sexta-feira, 19 de julho de 2019

Gordes, o refúgio medieval que abraça a Provence do alto.

No século XIX, o escritor Charles Baudelaire (1821-1867) exaltou a figura do flâneur, aquele indivíduo todo pimpão e satisfeito da vida que caminhava despreocupadamente pelas ruas de Paris a fim de vivenciá-la, observar as pessoas, sentir sua atmosfera. Mesmo separada há anos e a milhas de distância do flâneur de Baudelaire, devo dizer que me identifico com a figura, pois gosto de caminhar por locais onde as paisagens física e humana sejam inspiradoras. Em minha mais recente incursão como flâneuse, por alguns vilarejos do sul da França, percorri ruínas romanas e vielas medievais, descobri residências graciosas e cantinhos encantados. Naturalmente, grande parte do charme desses villages está em sua perfeita sintonia com a natureza, nos permitindo sorver vida das árvores, das montanhas, das casas de pedra, das vistas que se perdem no horizonte e até da poeira dos anos que se acumularam por ali.

Um dos vilarejos mais encantadores que visitei é Gordes, que faz parte do Parc Naturel Régional du Luberon, no departamento provençal do Vaucluse, e foi classificado pelo governo francês como "um dos mais belos villages da França". Não é difícil descobrir por quê. Com pouco mais de dois mil habitantes, esse povoado que remonta ao período Neolítico está encravado no alto de um rochedo e é considerado uma joia rara com suas típicas casas de pedra, ruelas tortuosas de paralelepípedos e uma atmosfera que convida a gente a ir ficando. A vista lá de cima é espetacular e nossos olhos se perdem nos horizontes da Provence, com seus vinhedos, oliveiras e montanhas rochosas. Gordes já foi ocupada por tribos celtas e romanas, mas foi no século XI que começou a crescer em torno de seu castelo-fortaleza. Bem mais tarde, a partir da década de 1950, foi descoberta por vários pintores e artistas que se sensibilizaram com a beleza de sua paisagem, sua luz, suas ruínas e seu isolamento. André Lhote foi o primeiro, trazendo em sua esteira Marc Chagall e muitos outros que lá se instalaram, enfeitiçados pela atmosfera insólita do lugar.

Estacionei o carro na própria estrada, em lugares demarcados gratuitos, e fui caminhando até a cidade. O jogo de sedução começou ali.

A estrada onde estacionei o carro já começou a piscar para mim! - Foto: Simone Catto

Esta é Gordes, muito prazer! - Foto: Simone Catto

A vista se insinua nas frestas medievais - Foto: Simone Catto

Minha primeira parada foi na Abadia Notre-Dame de Sénanque, indubitavelmente a principal atração de Gordes. O monastério começou a ser construído em 1148 pela ordem dos monges cistercienses e levou cerca de sessenta anos para ser concluído, atingindo seu auge entre os séculos XIII e XIV, quando os monges possuíam quatro moinhos, sete granjas e várias propriedades agrícolas na Provence. Depois foi parcialmente danificado nas guerras religiosas de 1644 e vendido ao Estado durante a Revolução Francesa, em 1791, até ser recomprado e restaurado novamente pela ordem cisterciense em 1854. 

Na época de minha visita, mês de junho, as lavandas do jardim da abadia normalmente já estão floridas, mas, este ano, a floração retardou devido às intensas chuvas na região. Mesmo assim, a paisagem é linda.

Abadia Notre-Dame de Sénanque - Foto: Simone Catto

Para quem não sabe, a ordem  cisterciense é uma das mais rígidas do catolicismo e conhecida pelo voto de silêncio imposto a seus monges. Em Sénanque, eles só têm autorização para falar em determinados horários e na "Salle du Châpitre" (Sala do Capítulo), onde se reúnem para ouvir o abade líder, tomar decisões referentes à comunidade e ordenar novos monges. Vida nada fácil. Tudo bem que não sou do tipo tagarela - muito pelo contrário - e adoro ficar sozinha, mas também gosto de conversar com as pessoas, embora reconheça que, para determinadas criaturas, fazer voto de silêncio seria uma bênção para a humanidade (rs).

Sala do Capítulo - Foto: Randojp

Mas vamos lá. Um lugar onde eu faria voto de silêncio fácil, de preferência com um livro nas mãos, é o claustro interno do monastério, que tem um jardim muito bonito e bem cuidado pelos próprios monges. Destinado à meditação e à leitura, o claustro liga todas as dependências da construção e é pura paz. Já à entrada da propriedade, aliás, somos instruídos a respeitar o ambiente e a nos conduzirmos da forma mais silenciosa possível.

