Como todas as regiões da França, a Provence é composta de vários territórios menores denominados
departamentos – nesse caso, seis: os Alpes
Maritimes, que inclui as badaladas cidades de Nice e Cannes; o Var; os Alpes de Haute Provence; Hautes Alpes; Bouches du Rhône, onde
estão Marselha, Aix-en-Provence e Arles; e, finalmente, o departamento de Vaucluse, que abrange boa parte das
cidades que percorri, como Avignon, Gordes, Lourmarin e muitas outras inseridas
no belo e imenso território do Parque Naturel Régional du Luberon. A título de
curiosidade, o nome "'Vaucluse" tem origem geográfica do latim "Vallis Clausa" ("Vale Fechado"), que em francês é "Vallée Close", até chegar à corruptela "Vaucluse", voilà!
Vamos começar nossa jornada, portanto, por um dos villages que mais me encantaram e que se
destaca no departamento do Vaucluse pela beleza e exuberância de sua deslumbrante
paisagem natural: Fontaine-de-Vaucluse. Muito
desse fascínio deve-se à impressionante nascente do rio Sorgue, aos pés de um penhasco de 230 m de altura, formando uma
fonte gigantesca considerada a mais importante da França e a quinta do mundo, com
um fluxo anual de água de 630 milhões de metros cúbicos. Para início de
conversa, as águas verde-esmeralda do rio são absolutamente limpas e
cristalinas, permitindo que a gente enxergue as formações calcárias ao fundo e
os peixinhos nadando, felizes da vida. Além disso, o lugarejo está encravado em
um vale pontilhado de cavernas emoldurando o rio com suas
margens verdejantes, o que realça ainda mais esse cenário de conto de fadas.
O rio Sorgue, tão cristalino que dá para enxergar a vegetação ao fundo! - Foto: Selma |
Na hora de almoçar é difícil escolher o restaurante mais agradável: há vários às margens do rio Sorgue, um mais delicioso que o outro! - Foto: Selma |
Nem é preciso dizer que o centrinho de Fontaine-de-Vaucluse é um
charme, tranquilo, com poucas pessoas circulando - pelo menos foi assim no mês de junho,
quando lá estive. Tem alguns restaurantes, vista para o rio e uma
deliciosa atmosfera bucólica. Um lugar para respirar, contemplar e querer
ficar. Foi exatamente o que fiz.
A praça central do lugarejo é uma graça, parece que o tempo parou... e parou mesmo! - Foto: Selma |
Não foi nesse restaurante que almocei, mas ele tem uma atmosfera deliciosa! - Foto: Selma |
Ao fundo, dá para visualizar vários outros restaurantes enfileirados - foi um deles que escolhi para o almoço. Foto: Simone Catto |
Casas de pedra são comuns por lá. Só fico imaginando o frio no inverno, não dá para viver sem calefação! Foto: Simone Catto |
Numa pracinha, ainda no Centro, fica a igreja medieval
Notre-Dame de Saint Véran. De estilo românico, ela foi construída no século XI sobre um local
supostamente sagrado, ainda mais antigo, que abrigava túmulos e relíquias santas.
Mas quem foi Saint Véran, afinal de contas? Sabemos que no século VI ele foi bispo em Cavaillon, um village próximo, e que se sentiu imbuído da missão de transformar o culto pagão em uma
autêntica adoração da Virgem. Reza a lenda que, guiado pela graça
divina, o bispo teria livrado a região de um estranho e terrível monstro chamado
Coloubre, meio dragão, meio serpente, que vivia numa gruta atrás do vilarejo de
Fontaine-de-Vaucluse, no caminho da fonte. (Cá entre nós, ainda bem que àquela época o Brasil ainda
não havia sido descoberto, caso contrário seria mais um monstro a se esconder
por aqui). Como toda edificação românica, a igreja é simples e austera, mas o
mais fascinante dessa história é imaginar quantas almas pisaram naquele chão de
pedra antes de mim, através dos séculos, para rezar, assistir a missas ou mesmo
admirar as relíquias. Foi lá que acendi minha primeira vela na Provence.
Entrada da igreja de Saint Véran, modesta e austera. Note as janelas em tom lilás, típicas da região - Foto: Simone Catto |
Vista lateral da igreja de Saint Véran - Foto: Simone Catto |
Interior da igreja de Saint Véran, com suas paredes sólidas e maciças e janelas minúsculas, típicas dos primeiros séculos da Idade Média - Foto: Simone Catto |
Bem no centro do lugarejo, também, fica o museu dos santons, dedicado a uma adorável tradição provençal: a confecção de santons, figurinhas coloridas esculpidas
em argila que representam cenas da natividade para adornar os presépios. Sua
origem tem uma história interessante que remonta à Revolução Francesa, em 14 de
julho de 1789. Na ocasião, as igrejas tornaram-se propriedade do Estado, mas, pouco
depois, em 1793, o próprio Estado resolveu fechá-las porque o poder da
influência dos clérigos sobre a população poderia dificultar a implementação da
nova política. Ocorre que os franceses eram muito religiosos e, como não podiam
mais ir à igreja admirar os presépios na época de Natal, resolveram fabricá-los
em casa mesmo, às escondidas, porque era proibido. E foi na Provence que essa
prática começou. As pessoas criavam as figurinhas bem pequenas para poderem
escondê-las com facilidade e não correrem o risco de acabar na guilhotina. Para
isso usavam o material que tinham à mão, como pedaços de pão ou papier maché. Esses pequenos
personagens, como José, Maria e o Menino Jesus, eram chamados de "santons", que
significa "santinhos" ou "santounen", em provençal. Um pouco mais tarde, em
1798, um marselhês chamado Jean Louis Lagnel descobriu que podia fabricar os personagens em argila e assim nasceu a profissão de "santonnier", como são
chamados os fabricantes de santons. A
partir dali, o hábito de montar presépios em casa, que as crianças tanto
adoram, se disseminou entre cristãos do mundo inteiro. Mas tudo começou bem ali,
na bela e pitoresca Provence.
