parc Naturel
Régional du Luberon, no departamento provençal do Vaucluse, e foi classificado
pelo governo francês como "um dos mais belos villages da França". Não é difícil descobrir por quê. Com pouco
mais de dois mil habitantes, esse povoado que remonta ao período Neolítico está encravado
no alto de um rochedo e é considerado uma joia rara com suas típicas casas de
pedra, ruelas tortuosas de paralelepípedos e uma atmosfera que convida a gente
a ir ficando. A vista lá de cima é espetacular e nossos olhos se perdem nos horizontes da Provence, com seus vinhedos, oliveiras e montanhas rochosas. Gordes já foi ocupada por tribos celtas e romanas, mas foi no século
XI que começou a crescer em torno de seu castelo-fortaleza. Bem mais tarde, a partir
da década de 1950, foi descoberta por vários pintores e artistas que se
sensibilizaram com a beleza de sua paisagem, sua luz, suas ruínas e seu
isolamento. André Lhote foi o primeiro, trazendo em sua esteira Marc Chagall e
muitos outros que lá se instalaram, enfeitiçados pela atmosfera insólita do lugar.
Estacionei o carro na própria estrada, em lugares demarcados gratuitos, e fui caminhando até a cidade. O jogo de sedução começou ali.
A estrada onde estacionei o carro já começou a piscar para mim! - Foto: Simone Catto |
Esta é Gordes, muito prazer! - Foto: Simone Catto |
A vista se insinua nas frestas medievais - Foto: Simone Catto |
Minha primeira parada foi na Abadia Notre-Dame de Sénanque, indubitavelmente a principal atração
de Gordes. O monastério começou a ser construído em 1148 pela ordem dos monges
cistercienses e levou cerca de sessenta anos para ser concluído, atingindo seu auge
entre os séculos XIII e XIV, quando os monges possuíam quatro moinhos, sete
granjas e várias propriedades agrícolas na Provence. Depois foi parcialmente danificado nas
guerras religiosas de 1644 e vendido ao Estado durante a Revolução Francesa, em
1791, até ser recomprado e restaurado novamente pela ordem cisterciense em 1854.
Na época de minha visita, mês de junho, as lavandas do jardim da abadia normalmente já estão floridas, mas, este ano, a floração retardou devido às intensas chuvas na região. Mesmo assim, a paisagem é linda.
Abadia Notre-Dame de Sénanque - Foto: Simone Catto |
Para quem não sabe, a ordem cisterciense é uma das mais rígidas
do catolicismo e conhecida pelo voto de silêncio imposto a seus monges. Em
Sénanque, eles só têm autorização para falar em determinados horários e na "Salle du Châpitre" (Sala do Capítulo), onde se reúnem para ouvir o abade
líder, tomar decisões referentes à comunidade e ordenar novos monges. Vida nada
fácil. Tudo bem que não sou do tipo tagarela - muito pelo contrário - e adoro
ficar sozinha, mas também gosto de conversar com as pessoas, embora reconheça
que, para determinadas criaturas, fazer voto de silêncio seria uma bênção para
a humanidade (rs).
Sala do Capítulo - Foto: Randojp |
Mas vamos lá. Um lugar onde eu faria voto de silêncio fácil, de
preferência com um livro nas mãos, é o claustro interno do monastério, que tem
um jardim muito bonito e bem cuidado pelos próprios monges. Destinado à
meditação e à leitura, o claustro liga todas as dependências da construção e é
pura paz. Já à entrada da propriedade, aliás, somos instruídos a respeitar o
ambiente e a nos conduzirmos da forma mais silenciosa possível.
O claustro, com suas lindas rosas e seu jardim super bem cuidado - Foto: Simone Catto |
Daqui vemos o sino da abadia - Foto: Simone Catto |
E por falar em silêncio... o antigo dormitório dos monges mede
quase trinta metros de comprimento e nove de largura e podia acolher cerca de
30 monges que dormiam em colchões, vestidos da cabeça aos pés. Atualmente, cada
monge dorme em sua própria cela. E devem ter ficado tão traumatizados com a
falta de privacidade de outrora, já que até o "pillow talk" devia ser
proibido (rs), que o antigo dormitório é o único cômodo da abadia não mais utilizado por
eles – é apenas mais um espaço visitado pelos turistas.