O claustro, com suas lindas rosas e seu jardim super bem cuidado - Foto: Simone Catto

Daqui vemos o sino da abadia - Foto: Simone Catto

E por falar em silêncio... o antigo dormitório dos monges mede quase trinta metros de comprimento e nove de largura e podia acolher cerca de 30 monges que dormiam em colchões, vestidos da cabeça aos pés. Atualmente, cada monge dorme em sua própria cela. E devem ter ficado tão traumatizados com a falta de privacidade de outrora, já que até o "pillow talk" devia ser proibido (rs), que o antigo dormitório é o único cômodo da abadia não mais utilizado por eles – é apenas mais um espaço visitado pelos turistas.

O antigo dormitório dos monges, atualmente apenas local de visitas - Foto: Randojp

E não será por falta de prece que esses monges cistercienses não irão para o céu: eles rezam sete vezes ao dia, começando às duas da manhã até a noite. Já estão pagando os pecados das próximas encarnações para garantir um lugar à esquerda do Pai, imagino (rs). Os monges também trabalham bastante, produzindo mel, essências de lavanda e licores, além de cuidarem da limpeza e da manutenção das dependências da abadia, todas abertas a visitação. As liturgias também são franqueadas ao público. Não assisti a nenhuma, mas deve ser uma experiência interessante. Os horários das missas e demais informações estão no site https://www.senanque.fr, que também tem versão em inglês.

Como seria de se esperar, a abadia também tem uma loja que comercializa os itens produzidos internamente, entre outros. Mas apesar da renda gerada pelas vendas dos produtos e pela bilheteria, está solicitando doações para sua manutenção e restauro. Uma placa bem grande, antes da entrada principal, detalha as obras que precisam ser realizadas e a quantia necessária para tanto, como mostra a imagem abaixo. Alguém se habilita?

A quantia requerida para a reforma da abadia está no alto, à direita. Será que falta muito? - Foto: Simone Catto 

A parada para o almoço foi no 'La Bastide de Pierres', um agradável restaurante na praça do castelo, com vista para o dito cujo, no centrinho da cidade. Consegui uma mesa externa, na varanda elevada de onde dava para observar o movimento lá fora. O garçom que me atendeu era um mocinho sorridente e gentil e o prato que pedi, uma massa com salmão bem honesta, estava no ponto certo. Vale reforçar que os peixes por lá são sempre fresquinhos e quaisquer pratos à base deles são uma boa pedida devido à proximidade da região com a cidade portuária de Marselha. Para acompanhar? Vinho rosé, claro! Impossível dispensar esse delicioso clássico da Provence, sobretudo quando combina tão bem com o prato escolhido. Santé!

O restaurante é simples, porém arejado, com uma vista agradável e, principalmente, com comida OK.
Foto: Simone Catto

Após o almoço, bastou andar alguns metros para chegar ao Castelo de Gordes. Mencionado em registros históricos pela primeira vez em 1031, o castelo sofreu várias ampliações e reformas ao longo dos séculos, comandadas pela poderosa família d'Agoult Simiane, que reinou soberana na região por cerca de 700 anos. No século XIV, época de muitas guerras, funcionou como fortaleza e se integrava às muralhas que circundavam a cidade.

Vista lateral do Castelo de Gordes - Foto: Simone Catto

Por estar em local de difícil acesso, o castelo nunca foi habitado por seus senhores, adquirindo outras funções depois de ser fortaleza medieval. Nos séculos XVII e XVIII serviu sucessivamente de prisão, alojamento para soldados e depósito para a cidade. Em 1811, passou para a Comuna e, ao longo do século XIX, sediou a justiça de paz, uma hospedaria, uma escola de meninos e uma infinidade de outras instituições. Só faltou mesmo sediar um bordel! (rs) Depois o castelo se tornou museu e, atualmente, abriga exposições de arte temporárias.

Tudo em seu interior é muito austero, já que os ambientes não contêm móveis. O único detalhe decorativo que chamou minha atenção foi a monumental lareira do antigo salão de jantar. Com 7,20 metros de comprimento e 4,50 m de altura, é profusamente ornamentada e considerada uma das mais belas lareiras esculpidas na França renascentista. Sua coifa possui doze nichos vazios, certamente simbolizando os doze apóstolos, mas o brasão da família Simiane, ao centro, foi destruído durante a Revolução Francesa. Só me pergunto se nos demais aposentos as pessoas não morriam de frio!

A lareira renascentista do castelo, fartamente esculpida - Foto: Simone Catto

Se você for a Gordes, além de visitar a abadia, o castelo e almoçar sem pressa, vale a pena separar pelo menos uma horinha para explorar as ruelas sinuosas e os bequinhos do povoado. Não espere hordas de turistas enlouquecidos e nem uma sucessão de restaurantes e cafés, pois o perfil lá é outro, mais histórico e contemplativo. E é bom que seja assim, para que o caráter da cidade não se perca. À la prochaine!

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