Entrada do Museu dos Santons - Foto: Simone Catto |
A palavra "calade" significa "via", em provençal - Foto: Simone Catto |
Grandes artistas moraram e se inspiraram em Fontaine-de-Vaucluse,
como os poetas provençais Frédéric Mistral (1830-1914) e René Char (1907-1988).
Contudo, o mais célebre habitante desse lugar de sonho foi indiscutivelmente um
outro poeta: o italiano Francesco
Petrarca (1304-1374), famoso pelos cânticos dedicados a sua amada Laura de
Noves, e que teria se mudado para Fontaine-de-Vaucluse aos nove anos, na
companhia do pai. Séculos depois, o poeta ganhou um museu-biblioteca em sua
homenagem na cidade que o arrebatou.
"Felizes os olhos que a viram viver" - frase de Petrarca se referindo a Laura, em uma das paredes do museu em homenagem ao poeta. Foto: Simone Catto |
Erigida em 1927 à margem esquerda do rio
Sorgue, no local que Petrarca supostamente teria habitado, a casa que abriga o museu
exibe uma iconografia de desenhos e gravuras sobre sua vida, a musa Laura, a
cidade de Avignon - onde supostamente a teria conhecido numa igreja - e sobre a própria Fontaine-de-Vaucluse, bem como uma coleção de
antigas edições de obras do poeta e de seus seguidores. Fui recepcionada por uma atendente jovem e
gentil e me flagrei imaginando a rotina tranquila,
livre de estresse, que ela deveria levar por lá. Afinal, quem vive num lugarejo
desses certamente tem outro ritmo de vida, outros valores. Caso contrário, não permaneceria
ali.
A entrada do museu-biblioteca dedicado ao poeta humanista italiano, no local onde ele supostamente teria morado. Foto: Selma |
À entrada do museu, os visitantes são recebidos com uma bela frase do poeta: "Venha apenas com teu coração". Foto: Simone Catto |
A minúscula biblioteca especializada do museu se resume a uma
aconchegante salinha aberta a pesquisadores mediante agendamento de horário.
Deve ser uma delícia estudar nessa biblioteca! - Foto: Simone Catto |
Contudo, devo dizer que foram os magníficos jardins em torno da
casa que mais fizeram meus olhos brilhar. O rio Sorgue torna o cenário
realmente idílico, digno do amor sublime que o poeta dedicava a sua querida
Laura. É um prazer caminhar por lá.
O acesso ao jardim, saindo do museu, já impressiona pela beleza. Os ciprestes são onipresentes nas paisagens da Provence - Foto: Simone Catto |
Vista do magnífico jardim, com a entrada do museu ao fundo, à direita, e o rio Sorgue em primeiro plano. Foto: Selma |
Será Laura? Alice no País das Maravilhas? Não, apenas uma turista embasbacada nos jardins do poeta - Foto: Selma |
Mais uma linda panorâmica dos jardins que ladeiam o 'Musée François Pétrarque' - Foto: Simone Catto |
A cada canto de Fontaine-de-Vaucluse há homenagens ao poeta e sua amada - Foto: Simone Catto |
Petrarca foi amigo de um certo Philippe de Cabassole, bispo de
Cavaillon que residiu em um castelo cujas ruínas dá para avistar lá no alto,
logo que chegamos à cidade. Dizem que o poeta tinha o hábito de visitar o
amigo no castelo construído no século XII e empoleirado no grande pico rochoso que
domina Fontaine-de-Vaucluse. Não privei da intimidade do bispo, já que alguns
séculos nos separavam, mas também não poderia deixar de lhe fazer uma visitinha de
cortesia – ou ao que sobrou de seu castelo.
Tirei essa foto enquanto subia a colina rumo às ruínas do castelo do bispo - Foto: Simone Catto |
Outro ângulo das ruínas do castelo do bispo, ao lado de uma das montanhas arroxeadas que dominam a paisagem da Provence - Foto: Simone Catto |
Só sei que não é difícil perceber por que essa cidadezinha hipnotizou
tantos escritores e artistas que tiveram o privilégio de passar por ela,
incluindo muitos que nem mencionei aqui. Eu também me apaixonei, o que dá para
perceber pela quantidade de fotos. Só não publiquei mais senão o post não teria fim, tendo de me conformar em compartilhá-las com alguns amigos. Espero, pelo menos, ter conseguido transmitir um tiquinho da
atmosfera mágica desse lugar cujo encanto permanece imutável no tempo, no espaço
e no imaginário de quem souber apreciar essa beleza toda.
Nenhum comentário:
Postar um comentário