terça-feira, 9 de julho de 2019

Fontaine-de-Vaucluse, o sonho provençal que não acabou.

Sempre fico admirada como tantos países europeus, geograficamente pequenos, podem concentrar uma quantidade tão grande de riquezas históricas e arqueológicas. É evidente que isso se explica pela idade desses territórios, pela voracidade colonialista e, naturalmente, também pela preocupação de seus povos em preservar o patrimônio cultural. Arrisco dizer que a França é um dos países do mundo que mais preservam suas riquezas, o que pude constatar novamente em uma viagem por algumas áreas da Provence Alpes Côte d'Azur, no sul do país, também conhecida como PACA ou, simplesmente, Provence.

Como todas as regiões da França, a Provence é composta de vários territórios menores denominados departamentos – nesse caso, seis: os Alpes Maritimes, que inclui as badaladas cidades de Nice e Cannes; o Var; os Alpes de Haute Provence; Hautes Alpes; Bouches du Rhône, onde estão Marselha, Aix-en-Provence e Arles; e, finalmente, o departamento de Vaucluse, que abrange boa parte das cidades que percorri, como Avignon, Gordes, Lourmarin e muitas outras inseridas no belo e imenso território do Parque Naturel Régional du Luberon. A título de curiosidade, o nome "'Vaucluse" tem origem geográfica do latim "Vallis Clausa" ("Vale Fechado"), que em francês é "Vallée Close", até chegar à corruptela "Vaucluse", voilà!

Vamos começar nossa jornada, portanto, por um dos villages que mais me encantaram e que se destaca no departamento do Vaucluse pela beleza e exuberância de sua deslumbrante paisagem natural: Fontaine-de-Vaucluse. Muito desse fascínio deve-se à impressionante nascente do rio Sorgue, aos pés de um penhasco de 230 m de altura, formando uma fonte gigantesca considerada a mais importante da França e a quinta do mundo, com um fluxo anual de água de 630 milhões de metros cúbicos. Para início de conversa, as águas verde-esmeralda do rio são absolutamente limpas e cristalinas, permitindo que a gente enxergue as formações calcárias ao fundo e os peixinhos nadando, felizes da vida. Além disso, o lugarejo está encravado em um vale pontilhado de cavernas emoldurando o rio com suas margens verdejantes, o que realça ainda mais esse cenário de conto de fadas.

Já ao estacionar o carro dava para ter uma prévia da paisagem que me aguardava, com as montanhas calcárias, o céu azul
e casas com janelas em um tom entre o azul e o lilás, típicas da Provence - Foto: Simone Catto

O rio Sorgue, tão cristalino que dá para enxergar a vegetação ao fundo! - Foto: Selma

Na hora de almoçar é difícil escolher o restaurante mais agradável: há vários às margens do rio Sorgue, um mais delicioso 
que o outro! - Foto: Selma

Nem é preciso dizer que o centrinho de Fontaine-de-Vaucluse é um charme, tranquilo, com poucas pessoas circulando - pelo menos foi assim no mês de junho, quando lá estive. Tem alguns restaurantes, vista para o rio e uma deliciosa atmosfera bucólica. Um lugar para respirar, contemplar e querer ficar. Foi exatamente o que fiz.

A praça central do lugarejo é uma graça, parece que o tempo parou... e parou mesmo! - Foto: Selma

Não foi nesse restaurante que almocei, mas ele tem uma atmosfera deliciosa! - Foto: Selma

Ao fundo, dá para visualizar vários outros restaurantes enfileirados - foi um deles que escolhi para o almoço.
Foto: Simone Catto

Casas de pedra são comuns por lá. Só fico imaginando o frio no inverno, não dá para viver sem calefação!
Foto: Simone Catto

Numa pracinha, ainda no Centro, fica a igreja medieval Notre-Dame de Saint Véran. De estilo românico, ela foi construída no século XI sobre um local supostamente sagrado, ainda mais antigo, que abrigava túmulos e relíquias santas. Mas quem foi Saint Véran, afinal de contas? Sabemos que no século VI ele foi bispo em Cavaillon, um village próximo, e que se sentiu imbuído da missão de transformar o culto pagão em uma autêntica adoração da Virgem. Reza a lenda que, guiado pela graça divina, o bispo teria livrado a região de um estranho e terrível monstro chamado Coloubre, meio dragão, meio serpente, que vivia numa gruta atrás do vilarejo de Fontaine-de-Vaucluse, no caminho da fonte. (Cá entre nós, ainda bem que àquela época o Brasil ainda não havia sido descoberto, caso contrário seria mais um monstro a se esconder por aqui). Como toda edificação românica, a igreja é simples e austera, mas o mais fascinante dessa história é imaginar quantas almas pisaram naquele chão de pedra antes de mim, através dos séculos, para rezar, assistir a missas ou mesmo admirar as relíquias. Foi lá que acendi minha primeira vela na Provence.