O antigo dormitório dos monges, atualmente apenas local de visitas - Foto: Randojp |
E não será por falta de prece que esses monges cistercienses não
irão para o céu: eles rezam sete vezes ao dia, começando às duas da manhã até a
noite. Já estão pagando os pecados das próximas encarnações para garantir um
lugar à esquerda do Pai, imagino (rs). Os monges também trabalham bastante,
produzindo mel, essências de lavanda e licores, além de cuidarem da limpeza e da
manutenção das dependências da abadia, todas abertas a visitação. As liturgias
também são franqueadas ao público. Não assisti a nenhuma, mas deve ser uma
experiência interessante. Os horários das missas e demais informações estão no
site https://www.senanque.fr,
que também tem versão em inglês.
Como seria de se esperar, a abadia também tem uma loja que comercializa
os itens produzidos internamente, entre outros. Mas apesar da renda gerada
pelas vendas dos produtos e pela bilheteria, está solicitando doações para sua
manutenção e restauro. Uma placa bem grande, antes da entrada principal, detalha
as obras que precisam ser realizadas e a quantia necessária para tanto, como
mostra a imagem abaixo. Alguém se habilita?
A quantia requerida para a reforma da abadia está no alto, à direita. Será que falta muito? - Foto: Simone Catto |
A parada para o almoço foi no 'La Bastide de Pierres', um
agradável restaurante na praça do castelo, com vista para o dito cujo, no
centrinho da cidade. Consegui uma mesa externa, na varanda elevada de onde dava
para observar o movimento lá fora. O garçom que me atendeu era um mocinho sorridente e gentil e o prato que pedi, uma massa com salmão bem honesta, estava no ponto certo. Vale
reforçar que os peixes por lá são sempre fresquinhos e quaisquer pratos à base
deles são uma boa pedida devido à proximidade da região com a cidade portuária
de Marselha. Para acompanhar? Vinho rosé, claro! Impossível dispensar esse
delicioso clássico da Provence, sobretudo quando combina tão bem com o prato
escolhido. Santé!
O restaurante é simples, porém arejado, com uma vista agradável e, principalmente, com comida OK. Foto: Simone Catto |
Após o almoço, bastou andar alguns metros para chegar ao Castelo de Gordes. Mencionado em registros históricos pela primeira vez em 1031, o
castelo sofreu várias ampliações e reformas ao longo dos séculos, comandadas
pela poderosa família d'Agoult Simiane, que reinou soberana na região por cerca
de 700 anos. No século XIV, época de muitas guerras, funcionou como fortaleza e
se integrava às muralhas que circundavam a cidade.
Vista lateral do Castelo de Gordes - Foto: Simone Catto |
Por estar em local de difícil acesso, o castelo nunca foi
habitado por seus senhores, adquirindo outras funções depois de ser fortaleza
medieval. Nos séculos XVII e XVIII serviu sucessivamente de prisão, alojamento
para soldados e depósito para a cidade. Em 1811, passou para a Comuna e, ao
longo do século XIX, sediou a justiça de paz, uma hospedaria, uma escola de
meninos e uma infinidade de outras instituições. Só faltou mesmo sediar um bordel! (rs) Depois o castelo se tornou museu e, atualmente, abriga exposições
de arte temporárias.
Tudo em seu interior é muito austero, já que os ambientes não contêm
móveis. O único detalhe decorativo que chamou minha atenção foi a monumental
lareira do antigo salão de jantar. Com 7,20 metros de comprimento e 4,50 m de
altura, é profusamente ornamentada e considerada uma das mais belas lareiras
esculpidas na França renascentista. Sua coifa possui doze nichos vazios,
certamente simbolizando os doze apóstolos, mas o brasão da família Simiane, ao
centro, foi destruído durante a Revolução Francesa. Só me pergunto se nos demais
aposentos as pessoas não morriam de frio!
A lareira renascentista do castelo, fartamente esculpida - Foto: Simone Catto |
Se você for a Gordes, além de visitar a abadia, o castelo e
almoçar sem pressa, vale a pena separar pelo menos uma horinha para explorar as
ruelas sinuosas e os bequinhos do povoado. Não espere hordas de turistas
enlouquecidos e nem uma sucessão de restaurantes e cafés, pois o perfil lá é
outro, mais histórico e contemplativo. E é bom que seja assim, para que o
caráter da cidade não se perca. À la prochaine!
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