Entrada da igreja de Saint Véran, modesta e austera. Note as janelas em tom lilás, típicas da região - Foto: Simone Catto

Vista lateral da igreja de Saint Véran - Foto: Simone Catto

Interior da igreja de Saint Véran, com suas paredes sólidas e maciças e janelas minúsculas, típicas dos
primeiros séculos da Idade Média - Foto: Simone Catto

Bem no centro do lugarejo, também, fica o museu dos santons, dedicado a uma adorável tradição provençal: a confecção de santons, figurinhas coloridas esculpidas em argila que representam cenas da natividade para adornar os presépios. Sua origem tem uma história interessante que remonta à Revolução Francesa, em 14 de julho de 1789. Na ocasião, as igrejas tornaram-se propriedade do Estado, mas, pouco depois, em 1793, o próprio Estado resolveu fechá-las porque o poder da influência dos clérigos sobre a população poderia dificultar a implementação da nova política. Ocorre que os franceses eram muito religiosos e, como não podiam mais ir à igreja admirar os presépios na época de Natal, resolveram fabricá-los em casa mesmo, às escondidas, porque era proibido. E foi na Provence que essa prática começou. As pessoas criavam as figurinhas bem pequenas para poderem escondê-las com facilidade e não correrem o risco de acabar na guilhotina. Para isso usavam o material que tinham à mão, como pedaços de pão ou papier maché. Esses pequenos personagens, como José, Maria e o Menino Jesus, eram chamados de "santons", que significa "santinhos" ou "santounen", em provençal. Um pouco mais tarde, em 1798, um marselhês chamado Jean Louis Lagnel descobriu que podia fabricar os personagens em argila e assim nasceu a profissão de "santonnier", como são chamados os fabricantes de santons. A partir dali, o hábito de montar presépios em casa, que as crianças tanto adoram, se disseminou entre cristãos do mundo inteiro. Mas tudo começou bem ali, na bela e pitoresca Provence.

Entrada do Museu dos Santons - Foto: Simone Catto

A palavra "calade" significa "via", em provençal - Foto: Simone Catto
Grandes artistas moraram e se inspiraram em Fontaine-de-Vaucluse, como os poetas provençais Frédéric Mistral (1830-1914) e René Char (1907-1988). Contudo, o mais célebre habitante desse lugar de sonho foi indiscutivelmente um outro poeta: o italiano Francesco Petrarca (1304-1374), famoso pelos cânticos dedicados a sua amada Laura de Noves, e que teria se mudado para Fontaine-de-Vaucluse aos nove anos, na companhia do pai. Séculos depois, o poeta ganhou um museu-biblioteca em sua homenagem na cidade que o arrebatou. 

"Felizes os olhos que a viram viver" - frase de Petrarca se referindo a
Laura, em uma das paredes do museu em homenagem ao poeta.
Foto: Simone Catto
Erigida em 1927 à margem esquerda do rio Sorgue, no local que Petrarca supostamente teria habitado, a casa que abriga o museu exibe uma iconografia de desenhos e gravuras sobre sua vida, a musa Laura, a cidade de Avignon - onde supostamente a teria conhecido numa igreja - e sobre a própria Fontaine-de-Vaucluse, bem como uma coleção de antigas edições de obras do poeta e de seus seguidores. Fui recepcionada por uma atendente jovem e gentil e me flagrei imaginando a rotina tranquila, livre de estresse, que ela deveria levar por lá. Afinal, quem vive num lugarejo desses certamente tem outro ritmo de vida, outros valores. Caso contrário, não permaneceria ali.

A entrada do museu-biblioteca dedicado ao poeta humanista italiano, no local onde ele supostamente teria morado.
 Foto: Selma

À entrada do museu, os visitantes são recebidos com uma 
bela frase do poeta: "Venha apenas com teu coração".
Foto: Simone Catto

A minúscula biblioteca especializada do museu se resume a uma aconchegante salinha aberta a pesquisadores mediante agendamento de horário.

Deve ser uma delícia estudar nessa biblioteca! - Foto: Simone Catto

Contudo, devo dizer que foram os magníficos jardins em torno da casa que mais fizeram meus olhos brilhar. O rio Sorgue torna o cenário realmente idílico, digno do amor sublime que o poeta dedicava a sua querida Laura. É um prazer caminhar por lá.

O acesso ao jardim, saindo do museu, já impressiona pela beleza. Os ciprestes são onipresentes nas paisagens da
Provence - Foto: Simone Catto

Vista do magnífico jardim, com a entrada do museu ao fundo, à direita, e o rio Sorgue em primeiro plano.
Foto: Selma

Será Laura? Alice no País das Maravilhas? Não, apenas uma turista embasbacada nos jardins do poeta - Foto: Selma

Mais uma linda panorâmica dos jardins que ladeiam o 'Musée François Pétrarque' - Foto: Simone Catto
 
Eu não me cansava de fotografar o lugar! - Foto: Simone Catto

A cada canto de Fontaine-de-Vaucluse há homenagens ao poeta e sua amada - Foto: Simone Catto

Petrarca foi amigo de um certo Philippe de Cabassole, bispo de Cavaillon que residiu em um castelo cujas ruínas dá para avistar lá no alto, logo que chegamos à cidade. Dizem que o poeta tinha o hábito de visitar o amigo no castelo construído no século XII e empoleirado no grande pico rochoso que domina Fontaine-de-Vaucluse. Não privei da intimidade do bispo, já que alguns séculos nos separavam, mas também não poderia deixar de lhe fazer uma visitinha de cortesia – ou ao que sobrou de seu castelo.

Tirei essa foto enquanto subia a colina rumo às ruínas do castelo do bispo - Foto: Simone Catto

Outro ângulo das ruínas do castelo do bispo, ao lado de uma das montanhas arroxeadas que dominam a paisagem da
Provence - Foto: Simone Catto

Só sei que não é difícil perceber por que essa cidadezinha hipnotizou tantos escritores e artistas que tiveram o privilégio de passar por ela, incluindo muitos que nem mencionei aqui. Eu também me apaixonei, o que dá para perceber pela quantidade de fotos. Só não publiquei mais senão o post não teria fim, tendo de me conformar em compartilhá-las com alguns amigos. Espero, pelo menos, ter conseguido transmitir um tiquinho da atmosfera mágica desse lugar cujo encanto permanece imutável no tempo, no espaço e no imaginário de quem souber apreciar essa beleza toda. 

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